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Compre o livro Travessia Cinematográfica

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SOBRE O LIVRO
Travessia Cinematográfica é composto por 234 páginas com textos, e com ilustrações de Luciano Salles, sobre filmes agrupados a partir de temas: do humano, da história, do amoroso, da crise, do metacinema, do real, da relação, do feminino. Foram escritos ao longo de dez anos para os jornais O Imparcial, Tribuna Impressa, sites e revistas em meio às projeções do Cine Campus da Unesp, da Sessão Zoom de Araraquara, de mostras, ciclos, cursos, palestras, bate-papos e, é claro, de visitas aos cinemas. São textos para quem leu e não viu ou leu sobre o que vira.

Saiba mais no site do Catarse:
https://www.catarse.me/travessiacinematografica


The Peace is Over

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A doumentary about the brazilian’ high school students against the state. 

In the end of 2015, high school students mobilized against the government’s proposal to reformulate the education system the state of São Paulo in Brazil. The students didn’t agree with the vertical imposition of the project, they considered the project arbitrary besides not beneficial to the student class. As a consequence, the students started street demonstration and then they occupied schools as a form of struggle, strategy influenced by Chilean secondary students who had done the same in 2006. The documentary The peace is over (Acabou a paz: isto aqui vai virar o Chile) was directed by Carlos Pronzato in 2016 and shows the process of the students’ struggle in São Paulo in parallel with the struggle of the Chilean students highlighted in the documentary The Penguin Revolution (A revolução dos pinguins). 

In October of 2015, the state secretary of education Herman Voorwald released the government’s proposal of the state of São Paulo regarding the reformulation of the public school system, based on a "reorganization" since the closure of ninety-four school units, distributed throughout the state. The schools would be divided into cycles, so that each unit would only have one cycle of education. The affected students, about 311,000, would be forced to be transferred to other school units, often overcrowded and far from home. But the "reorganization" was based on the two billion reais cut in education made by the state government. 

The documentary The peace is over shows the process of struggle of secondary students against the "reorganization" of the education system proposed by the state government of São Paulo. The demonstrations began on October 6th, 2015 with marches in the main points of the city of São Paulo, extending for a month. The students’ strategy change occurred in November with the influence of the Chilean students' fighting practices in 2006, based on school occupations. So on November 9th a group of students occupied a state school in the region of Diadema and the next morning, another group occupied the Fernão Dias State School in the city of São Paulo initiating a mobilization process that would occupy more than two hundred schools throughout the state in a short period of time. 

In the first images of the documentary The peace is over, there is an assembly of students, they are reading a letter, a manifesto, they use the jogral strategy: one student reads a document aloud, others repeat even the circular information for all. Then images of street manifestation alternate with testimonials from students, teachers, parents and journalists who accompanied and sympathized with the students' struggle. The goal of director Carlos Pronzato is to understand and demonstrate the dynamics of the movement, how it came about and, mainly, how it shapes itself in its organization and struggle strategies. 

The struggle strategy of the students of São Paulo is interesting from the point of view not only organizational but also political because they managed to mobilize a large number of high school students and have the support of a significant part of society in a short period of time. The clash against the repressive and controlling apparatus of the state occurred with the use of a dynamic with organizational practices that the "political authorities" were not prepared to deal with. There were no leaders of the movement, built autonomously and horizontally. The students used the tools of social media to communicate, organize and produce their own dissemination content. 

The greatest merit of the documentary filmmaker Carlos Pronzato is to highlight and maintain the protagonism of students in the process of occupying schools. The students organized themselves efficiently and autonomously without the direct influence of other sectors of society. Obviously, they received support from various segments and social organizations. What is interesting is that the school occupations created similar "TAZ" (Temporary Autonomous Zone) where groups of individuals come together for a common purpose from straightforward non-hierarchical relationships, with complete freedom, with new relationships and social practices being intensified. 

To paraphrase some verses by the Brazilian poet Carlos Drummond de Andrade, the high school students of São Paulo State who participated in the process of struggle against the "reorganization" of the state system of education proposed by the state government owned “several hands” and “world feeling”. They won the victory over arbitrary and non-consultative impositions of a state controlled by private and economic interests. For them, the classroom will be transformed into something small, because by transforming the school environment, the world changes. Finally, the song verses sung by the students in the documentary The peace is over still echo: “All the schools/ fight schools/ stay ready/ If any closed we occupy” (Todas as escolas/escolas de luta/fica preparado/se fechar alguma a gente ocupa).

Complete movie




MC Foice and MC Martelo "Escola de Luta"


Gimme Danger: a história dos The Stooges segundo Jim Jarmusch

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Kurt Cobain dizia ser Raw Power (1973) o melhor disco de todos os tempos. Já a capa do álbum The Stooges (1969) foi parodiada por bandas como Fugees, Belle & Sebastian e por Di Melo. The Stooges, é ao lado do grupo MC5, o responsável direto por apontar os caminhos que o estilo musical punk seguiria uma década depois da formação da banda em 1967, na cidade de Detroit, nos Estados Unidos. O documentário Gimme Danger (2016) foi a proposta do cineasta Jim Jarmusch para explorar a história de Iggy Pop e The Stooges nas suas influências, gênese e legado. 

O documentário começa com um prólogo sobre Iggy Pop mostrando o seu início de carreira musical como o baterista dos grupos The Iguanas e The Prime Movers, até que em 1967 decide criar o The Stooges junto com os irmãos Ron e Scott Asheton. Ouve-se os versos “Gimme danger, little stranger/And i'll feel you bleed/Gimme danger, little stranger/And i'll feel your disease”. Nos próximos 108 minutos, Jim e Iggy mostram para o espectador através de imagens, fotos da época, depoimentos a importância do The Stooges para a música dos anos seguinte. 

Jim Jarmusch é um dos expoentes do grupo de cineastas do “cinema independente” estadunidense surgido na década de 1980. Dirigiu filmes como Estranhos no paraíso (1984), Dead Man (1995), Sobre café e cigarros (2003), com a participação de Iggy Pop, Flores partidas (2005), Amantes Eternos (2014) e Paterson (2016). Gimme Danger foi a primeira tentativa do diretor de trabalhar o gênero documental. 

O diretor foca a narrativa nos anos de 1969 a 1973, durante o período de gravação dos três primeiros discos do The Stooges. The Stooges (1969) foi produzido por John Cale (músico da banda The Velvet Underground), com destaque para as músicas I wanna be your dog e No fun, caracterizado por uma sonoridade mais simples, distorcida, experimentalista. No segundo disco, a banda o grava em Los Angeles, eis que surge Fun House (1970) com as canções T.V eye, Dirt e Fun House. Uma produção marcada por experimentações e por uma nova sonoridade influenciada pelo blues, jazz, adaptada àquilo que será conhecido como “som punk”. 

Em 1972, David Bowie deseja conhecer Iggy Pop, do encontro surge o convite para a ida a Londres, onde o músico inglês, no auge do seu prestigio com o disco The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972), produz o álbum Raw Power (1973). Bowie estava produzindo ao mesmo tempo a obra-prima de Lou Reed: Transformer (1972). Do disco Raw Power surgi a canção título do documentário  Gimme Danger, com destaque ainda para as composições Search and Destroy e Penetration

Jarmusch elenca as influências do The Stooges a partir de nomes como The Velvet Underground, Mother of Invention e MC5. No entanto, o destaque fica por conta do legado, em como os músicos de Detroit criaram uma sonoridade, um estilo, uma musicalidade proto-punk com canções com versos simples, com temas grotescos, e riffs poderosos, com uma guitarra repleta de distorção. Bandas como Sex Pistols, Damed, Ramones, Sonic Youth, The Cramps, White Stripes foram influenciadas pelas composições de Iggy e dos irmãos Asheton. 

Gimme Danger termina com a história do convite do festival de Coachela para a reunião de Iggy Pop e os músicos do The Stooges para uma apresentação em 2003, e a inclusão do grupo no Hall da Fama do rock em uma cerimônia em 2010. Jarmusch faz um documentário simples, sem inovações, destacando a música, as estórias de Iggy Pop e dos demais integrantes do The Stooges, além de histórias relacionadas ao campo da música pop, principalmente punk, nas décadas de 1960 e 1970, com os músicos de Detroit como agentes. 

There's nothing in my dreams
 Just some ugly memories 
Kiss me like the ocean breeze

Trailer do filme

As visões da realidade de Shirley

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Eu sou ela, você é ela, Shirley é a expressão da solidão moderna, em uma sociedade que possibilita os indivíduos estarem tão perto, tão longe. No filme “Shirley: visões da realidade” (2013), o diretor austríaco Gustav Deutsch cria uma obra que transpõe a estética do pintor estadunidense Edward Hopper para o cinema. Temas como relacionamento, a melancolia, o tempo, a solidão são trabalhados a partir de uma estreita relação entre pintura e cinema. 
Shirley entra no vagão do trem, há apenas ela e mais três passageiros: dois homens e uma mulher. Escolhe uma poltrona, se senta, abre o livro de Emily Dickinson com o desenho de um quadro de Edward Hopper na capa. Todos estão solitários, viajam sozinhos, não se interagem, o espaço é apenas um lugar para se estar, transitório, passageiro para o corpo, para as relações, para o superficial contato. 

O filme de Gustav Deutsch narra a trajetória de Shirley através de treze quadros, no sentido específico da pintura, sobre os dias e noites do dia 28 de agosto de 1931 passando por anos importantes até 1963, com os principais acontecimentos do período, como a grande depressão nos Estados Unidos, o início da Segunda Guerra Mundial (1939), a Revolução Cubana (1959), entre outros. 

A proposta do diretor é estreitar a relação entre pintura e cinema, é transpor, traduzir os quadros de Edward Hopper para uma linguagem cinematográfica, mas que privilegie a referência, a base pictórica na fotografia do filme. O pintor estadunidense se destacou na pintura, na arte do século XX, por retratar cenas da sociedade moderna, com os seus locais grandes com o homem estático, confinado em espaços pequenos. Em seus quadros há uma paisagem urbana desolada, deserta, melancólica. 

O início da percepção das transformações da sociedade moderna ocorreu com um lírico no auge do capitalismo. O poeta francês Charles Baudelaire foi o primeiro a retratar, em seus poemas, em seus quadros parisienses, a vida, os temas de uma nova sociedade que se configurava. As “flores do mal”, que germinam no espaço urbano, criam sentimentos de tédio, a revolta, a morte, a necessidade da embriaguez pelo vinho. O homem está sozinho em meio à multidão, caminha, flana pelo espaço lotado urbano. Percebe a transitoriedade de passantes, acaricia gatos, admira a beleza transitória. 

Em “Shirley: visões da realidade”, assim como nos quadros de Hopper, há uma dialética entre espaço interior versus espaço exterior. O corpo é a referência do conflito com o espaço, assim como a mente, os pensamentos são o exemplo da dissociação entre o eu e o mundo. Estar no mundo, não é necessariamente fazer parte dele, Shirley está solitária em um quarto, olha para fora, contempla algo que não podemos ver enquanto espectadores, mas que sabemos o que é, enquanto humanos, seres ora menores do que o mundo, ora maiores, de forma que o sentimento no mundo é a melancolia, a solitária existência. 

No filme “Acossado” (1960), do diretor francês Jean-Luc Godard, a personagem Patrícia Franchini (Jean Seberg) pergunta para o seu companheiro, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), quem seria mais bonita, ela ou pintura de um quadro pendurado na parede? A relação entre pintura e cinema é uma relação próxima entre imagem e percepção. O crítico André Bazin, no seu estudo sobre a ontologia da imagem, destaca que a representação através da imagem é a própria luta contra a morte, a preservação do corpo. 

No filme “Shirley”, pintura e cinema se relacionam de forma estreita, direta, o quadro cinematográfico busca reproduzir o quadro da pintura nas texturas, nas cores, na luz, na representação, no significado. A mesma proposta ocorre em filmes como “Silvestre” (1981) do português João César Monteiro; “A Inglesa e o Duque” (2001) do francês Eric Rohmer; e a sequência “Corvos” do filme “Sonhos” (1990) do diretor japonês Akira Kurosawa. 

Por fim, o concreto da vida moderna é a solidão, o espaço exterior é a cidade, servida apenas para se estar. O ser contempla, divaga, volta-se para devaneios da realidade, o presente é tão grande, não pode se afastar, resta-lhe apenas estar, sentir a melancolia. Shirley tenta se afastar um pouco, está só na noite, no quarto, pode ser. Os problemas do ser na solitária modernidade são representados pelos quadros de Baudelaire, de Hopper e de Deutsch.

Trailer do filme

A Última Sessão

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Caminhando pelo interior da Espanha montado em seu cavalo, chamado Rocinante, e com a companhia do fiel escudeiro, Sancho; o cavaleiro Dom Quixote de la Mancha se depara com inimigos grandiosos, imponentes. O cavaleiro da triste figura para, olha, diz que há gigantes a frente que devem ser confrontados. O escudeiro retruca, alega que são apenas moinhos de ventos. O Cinema é, enquanto Arte, quixotesco; já como produto, é sanchista. A Sessão Zoom é bravamente nos seus cinquenta anos mantida por quixotes.

Em algum lugar, cujo nome é fácil de se lembrar, entre São Carlos e Ribeirão Preto, surgiu a Sessão Zoom, um projeto de exibição cinematográfica que desde 1978 exibe filmes considerados expressões artísticas, caminhantes fora do circuito comercial. Ela percorreu, inicialmente, diversos espaços na cidade: Cine Capri, Cine Veneza, algumas poucas sessões na Casa da Cultura (na sala Jean-Paul Sartre) e na Biblioteca Municipal, tendo o campus da Unesp como base. Depois, se descentralizou, caminhou por outros espaços, mais periféricos, abertos e públicos. 

Exibir filmes é uma relação entre espaços adequados e formatos. Predominantemente, a Sessão Zoom exibiu, historicamente, filmes nos chamados “cinemas de rua” que se confundiam com o formato, sendo exibidos em película de 35mm contendo o movimento de um segundo sob a luz a cada vinte e quatro fotogramas. No entanto, os locais fecharam em 1999, viraram loja comercial de mercadorias e de fé. No templo do consumo se converteram em formato digital, alguns se enlataram. 

Com o fim dos “cinemas de rua” era preciso caminhar para outros lugares, enfrentar outros “inimigos”. A Sessão Zoom vai para o “Espaço Cultural Paratodos”, depois ao shopping. Por fim, perde a batalha, mas retorna, para o mesmo lugar; depois sai para as praças, para os espaços públicos exibindo filmes independentes de qualidade, de resistência à margem. O filme em 35mm é o símbolo da resistência, do saudosismo, mesmo estando no espaço dos “gigantes”. 

A Sessão Zoom é resistência, militância para a difusão do cinema enquanto arte. Luta contra o formato, a falta de incentivo, a chuva, as adversidades, gigantes; mas tem o prazer dos olhos dos produtores e espectadores que veem na luz do cinema uma realidade mais que perfeita, mostrada de forma crítica, artística. 

Não me lembro da primeira vez que fui ao cinema, mas tenho em mim que os melhores filmes que vi foram em 35mm na Sessão Zoom. A primeira sessão, a chegada do cinematógrafo, do filme analógico, o barulho do projetor, a música, a bomboniere, não vivi, mas ouvi e li relatos. Vivo, presenciei a última exibição de um filme em 35mm em Araraquara. Assisti junto ao projetor, sentado no canto da apertada sala do cinema, uma pequena faixa do filme. Não precisava de mais, tinha o fabuloso destino da jovem moradora do bairro de Montmartre que trabalhava no café “dois moinhos” na memória. 

Exibir filmes artísticos, como o faz a Sessão Zoom, é ser idealista, é lutar contra gigantes fantasiados de moinhos. Chegou-se à última sessão, outras virão em outros formatos com Sancho mascando chiclete e Quixote à cavalo.

Viagens Imaginadas

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Viajar não é um fim, é um meio, um motivo, uma necessidade. O deslocamento no espaço gera uma nova relação com o tempo presente, essencial para se entender o passado, o futuro. Ter histórias, memórias. Viajo porque preciso; volto porque sinto saudades, porque tenho memórias de espaços, sensações, tempos, viajantes, amores. A viagem é metafísica, representante da dialética interior versus exterior, o roteiro contra o acaso, a percepção da dualidade da vida, dos sentimentos. A troca de seres, o contato. Caminhos criam roteiros lineares, podendo se cruzar, é a sinfonia do acaso. 

Contar relatos de viagens é algo arquetipal, várias culturas possuem seus mitos de criação e de viagens. Na cosmogonia, as aventuras dos heróis por terras estrangeiras são parte fundamental do desenvolvimento do indivíduo e da sociedade. O mito não é apenas uma leitura do mundo, mas também do homem.  Jasão viajou com os argonautas da Grécia até as terras do oriente em busca do velocino de ouro; Macunaíma percorreu terras dos “tristes trópicos” em busca de sua muiraquitã. Na tradição das narrativas nórdicas, os vikings possuem relatos de viagens de aventureiros como Ragnar Lodbrok que se lançaram aos mares com barcos chamados de “drakkars”. 

Heródoto narra em suas “Histórias”, sob o signo das musas, casos de aventureiros de diversos reinos da antiguidade que viajaram rumo a terras desconhecidas. Plutarco narrou “vidas ilustres” com destaque para a de Alexandre, o Grande; aventureiro e conquistador da Macedônia que conseguiu expandir o seu reino até os limites do extremo oriente, em territórios da Índia, estabelecendo o período helenístico da antiguidade. 

Marco Polo viajou de Veneza até o extremo oriente chegando às terras da Mongólia e China dominadas pelo Kublai Khan. Navegantes portugueses partiram do “Jardim das Hespérides” navegando em périplo pelo continente africano, passando pelo mar índico, atlântico, asiático até o Japão; culminando com a circunavegação da terra. 

No universo das histórias em quadrinhos, o personagem Corto Maltese, criado pelo italiano Hugo Pratt, é um aventureiro, um marinheiro com diversas histórias e “baladas em mares salgados” na Oceania, no continente americano, africano, asiático e europeu. Desaparece lutando nas “brigadas internacionais” durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), sua última aventura. 

O cinema possui os “road-movies”, um gênero específico para filmes que se baseiam em relatos de viagens. O cineasta italiano Federico Fellini realizou “A estrada da vida” sobre a história do casal circense de rua chamados de Gelsomina e Zampanò a partir de viés existencialista. Em “Exílios”, o diretor argelino Tony Gatlif coloca a questão da viagem como a busca pela identidade. No filme “Paris, Texas”, de Win Wenders, Travis é um caminhante, se perde por caminhos, retorna para estradas familiares. 

Relatar viagens é compartilhar experiências, sensações, impressões sobre culturas, lugares, tempos e aventuras; caminhando entre a subjetividade e a objetividade, entre a impressão e a escrita. Um devaneio da realidade.

Ele está de volta

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Um espectro ronda a Europa e a América Latina - o espectro do conservadorismo da ultradireita partidária e social. Vários países unem-se em uma aliança para apoiá-lo: a França e a Alemanha, François Hollande e Angela Merkel, os neonazistas da Áustria, os neoliberais da Argentina e os adeptos do trumpismo nos Estados Unidos. No Brasil, políticos misóginos, reacionários estão no poder repetindo práticas e políticas conservadoras. 

No filme alemão ‘Ele está de volta’ (Er ist wieder da, 2015), o diretor David Wnendt adapta o romance homônimo de Timur Vermes no qual o ditador nazista Adolf Hitler acorda no dia 23 de outubro de 2014 em um terreno baldio em Berlim. Desnorteado, começa a caminhar por alguns pontos da cidade, vai ao Portão de Brandemburgo, onde turistas tiram selfies acreditando estar na presença de algum ator fantasiado e não na do próprio ditador. 

Se durante a II Guerra Mundial (1939-1945) Hitler movia as suas tropas da Wehrmacht, Luftwaffe e a Schutzstaffel, no filme, carrega estantes de jornais tentando entender a dinâmica da sociedade atual moldada pela era da informação e pela internet. Um jornalista resolve fazer um reality show mostrando a viagem do ditador pela Alemanha atual, passando por diversas regiões e cidades, conversando com cidadãos sobre temas polêmicos, como imigração, crise econômica, etc. 

O filme ‘Ele está de volta’ é uma comédia, uma sátira da sociedade atual influenciável pelo espetáculo midiático e pelas rápidas narrativas das redes sociais viralizadas, compartilhadas, reproduzidas. Os vídeos de Hitler no youtube recebem milhares de acessos, vloguers postam vídeos no canal expressando as suas “mêmicas” opiniões sobre a sociedade, exaltando o ditador que se torna uma “celebridade da internet” com milhares de novos seguidores nas redes sociais. 

O filme é construído através do recurso do “mise en abyme”, ou em uma tradução “narrativa em abismo”, no qual a obra está dentro da própria obra. Um filme sobre o fato de Hitler acordar no século XXI está sendo feito dentro do filme que o espectador acompanha, mostrando que aquilo é uma obra ficcional, mas que pode ser um reflexo do que ocorre atualmente. 

No Brasil, o filme ‘Ele está de volta’ pode ser visto à luz dos recentes acontecimentos políticos e sociais, nos quais uma parcela da sociedade fantasiada com camisas de futebol da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) adoram políticos- personagens conservadores com hashtag: “bolsomito”, “vaipracuba”, “naovoupagaropato” ou “fora alguém”. Aqui, eles nunca precisaram voltar, pois sempre estiveram nos rondando para proteger a ruína da “casa grande”.


O 69º Festival de Cinema de Cannes

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O Festival de Cannes é um dos festivais de Cinema mais importantes do mundo, tem lugar na cidade litorânea francesa de Cannes e, este ano, ocorre entre os dias 11 a 22 de maio. É caracterizado como um festival plural, que privilegia o “cinema de autor”, destacando a produção cinematográfica de diversos países, que concorrem aos dois principais prêmios: o primeiro, A Palma de Ouro (Palme d’Or) dada ao melhor filme do festival; e o segundo, Grand Prix (Grande Prêmio), atualmente considerado o segundo prêmio mais importante do festival, atribuído pelo júri ao filme que melhor contribui para o desenvolvimento dos aspectos da linguagem cinematográfica. O festival está na sua 69ª edição e ocorre desde 1946, com evoluções, retrocessos, polêmicas e cancelamentos, como o seu o seu conflito com o Festival de Veneza, ou ainda ao seu eterno embate com o “Cinema industrial hollywoodiano”, passando pelo seu solidário cancelamento em maio de 68. 

Os Festivais de Cinema são eventos importantes, pois propiciam um excelente ambiente de divulgação fílmica, centrada em produções de determinadas nacionalidades, gêneros cinematográficos, e, principalmente, em diretores. O interessante, e que merece um especial destaque, é que os festivais possuem perfis, com características próprias, sejam elas ideológicas, políticas, mercadológicas ou estéticas. Por exemplo, o Festival de Cinema de Berlim tem como prêmio máximo o Urso de Ouro e segue um perfil de cinema político, voltado para um Cinema engajado. Já o Festival de Veneza tem como símbolo o prêmio Leão de Ouro, dado o filme vencedor da mostra competitiva, que se destaca pela sua alta qualidade cinematográfica. Por sua vez, o Festival de Cinema de Sundance se caracteriza por premiar e divulgar apenas produções independentes, mas que produzam um cinema autoral e de baixo orçamento, ou seja, o oposto da premiação do seu compatriota, representada pelo Oscar, que premia filmes relacionados com a indústria do entretenimento. 

Por seu turno, o Festival de Cinema de Cannes privilegia o Cinema de autor, ou seja, premia filmes que são expressões artísticas de seus respectivos diretores, e que propõem uma abordagem artística e experimental da linguagem cinematográfica. Nota-se que os filmes que ganham destaque no festival são obras de arte e não meros produtos de consumo de massa. Outro fator de destaque é a pluralidade das produções que participam do festival, com diretores de diversas nacionalidades. Assim, o Cinema autoral é o elemento norteador do perfil do Festival de Cannes. 

A história do Festival de Cannes se inicia em setembro de 1939, teria como presidente do júri os cineastas Louis Lumière (1862-1954), com a tentativa do governo francês de criar um festival de Cinema em protesto ao Festival de Veneza, que sofria com a orientação ideológica fascista. No entanto, a Alemanha declararia guerra à Inglaterra e à França em setembro do mesmo ano, adiando, assim, a gênese do festival. Após o término da II Grande Guerra (1939-1945), em 1946, tem-se a primeira edição do Festival de Cannes. Ao longo dos seus 65 anos, apenas em duas ocasiões o festival não foi realizado: a primeira em 1948 e a segunda em 1950, ambas por falta de verba. Já em 1968, o festival foi interrompido por um grupo de cineastas ligados à Nouvelle Vague, liderados por Jean-Luc Godard (1930-) e François Truffaut (1932-1984), que exigia a interrupção do festival em apoio as manifestações estudantis e trabalhistas que aconteciam nas ruas de Paris, em maio de 68. 

As produções brasileiras possuem uma boa receptividade dentro do Festival de Cannes, tendo recebido diversos prêmios, inclusive o principal: a Palma de Ouro com o filme “O pagador de promessas” (1962), do ator, roteirista e diretor Anselmo Duarte (1920-2009). Porém, o primeiro filme nacional premiado no festival foi “O Cangaceiro”, do diretor Lima Barreto, em 1953, na categoria “Melhor filme de aventura”. Ainda na década de 1960, o cineasta representante do Cinema Novo Glauber Rocha ganhou dois prêmios: recebeu o “Prêmio da Crítica Internacional” com “Terra em Transe”, em 1967, e ganhou o prêmio de “Melhor direção” pelo filme “O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade”, em 1969; Glauber receberia ainda o “Prêmio especial do júri” pelo o seu curta-metragem “Di Cavalcanti”, em 1977. Outros destaques ficam por conta da premiação na categoria de melhor curta-metragem de animação para “Meow”, de Marcos Magalhães, em 1982, e pelos prêmios de melhor interpretação feminina para Fernanda Torres no filme “Eu sei que vou te amar”, de Arnaldo Jabor, em 1986; e para Sandra Coverloni pela atuação em “Linha de passe”, de Walter Salles, em 2008. Já no ano de 2016, o curta metragem "A moça que dançou com o diabo", de João Paulo Miranda Maria recebeu o prêmio "Menção especial do júri". 

A 69ª edição do Festival de Cinema de Cannes ocorre em um momento em que o festival se encontra em uma encruzilhada: manter o perfil de cinema autoral e artístico ou ceder às pressões do mercado e da indústria cinematográfica, representada por Hollywood. Hoje, há o meio termo, a organização cede espaço para as produções hollywoodianas. Todavia, a Palma de Ouro ainda é dada para filmes que atendem à característica do festival, premiando, assim, filmes autorais e artísticos.

Filmes Cults

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O termo “clássico” é controverso dentro dos estudos literários e da história da arte. Pode ser atribuído a um período literário considerado o mais elevado e importante dentro de uma dada história literária, como é o caso do Classicismo português do século XVI, que se confunde com a arte renascentista, ou mesmo o período barroco da literatura espanhola, ou ainda do romantismo alemão. A terminologia ainda pode ser atribuída a obras importantes, referenciais, como é o caso de algumas que são consideradas “clássicos da literatura universal”, como “Ilíada”, “Divina Comédia”, “Dom Quixote”, “Cem anos de solidão”, etc. No caso do cinema, há filmes clássicos que são importantes para movimentos e escolas cinematográficas, mas também há os filmes cults. 

O termo “cult” é originário da língua inglesa podendo ser traduzido, de forma literal, como “culto”. Os “Filmes cults”, ou “Cult movies” em inglês, são filmes cultuados por determinados grupos sociais. Não possuem necessariamente o status de “clássico”, mas têm determinadas qualidades ligadas ao roteiro, trilha sonora, tema ou mesmo personagens, fazendo com que surjam cultos. Um filme cult pode não ter qualidades excepcionais, ou mesmo experimentações dentro da linguagem cinematográfica, sendo apenas uma obra que teve uma excelente recepção por parte de um determinado público que se mantém fiel à obra por um certo tempo. 

O filme cult é caracterizado pela sua associação com determinados grupos sociais, de onde surge o culto. O cinema pode ser considerado um culto moderno que propicia a comunhão entre espectadores, tendo o filme como elemento sagrado, como fonte de inspiração, de pensamento e de conduta. Espectadores se identificam, criam empatia por narrativas, personagens, trilhas sonoras, tentam reproduzi-las no seu cotidiano com condutas, roupas, gírias e demais obras de culto, como livros, bonecos, pôsteres, etc. Os filmes cultuados acabam influenciando o comportamento social com um impacto muitas vezes maior do que os filmes clássicos. 

Quadrophenia’ (Inglaterra, 1979) é um filme dirigido por Franc Roddam, é baseado na “Ópera Rock” homônima lançada em 1973 pela banda inglesa The Who. O filme é um retrato do cenário musical, cultural e social londrino nos primeiros anos da década de 1960, com a oposição entre os dois principais grupos conhecidos como Mods e Rockers, como também a arquetipal dualidade entre o velho e o novo em uma sociedade em constantes transformações. O filme se tornou cultuado por ser uma representação de duas formas de conduta e identificação dos jovens ingleses no início da década de 1960, além de expressar dois estilos de vida: o mod e o rocker. 

Na produção “Warriors – Os selvagens da noite” (1979), nove indivíduos de uma gangue de rua da cidade de Nova Iorque resolvem atender ao chamado do líder carismático Cyrus para comparecerem ao bairro do Bronx em uma reunião com representantes de todas as demais gangues da cidade. Cyrus é assassinado e os Warriors são acusados injustamente. Perseguidos pela polícia e pelas demais gangues tentam retornar à distante região de Coney Island. O filme foi cultuado por representar grupos sociais através de gangues que se diferenciavam por roupas, condutas e localidades. Assim, a reprodução do figurino, do sotaque e das expressões mantiveram o aspecto sagrado do filme e o seu culto por parte dos seus adoradores. 

Poucas animações possuem o status de cult, dentre elas a mais impactante é a produção japonesa “Akira” (1988). A animação, dirigida por Katsuhiro Ôtomo, conta a história de Kaneda líder de uma gangue de motoqueiros, no ano de 2019, em Tóquio, chamada de Neo-Tokyo que foi construída após a original ser destruída na terceira guerra mundial. A fonte de culto sobre “Akira” está na sua trilha sonora composta por Geinō Yamashirogumi com influências da música punk, eletrônica e rock. O principal público cultuador do filme são os chamados otakus, ou seja, fã de animes e mangás japoneses que tentam dar vida aos seus personagens prediletos através dos cosplays. 

Cultuar um filme é se tornar fiel, crente e reprodutor daquilo que é expresso na obra cinematográfica. Os cultuadores se identificam com o que veem, projetam no que vivem, criam uma empatia pelos seus iguais que o ajudam a se reconhecer e ao mesmo tempo se diferenciar dos demais grupos sociais. Filmes cults ditam formas de comportamento e de pensamento. Segui-los é estar em comunhão com algo sagrado, superior. Mas, é se projetar, se ver e tentar ser igual à obra, seja usando roupas, reproduzindo gírias, ou mesmo consumindo objetos de culto como livros, pôsteres, bonecos e demais itens. Aquilo o que é cultuado é sagrado.

Um conto de dois países

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“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da fé, foi a época da incredulidade. Foi a estação da luz, foi a estação das trevas. Foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero. Tínhamos tudo diante de nós, não havia nada antes de nós.” O começo do romance “Um conto de duas cidades”, lançado em 1859 pelo escritor inglês Charles Dickens, é o melhor dos começos, o pior dos começos. O início da obra de Dickens pode ser a síntese do conturbado momento do transe político brasileiro, já seus antecedentes podem ser pensados a partir dos filmes ‘Terra em transe’, ‘Casa grande’, ‘O som ao redor’ e ‘Que horas ela volta?’. 

A narrativa do filme ‘Terra em transe’ (1967), de Glauber Rocha, se passa na fictícia república de Eldorado, um pequeno país localizado no continente americano, próximo ao oceano Atlântico. O país está em efervescência política, pois a província de Alecrim elege o Governador populista Vieira que terá um embate político com o senador conservador Porfírio Diaz, sendo a caricatura do político tecnocrata, anticomunista e favorável ao domínio imperialista do capital estrangeiro e do “progressismo”. O momento político é de transe, forças políticas antagônicas se debatem, as instituições democráticas são fracas, servem, e são submissas, aos interesses particulares de determinadas classes sociais. Nesse jogo de poder dentro das instituições políticas, a população e os movimentos sociais são coadjuvantes. 

Algumas estruturas e relações sociais brasileiras foram historicamente construídas, uma das mais perenes, que tem as suas bases no início do processo de colonização do país no século XVI, é a “casa grande e a senzala”, que são símbolos da relação entre classe opressora e classe oprimida, inicialmente representada pelo casa grande, local onde residia os senhores do engenho e os detentores do poder e, em anexo, a senzala com os escravos e em alguns momentos os serviçais, como destacado na obra de Gilberto Freyre. 

O filme ‘Que horas ela volta?’ (2015), de Anna Muylaert, juntamente com os filmes brasileiros ‘Casa grande’ (2014) e ‘O som ao redor’ (2013) contribuem para a reflexão das transformações sociais e culturais ocorridas no Brasil nos últimos treze anos. Em ‘Casa grande’, de Felipe Barbosa, tem-se a queda das elites brasileiras, ou seja, a ruína da “casa grande”, de modo que uma família rica, tradicional e historicamente detentora do poder e de prestígio social acaba por perder a posição de privilegiada frente a uma nova configuração social, não mais excessivamente estática, onde havia a garantia de reprodução de modelos e estruturas sociais. 

Já na produção ‘O som ao redor’, de Kleber Mendonça Filho, há justamente a tentativa de proteção das elites brasileiras frente a uma nova realidade. No filme, os moradores de uma rica rua de Recife têm a rotina quebrada quando um grupo de seguranças particulares propõem garantir a segurança das “redondezas”. O que se tem no filme é algo similar a um processo de “condominização” da sociedade brasileira, no qual haverá a tentativa por parte das elites de criar espaços fechados, “feudos”, conhecidos como “condomínios fechados”, que não interagem com o resto do espaço social, criando espaços homogêneos. 

Em ‘Que horas ela volta?’, temos o processo final de transformação da sociedade brasileira nos últimos anos sendo mostrado, aquele mais profundo, baseado na consciência de classe, como o demonstrado pela personagem Jéssica e transmitido para a sua mãe, Val. A filha se recusa a “seguir os passos” não da mãe, mas aqueles que lhe seriam legados historicamente devido a sua classe social. Libertando-se, também liberta a mãe. Já não são mais as mesmas, estão em comunhão. Libertaram-se de amarras históricas através do pensamento crítico e social. Assim, elas nunca mais voltarão para aquela condição de submissão social, não adiantando perguntar que horas, pois o tempo presente, a vida presente se transforma. Através do cinema podemos ver esta transformação de forma mais lúcida. 

Muitos anos depois, frente à televisão, o brasileiro haverá de recordar aquela tarde remota do dia 17 de abril de 2016 na qual conheceu a maioria dos 513 deputados federais. O Brasil é então um país com um rio de águas temporais diáfanas de poucos anos conjuntos de tradição democrática baseada em intuições consolidadas, sérias. Tudo foi televisionado, editado, mostrado como espetáculo de entretenimento; mas, o espetáculo não era tão doce, é conservador, reacionário, misógino, ou seja, um espetáculo dos nossos tristes tempos de contradições políticas, econômicas, filosóficas e sociais. Por fim, um transe político ocorre! E agora, José?