O roçar da língua em cabeças fechadas

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A língua é dinâmica, é um fato social responsável por intermediar não apenas a relação humana com o real, mas também as relações sociais. O convívio em sociedade é indispensável para o desenvolvimento da linguagem, uma capacidade inata do ser humano, assim como a sociedade depende de um sistema de significação e comunicação para se fundamentar, se desenvolver. Deste modo, pelo aspecto social da língua, há condições e lugares de produção de falas, discursos que podem ter prestígio, e o seu inverso, ou mesmo representar uma escolha ideológica. Eu resolvi escrever Machu Pichu ao invés de “Machu Picchu” no meu livro. 
 
Quando um falante escolhe uma palavra, dentro de um eixo vertical de possibilidades para combinar com outras horizontalmente, e linearmente, produzindo um discurso, deve levar em conta alguns fatores históricos, sociais, de local de fala, etc. Por exemplo, a palavra “denegrir” foi usada durante muito tempo no contexto escravista da sociedade brasileira colonial para depreciar a condição do afrodescendente em detrimento da condição do colonizador. Hoje, não utilizá-la é reconhecer a história brasileira, é não reproduzir erros e preconceitos do passado. 

No contexto latino-americano, há uma revolução em curso, um reconhecimento, uma valorização da identidade ancestral de diversos povos andinos como forma de resiliência e luta contra uma condição social, econômica e cultural imposta desde o processo de colonização. A “Revolução Pachamama” é contra o legado da colonização nos seus diversos aspectos danosos, inclusive linguísticos. Pois, a língua do colonizador é a de prestígio, é a norma, é a imposição, é a dominação. 

Escrever a palavra “Pichu” é estar com quem deveria ser o herdeiro de suas terras, é se orgulhar de uma identidade, preservar uma cultura frente ao colonizador, ao usurpador, ou seja, lutar contra não apenas uma opressão histórica de uma colonização, mas se posicionar contra agressores invisíveis, econômicos, sociais e culturais. Na língua do colonizador é escrita com dois “c”s; já na do morador, do trabalhador, do herdeiro por direito, não por condição, é escrita apenas com um “c”. 

Machu Pichu é explorada, “visitada” por visitantes de diversos locais todos os dias; menos pelos seus herdeiros que no máximo devem limpar e servir seja ao estrangeiro ou mesmo aos herdeiros dos exploradores. Eu resolvi escrever Machu Pichu ao invés de “Machu Picchu” por motivos linguísticos, históricos e sociais, mas também afetivos, pois com quem eu caminhava, compartilhava uma mesa, comia junto o alimentado retirado e dividido da mesma panela, assim o fazia. 

De início, é necessário roçar a língua para incomodar cabeças fechadas, abrir mentes. A norma, muitas vezes, não segue o uso, assim como a norma padrão não esconde a história das palavras. Palavras carregam significados com camadas construídas historicamente, condicionadas socialmente. Aqueles que se prendem apenas ao significante, na grafia das normas, reproduz, não questionam a origem do logos diretamente no verbo, na criação do discurso. Não desconstroem, parte importante do entendimento, da criação.

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