Viver É Fácil Com Os Olhos Fechados

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Em janeiro de 1969, a pequena cidade de Matão, no interior de São Paulo, hospedou por alguns dias os músicos Mick Jagger e Keith Richards da banda inglesa de Rock The Rolling Stones. Durante o período que permaneceram na cidadezinha, há quem diga que o guitarrista da banda teve como influência a viola caipira para compor a célebre música “Honky Tonk Women”. A passagem de um grande músico por uma pequena cidade é o mote do filme espanhol “Viver é fácil com os olhos fechados” (Vivir es fácil con los ojos cerrados, 2013), dirigido pelo cineasta David Trueba, que destaca a estadia de John Lennon (1949-1980) em um pequeno vilarejo na província de Almeria na região espanhola da Andaluzia. 

O ano é 1966, Antonio (Javier Cámara) é um professor em uma pequena cidade do interior da Espanha que utiliza as músicas dos Beatles para ensinar o idioma inglês. Sua rotina de ensino é quebrada quando recebe a notícia que John Lennon está na província de Almeria para gravar um filme. Resolve ir ao encontro do seu grande ídolo e inspirador. No caminho, oferece carona para a jovem Belén, de 21 anos, que está fugindo de um lar para jovens grávidas, e para Juanjo, um adolescente que foge da autoritária casa paterna por não concordar com o conservadorismo, não apenas do pai, mas também da sociedade espanhola franquista. Antonio chega à cidade base da produção do filme e tenta de todas as maneiras se encontrar com Lennon. 

Viver é fácil com os olhos fechados” é um Road Movie, ou em uma tradução literal “filme de estrada”, um gênero cinematográfico no qual a ação se desenvolve a partir de uma viagem. As personagens se deparam com situações-problemas que são expostas e trabalhadas no decorrer do deslocamento, como ocorre também com os filmes “Easy Rider” (1969), “A Encruzilhada” (1982), “Telma e Louise” (1991), “E sua mãe também” (2001.), “Diários de motocicleta” (2004) e “Pequena Miss Sunshine” (2006). No gênero, a paisagem ganha importância por apresentar locais belos, exóticos. Na produção espanhola, Antonio se desloca pela região de Andaluzia (a mesma do poeta Federico García Lorca) e pela exuberante e árida costa da província de Almeria. 

Filmes que tratam diretamente ou indiretamente sobre os Beatles possuem uma carga enorme de intertextualidade com referências explícitas e/ou implícitas ao universo do quarteto de Liverpool. Na cena inicial de “Viver é fácil com os olhos fechados”, Antonio está discutindo com a sua classe de jovens alunos o que a palavra em inglês “help”, “ayuda” em espanhol, significa no contexto da música composta por John Lennon e em um outro mais profundo, filosófico. Em Almeria, o professor fica hospedado em um hotel próximo a uma plantação de morangos, aludindo, assim, aos versos da música “Strawberry Fields Forever”, que John Lennon compôs durante a sua estadia na província espanhola. 

John Lennon foi à Espanha no outono de 1966 para filmar a produção “How I Won the War” (“Como ganhei a Guerra”) com a direção de Richard Lester, diretor dos filmes dos Beatles “A Hard Day's Night” (1964) e “Help” (1965). Da sua estadia, originou-se a famosa foto da capa da primeira edição da revista Rolling Stone lançada em novembro de 1967, como também alguns versos da música “Strawberry Fields Forever”, que foi lançada no dia 13 de fevereiro de 1967 em um compacto juntamente com a composição "Penny Lane". No filme de David Trueba, a personagem Antonio se encontra com Lennon, e em diálogo particular ouve a fita demo da composição, sendo, deste modo, o primeiro a ouvir a música. 

As músicas dos Beatles estão presentes ao longo da produção, Antonio as analisa em sala de aula, cita em diálogos informais. No encontro com Lennon, o professor pede para que o músico visite a humilde escola e mande uma mensagem para os alunos, acaba não recebendo a visita, mas, algo melhor, ouve alguns versos de “Strawberry Fields Forever” que são gravados em um gravador portátil. O encontro não é mostrado, sendo destacado pela fala de Antonio. John Lennon não aparece, não se vê a figura do músico, sabe-se que ele está lá: na casa alugada na vila de Santa Isabel, onde se vê o pequeno Julian e a sua mãe Cynthia Lennon, no set de filmagens, no seu trailer, por fim, com Antonio. 

Strawberry Field” foi um orfanato, onde há o famoso portão vermelho, que fica na rua Beaconsfield Road no subúrbio de Woolton em Liverpool. Mas, também remete aos campos de morangos da província de Almeria, onde Lennon permaneceu por alguns meses para filmar “How I Won the War”. "Strawberry Fields Forever” é uma música excepcional, de seus versos “Living is easy with eyes closed” origina-se a inspiração para o filme de David Trueba. Em “Viver é fácil com os olhos fechados”, Antonio é movido pela música, ela faz parte do seu cotidiano pessoal e profissional, recebendo o apelido na escola de “quinto Beatles”. Por fim, o filme não é sobre os Beatles, ou sobre John Lennon, é sobre Antonio e sua paixão pela música.

Trailer do filme

O Incrível Exército de Brancaleone

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O Incrível Exército de Brancaleone” (L'Armata Brancaleone, 1966) é uma produção italiana dirigida pelo cineasta Mario Monicelli (1915-2010). No filme, há a história do cavaleiro medieval Brancaleone da Norcia (Vittorio Gassman) e do seu exército de plebeus e moribundos que vagam pela Itália na baixa Idade-Média, deparando-se com cavaleiros desastrados, fanáticos religiosos, cidades desertas devido à peste negra, donzelas e invasores sarracenos. O filme satiriza os costumes da sociedade feudal, como também o código de cavalaria e a religiosidade da época, sendo, ainda, uma paródia do romance “Dom Quixote de La Mancha” (1605), do escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616). 

No filme, com a invasão de uma vila por nórdicos, um cavaleiro acaba sendo morto e dos seus espólios, dois adultos e um adolescente plebeus acham um pergaminho contendo a posse da cidade de Aurocastro, que fica na região italiana da Puglia. Mas, apenas um cavaleiro pode possui-la, assim, partem em busca de um que aceitaria dividir a cidade e as riquezas, encontram Brancaleone, um cavaleiro maltrapilho, pobre e desastrado. Com o seu grupo (exército de cinco membros) partem em direção à Puglia, no caminho há o duelo de Brancaleone e Teofilatto de Leonzi, o encontro com um grupo de fanáticos religiosos, a tarefa de levar uma pura donzela para o seu esposo, a chegada à cidade de Aurocastro e a luta final contra os piratas sarracenos. 

O enredo do filme “O Incrível Exército de Brancaleone” se passa durante o período histórico conhecido como Baixa Idade-Média entre os séculos XI e XV, quando há o enfraquecimento da relações feudais e, consequentemente, da sociedade baseada no modo de produção feudal. A sociedade era estamentada por classes sociais constituídas pela nobreza, clero e camponeses. Contudo, a partir da Baixa Idade-Média, há o declínio do feudalismo principalmente através de três viagens: a primeira representada pelas Cruzadas, que abriram novas rotas comerciais terrestres; a segundo pelos mercadores venezianos, representados por Marco Polo, que sedimentaram as rotas; e, por último, as grandes navegações que desbravaram rotas marítimas de comércio. 

Em “O Incrível Exército de Brancaleone” é possível identificar os três elementos que caracterizaram a Baixa Idade-Média: a guerra, a peste e a fome. Logo no início da narrativa, uma vila é saqueada por guerreiros aparentemente nórdicos e um cavaleiro tenta defendê-la sem êxito. Na parte final do filme, há a tentativa de Brancaleone e seu exército de conter a invasão de piratas sarracenos à cidade de Aurocastro, exemplificando algo típico do período: o embate entre os europeus e os árabes muçulmanos, no caso chamados de sarracenos. No período histórico, o embate foi caracterizado a partir da Guerra da Reconquista (península ibérica) ou mesmo com as Cruzadas contra os muçulmanos que dominavam todo o oriente médio e parte da Europa. 

A peste negra, como era chamada a peste bubônica, assolou a Europa durante a Baixa Idade-Média, trazendo devastação e um número elevado de mortes. Devido à doença, cidade inteiras eram isoladas e o fanatismo religioso era elevado, pois julgavam ser a doença um castigo divino devido à “impureza da população”. Em uma cena, Brancaleone e o seu exército entram em uma cidade vazia e começam a pilhá-la segundo o “código de pilhagem”, no entanto, fogem sem levar nada temendo estarem contaminados pela “peste”. Descrentes e acreditando na iminente morte, se juntam à procissão do religioso Zenone e seus peregrinos que rumam à Terra Santa para libertar o Santo Sepulcro. 

A fome, a falta de alimentos, é uma constante durante o período. O sistema de produção feudal baseado na monocultura e a dependência da agricultura criaram um modelo que não se sustentou e não sanou as necessidades de alimentos da população da época. No contexto do filme, o alimento é mostrado como algo importante, que teria a mesma importância que a posse de pedras preciosas, sendo, ainda, um símbolo de riqueza. Um dos motivos para irem a Aurocastro, além da riqueza material, é a abundância de alimentos que lá teria, com os seus campos de cereais, vinhedos e animais. Quando um dos integrantes do exército, o velho judeu, está prestes a morrer, palavras de conforto são ditas, tendo a comida e a supressão da fome como destaques. 

Em “O Incrível Exército de Branca Leone”, Mario Monicelli faz uma sátira dos costumes e das relações sociais da Baixa Idade-Média, mostrando de forma cômica a decadência da sociedade feudal através de um cavaleiro moribundo e o seu exército de cinco maltrapilhos. Ele satiriza ainda a religiosidade do período, de uma sociedade que possui uma concepção teocentrista, onde o pensamento religioso domina todas as esferas humanas. Contudo, no filme, Zenone e seus seguidores são mostrados como fanáticos religiosos crédulos na proteção divina, que não se concretiza, por exemplo, na passagem de uma ponte. Brancaleone é um Dom Quixote da comédia italiana, mas o Quixote do século XVII, cômico, síntese de uma sátira, mas fiel ao contexto histórico.

Trailer do filme

Bate-papo sobre História em Quadrinhos e Cinema

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Link do evento no facebook: https://www.facebook.com/events/681586658616551/


Bate-papo sobre Crítica Cinematográfica

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Bate-papo sobre Crítica Cinematográfica com o jornalista e crítico de cinema Christian Petermann, com o produtor audiovisual Fernando Reis Coelho, dono do site "Tem um coelho no cinema", e com a mediação de Breno Rodrigues de Paula, dono do site Travessa Cinematográfica" (www.travessacinematografica.com.br).
Local: SESC Araraquara
Data: 11/03/2015 (quarta-feira)
Horário: 20h00
Gratuito



Os Relatos Selvagens Humanos

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Nas formas artísticas breves, dentro da literatura o conto possui uma posição de destaque com narrativas curtas e devido a sua síntese dos meios narrativos. O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), juntamente com o seu conterrâneo Julio Cortázar (1914-1984), é um dos maiores contista da literatura universal ao lado de nomes como Edgar Allan Poe (1809-1849), Machado de Assis (1839-1908) e Guy de Maupassant (1850-1893). O cineasta argentino Damián Szifron (1975-) também se utiliza de narrativas breves através de seis relatos banais do cotidiano social para realizar o filme “Relatos Selvagens” (Relatos salvajes, 2014), fundindo gêneros como humor, drama e suspense. 

Nos dois primeiros relatos, a vingança é a responsável pelas ações selvagens, ou melhor primitivas, das personagens. No primeiro, “Pasternak”, em um avião tem-se um grupo de passageiros que descobrem possuir uma conexão em comum: a relação com o músico Gabriel Pasternak. Todos os responsáveis pelos traumas e frustrações de Pasternak estão a bordo, a tragédia através da vingança é inevitável. No segundo relato, “Las ratas” (Os ratos), uma garçonete chamada Moza reconhece o político que fora responsável pelas tragédias familiares da jovem. Ela perdeu o pai, que se suicidou. Agora, no restaurante, há a possibilidade de vingança, que pode ocorrer com venenos para ratos na comida servida ao político. 

No relato “Él más fuerte” (O mais forte), tem-se a diferenciação social inicial de dois homens: um possui um carro importado e todos os apetrechos da sua classe social enquanto um outro está em uma posição social inferior. No entanto, ambos estão em posição de igualdade em um duelo selvagem de força física e agressões mútuas, no qual a tecnologia acaba servindo como armas primitivas para a agressão. Em “Bombita” (Bombinha), há o relato da história do engenheiro Simon Fisher que se revolta contra o departamento de trânsito de Buenos Aires por guinchar indevidamente o seu carro. A revolta de Simon contra a burocracia das instituições sociais e a “coisificação do homem” cria uma narrativa similar à de Joseph K do romance o “O processo”, de Franz Kafka

No quinto relato, “La propuesta” (A proposta), o jovem de família rica Santiago atropela e mata uma mulher grávida na principal via de Buenos Aires. Fugindo, e sem prestar socorro à vítima, Santiago chega à casa dos pais, onde com a ajuda do advogado da família começam a arquitetar um plano para culpar um humilde caseiro, que recebe uma proposta para assumir o crime. Assim, as primitivas sobrevivência e cobiça se tornam a base do relato. Em “Hasta que la muerte nos separe” (Até que a morte nos separe), há o relato de uma noiva que descobre na festa do casamento que o marido a trai, revoltada começa a destacar e a atacar todas as máscaras sociais para, assim, se libertar e praticar o mais selvagem e primitivo de todos os atos: o sexo. 

O homem é um animal, que ao criar o contrato social, ou seja, um conjunto de regras e leis para o convívio social, foi se afastando do seu estágio e de condutas selvagens e primitivas. “O contrato social” teve como objetivo “domar o homem”, dominar os seus instintos mais primitivos (e como somos também animais) animalescos e instintivos, impondo modelos de condutas pretensamente racionais. Em “Relatos selvagens” há justamente relatos baseados em condutas “selvagens”, primitivas, mas não se pode levar em conta o indevido aspecto pejorativo do termo. No filme, as condutas humanas são despidas de qualquer marca de civilidade e não são regidas pelo contrato social que é quebrado pela vingança, pelo instinto de sobrevivência, pela revolta e pela libertação. 

A luta das personagens em “Relatos selvagens” é contra o “Leviatã”, ou seja, contra o contrato social, todas as ações, em menor ou maior grau, questionam as relações sociais estabelecidas e/ou as instituições sociais. Pasternak se revolta contra a terapia, a escola de música, as relações familiares e sociais; a garçonete se revolta contra a estrutura social que privilegia um político sem caráter. Já Bombita ataca o “Leviatã”, o Estado, que com as suas repartições pública burocráticas dominam o homem. O contrato social não doma o homem, pelo contrário, ele coloca máscaras sociais para encobrir os instintos humanos primitivos e somente com todas as máscaras despidas que o amor pode surgir na sua forma plena e primitiva através do sexo, como ocorre com o relato da noiva Romina. 

O filme “Relatos selvagens” com os seus seis relatos destaca o ser humano motivado por impulsos selvagens (primitivos) em um mundo pretensamente baseado no contrato social e na razão. As ações relatadas são selvagens porque atacam direta e/ou indiretamente a ordem social e as instituições sociais. Mas, a selvageria é lúcida, de modo que a sociedade é a desordem, o caos para o homem e, muitas vezes, sem sentido, como a burocracia. O contrato social e o positivismo não cumpriram o que prometeram, cabe ao homem voltar a ser um “bom selvagem”, como ocorre com os relatos de Gabriel Pasternak, Moza, Bombita e Romina.

Trailer do filme:


Viagem Mítica, Literária e Cinematográfica a Citera

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Durantes os seus doze trabalhos, Hércules viajou do Peloponeso ao Cáucaso, do Jardim das Hespérides ao mundo dos mortos. Por sua vez, na obra “Odisseia”, de Homero, tem-se a viagem de Odisseu na tentativa de retornar a Ítaca após a Guerra de Troia. Já Marco Polo relata as suas experiências nas “viagens” ao oriente através da rota da seda. Durante o período das Grandes Navegações portuguesas e espanholas nos séculos XV e XVI, há “os relatos de viagens” sobre o continente americano, o extremo oriente e as ilhas do pacífico. O tema da viagem é recorrente em narrativas míticas, na literatura e no cinema. “A viagem a Citera” é um tema que influenciou a pintura com Jean-Antoine Watteau, a literatura com Charles Baudelaire e o cinema com Theo Angelopoulos. 

Citera é uma ilha grega situada no Mar jônico defronte ao Peloponeso. Durante séculos, a ilha foi um entreposto fenício para o comércio com cidades estados gregas e com o restante do Mar Mediterrâneo. Os fenícios fundaram na ilha um templo dedicado à deusa Astarte, símbolo feminino da fertilidade e da sexualidade. Na mitologia grega, Citera foi o local de nascimento da deusa Afrodite, que teria nascido da espuma (aphrós) do mar quando a divindade suprema Cronos cortou a genitália de Urano e a arremessou à costa da ilha. Segundo a tradição, a ilha de Citera é um local idílico, harmonioso, dotado de beleza singular, natural, onde homem e natureza estão em comunhão, servindo de inspiração para artistas ao longo do tempo. 

O pintor francês Jean-Antoine Watteau (1684-1721) foi um dos principais representantes do estilo de pintura conhecido como Rococó surgido na França entre as estéticas barroca e o arcadismo, sendo considerado como um “barroco profano”, ou seja, sem a influência religiosa da arte barroca, mas com a sua ornamentação. No quadro “Peregrinação à ilha de Citera” (1717), Watteau recupera elementos da viagem mítica à Citera. Na obra, tem-se um grupo de pessoas no santuário da deusa Afrodite na ilha. Há casais com roupas opulentas, a natureza e no canto direito do quadro uma estátua de Afrodite. Ao fim, o que se tem como tema na “peregrinação a Citera” é uma peregrinação à ilha do amor, de Afrodite. 

O poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) é um “lírico no auge do capitalismo” sendo o responsável, segundo o filósofo alemão Walter Benjamim, pela modernidade artística surgida a partir da segunda metade do século XIX. O seu livro de poesia “As flores do mal” (1ª edição em 1857 e a 2ª edição em 1860) é o ponto de partida para a modernidade artística tendo como base as novas relações sociais que se estabelecem na sociedade capitalista, industrial e urbana. O poema “Uma viagem a Citera” é uma ode à ilha de Afrodite. O poeta teve como influência o quadro de Watteau de onde se inspirou nos seguintes versos: “Ilha dos corações em festiva embriaguez! / Da antiga Vênus nua a imagem soberana.” 

O cineasta grego Theo Angelopoulos (1936-2012) faz uma homenagem à ilha no filme “Viagem a Citera” (1984). No filme, tem-se a história de Spyro que passa trinta e dois anos no exílio na União Soviética após militar do lado da esquerda na Guerra civil grega na década de 1940. Com o retorno, vem o contato com a família, sua esposa Katarina, o filho Alexandros, que é um cineasta melancólico; o estranhamento do reencontro com um ente querido depois de três décadas. No plano social, Spyro tenta compreender e se adaptar à sociedade grega, o que se mostra problemático, pois ainda ele guarda os ideais socialistas que acabam em conflito com os da sociedade, que tenta se modernizar tendo como base ideias liberais. 

Em “Viagem a Citera”, Theo Angelopoulos trabalha a relação do passado com a construção do presente, Spyro não se adapta e não pertence mais ao meio e ao presente, sua história é apenas a memória de poucos que a viveram e a dos que estão no cemitério, como a maioria dos seus companheiros de luta. Angelopoulos se uniu ao escritor e roteirista italiano Tonino Guerra (1920-2012) para escrever o roteiro do filme, que já havia trabalhado com os melhores cineastas italianos da década de 1960, tais como Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Vittorio De Sicca, Elio Petri, Mario Monicelli, com os irmãos Paolo e Vittorio Taviani, bem como com o cineasta soviético Andrei Tarkovski no filme “Nostalgia”. 

Por fim, Citera é uma ilha grega, um tema universal. Fonte de inspiração de narrativas míticas como o mito do nascimento da deusa Afrodite, ou mesmo tema da pintura dos artistas Rococós franceses do século XVIII com Jean-Antoine Watteau, ou ainda da poesia do “poeta maldito” Charles Baudelaire na segunda metade do século XIX, como também do cinema do diretor grego Theo Angelopoulos no século XX. A alusão a Citera se constrói a partir do arquétipo do lugar ideal, idílico, perfeito, não importa se ela seja feita no mito, na pintura, na poesia ou no cinema, viajar a Citera é preciso e recorrente para a humanidade que se sustenta na Arte: “Ilha do verde mirto flores vistosas,/Venerada afinal por todas as nações”.

A Divina Comédia de Arnaldo Baptista

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Na cosmovisão medieval, baseada no modelo aristotélico-ptolomaico de organização do universo a partir de círculos concêntricos, tem-se o planeta Terra ao centro. Baseando-se no modelo medieval, o poeta italiano Dante Alighieri (1225-1321) escreveu o seu poema épico “A divina comédia” (1304-1321) narrando a jornada da personagem de próprio pelos “três reinos do além túmulo”: inferno, purgatório e céu. Assim, o percurso do herói é o caminho pelos três reinos, sendo um feito grandioso, épico. No caso do músico brasileiro Arnaldo Dias Baptista (1948-), o percurso é alterado para céu, inferno e purgatório, como mostrado no documentário “Loki” (2008), dirigido por Paulo Henrique Fontenelle

Loki” é um documentário biográfico sobre a vida e obra do músico brasileiro Arnaldo Baptista, mais conhecido por integrar a banda Os Mutantes juntamente com o seu irmão Sérgio Dias (1950-) e Rita Lee (1947-). O documentário mostra as diversas etapas da vida de um gênio, considerado louco pelas suas baladas musicais inicialmente roqueiras, depois tropicalistas e psicodélicas. Sua vida atual na região rural de Juiz de Fora é mostrada, passando pelo início da sua carreira musical em meados da década de 60, ao tropicalismo a partir do Festival da Música Popular brasileira de 1967, indo até à saída de Rita Lee dos Mutantes, em 1973, como também a gravação do disco “Loki”, terminando com o retorno dos Mutantes em 2007 no show em Barbican Hall, em Londres. 

No chão de asfalto/Ecos, um sapato/Pisa o silêncio caminhante noturno”. Arnaldo Baptista caminhante vai, há luzes, câmeras, com Sérgio e Rita revolucionam a música popular brasileira ao dar características particulares, brasileiras à música pop, principalmente ao Rock, que era apenas copiado sem identidade pela Jovem guarda. Por um tempo, instrumentos eletrificados tais como guitarras elétricas eram menosprezados pelos compositores da MPB tradicional. Somente em 1967, no Festival de música popular brasileira que o estigma é quebrado quando Caetano Veloso é acompanhando pela banda de rock argentina Beat Boys na música “Alegria, alegria” e Gilberto Gil é acompanhado pelos Mutantes na música “Domingo no parque”. Surge a Tropicália. 

O Tropicalismo é um dos principais movimentos artísticos brasileiros do século XX, permeando linguagens como as artes plásticas com Hélio Oiticica; o teatro com José Celso Martinez Corrêa; o cinema com Joaquim Pedro de Andrade; a música com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes e Tom Zé. O objetivo foi fundir elementos da música popular brasileira, nos seus mais diversos ritmos, com elementos da música pop, principalmente o rock. O movimento foi antropofágico, assimilando múltiplas influências e estilos para criar uma expressão artística brasileira, aliando o estrangeiro com o nacional, o particular com o universal, sendo os Mutantes os responsáveis por trazer a música pop para dentro do movimento a partir de Arnaldo Baptista

Nas narrativas mitológicas, a descida ao mundo inferior é parte de uma busca superior ou feito heroico como ocorreu com Teseu, Hércules e Eneias; representa ainda a busca da amada no mito de Orfeu; ou mesmo a descoberta do caminho de volta para casa no caso de Odisseu. Para Arnaldo Baptista, a queda ocorre em no dia 31 de dezembro de 1981, ao tentar se suicidar jogando-se do quarto andar de um prédio. No entanto, o seu inferno astral se inicia em 1973 com a separação de Rita Lee da sua vida amorosa e dos Mutantes. No ano seguinte, em 1974, “nos portões do inferno”, lança a sua obra prima “Loki”, como uma sinfonia da dor pela perda de Rita, um disco com músicas melancólicas e letras com lirismo poético. 

Depois da queda, Arnaldo passa a se recuperar e a purgar-se dedicando-se à pintura e às artes plásticas, isolando-se em Juiz de Fora, Minas Gerais. Faz, assim, a “reclusão do herói”, volta-se para música em poucas ocasiões como o lançamento do disco “Disco voador” em 1987. Na década de 1990, seu nome volta a ecoar quando o músico da banda grunge Nirvana Kurt Cobain declara a sua admiração por Arnaldo e pela música dos Mutantes, mesma opinião do cantor e compositor Beck, David Byrne e do filho de John Lennon, Sean Ono Lennon, que tocou com Arnaldo em 2000 no Free Jazz Festival. A volta triunfal do herói ocorre em 2007 em Londres com o show dos Mutantes no Barbican Hall. 

Assim como Dante teve que percorre o inferno, purgatório e céu para concluir o seu objetivo e concretizar o seu feito grandioso, Arnaldo Baptista teve o seu auge com os Mutantes e com a sua relação com Rita Lee. Depois foi “aos portões do inferno” com os discos “Loki” (1974) e “Singin' alone” (1981). Virou modelo e os cânticos vieram de seus pares com homenagens e exaltações dos seus feitos. Ao Arnaldo, após o seu percurso do herói, cabe se tornar um mito, no qual as ações e o seu nome vencem as ações do tempo e é cantada pelas gerações futuras. Nas loucuras de Quixote, Arnaldo se identifica: “A vida é um moinho/É um sonho o caminho” e, por fim, ele criou: “Eu juro que é melhor/Não ser o normal/Se eu posso pensar que Deus sou eu”.

Trailer do documentário

"Ida", de Pawel Pawlikowski

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Na língua portuguesa, a palavra “ida” é um substantivo feminino, dando a noção no seu significado de locomoção espacial. No filme “Ida” (2014), do diretor polonês Pawel Pawlikowski (1957-), a palavra é gravada em maiúsculo por ser um substantivo próprio. Ida é uma jovem  órfã que quer se tornar freira na Polônia do início da década de 1960; no entanto, antes de fazer os seus votos, ela deve se encontrar com a sua única parenta viva: sua tia. Do encontro entre sobrinha e tia, a narrativa se desenvolve com ambas tentando descobrir e/ou reviver a história dos seus entes queridos, que foram exterminados durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), devido à ocupação nazista. 

Ao completar dezoito anos, Anna deixa a rotina austera do convento, a madre superior ordena-lhe que se encontre com sua tia, chamada Wanda Cruz que vive em Varsóvia, capital polonesa. Chegando à capital, a jovem noviça se depara com uma mulher livre, libertina, autônoma, que defende o regime soviético, sendo juíza e tendo lutado pela relação da Polônia com a União Soviética após o fim da grande guerra. Através da tia, Anna descobre que o seu verdadeiro nome é Ida Lebenstein, de origem judaica, e que seus pais foram exterminados pelos nazistas durante a ocupação da Polônia. Ida pede para visitar o túmulo e a antiga morada de seus parentes. 

Wanda e Ida partem pelo interior da Polônia em busca do passado, de modo que para retroceder no tempo é preciso percorrer o espaço, revisitar a memória, seja pessoal, ou mesmo coletiva. No percurso, Ida descobre onde os seus pais moravam e como foi a agonia de tentar sobreviver à ocupação alemã, sendo judeus, eram alvos dos nazistas. Encontram a cova rasa dos seus antepassados em um bosque, Wanda quer enterrá-los em um cemitério judaico. O interessante é que o filme intercala a história particular com a história coletiva, pois os dramas da família de Ida são os mesmos de diversos outros indivíduos durante os anos de conflito e ocupação, deixando marcas na própria sociedade polonesa. 

O filme “Ida” se destaca pela sua fotografia em preto e branco. A base da fotografia é a luz, no contraste entre luz e sombra, claro e escuro, tem-se não apenas o retorno aos primórdios do Cinema, mas também uma estética de valorização da imagem, dos elementos que a compõe na sua pureza, simplicidade. No contraste entre a fusão de todas as cores e a ausência delas, o plano cinematográfico se mostra belo, perfeito, aguçando o prazer dos olhos, criando um cinema de valorização da imagem, de contemplação, e não de ação, no qual o plano tem uma mínima duração em nome da proposta de cortes rápidos para gerar agilidade, como ocorre nos filmes de ação. Assim, o plano tem a sua duração, transcorrendo pelo tempo. 

O diretor Pawel, em “Ida”, desautomatiza a posição padrão dos objetos no plano cinematográfico. Em um plano, recorrentemente, coloca-se o elemento principal próximo ao centro, ou nas extremidades, se dividirmos a imagem em três partes horizontalmente da esquerda para a direita, a personagem ficaria na extremidade oposta à direção do seu olhar; todavia, o diretor coloca as personagens no lado oposto, ficando um espaço livre atrás. Verticalmente, há diversos planos com divisão em três partes, a personagem fica na primeira de baixo para cima, criando um plano com um espaço acima da cabeça da personagem que ocupa 2/3 da imagem. A nova disposição das personagens no plano causa estranhamento no espectador, desautomatizando o olhar. 

No início do filme, no mosteiro, a rotina das freiras e das noviças é simples com pequenos trabalhos: como o restauro de uma estátua, o preparo do alimento, o banho. Cada ação é ressaltada pelo seu som, não há comunicação entre as personagens, por isso, seja o som dos talheres sobre os pratos, ou do passar da mão na conta do terço, é ressaltado. Na cidade, Ida se encanta com uma jazz band, a música é libertação. O trítono, abolido pela igreja católica e domado pela escala cromática da música tonal, é a base da “música profana”, é a liberdade ecoando pela tensão com o sagrado. Ida conhece o sexo, a bebida, o cigarro, a música, mas não perde a sua fé, assim como o personagem Andrei Rublev, do cineasta soviético Andrei Tarkovski

Uma obra artística possui qualidades não apenas pelo que ela expressa, mas também pelo que suscita, ao exigir um espectador ativo, que dialogue com ela, vendo-a como uma “obra aberta”. O filme “Ida”, de Pawel Pawlikowski, trata da história particular de Ida e Wanda, como também da história coletiva polonesa pós Segunda Guerra Mundial. Ambas as personagens passam a descobrir e a reviver o passado, a primeira como conhecimento e libertação; enquanto a segunda como dor e angústia. No filme há níveis de significação e, ao irmos mais além, nas camadas mais profundas de interpretação, abre-se, como diria o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), o “Aleph”, a obra se abre para um “infinito de possibilidades”.

Trailer do filme "Ida":

“Boyhood”: Um Filme Sobre o Tempo

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A mudança das estações, o envelhecimento do corpo são as duas principais formas de percepção da passagem do tempo. Elemento que fascina, angustia e encanta a mente humana. Há a tentativa de compreendê-lo, domá-lo, manipulá-lo, na maioria das vezes sem êxito, com exceção da Arte e, principalmente, do Cinema que pode retê-lo. O filme “Boyhood: da infância à juventude” (EUA, 2014) retêm o tempo na sua duração, o diretor estadunidense Richard Linklater (1960-) filma a vida de um garoto durante doze anos, dos seus sete aos dezoito anos de idade. Entre 2002 a 2013, o elenco se reunia uma vez por ano, durante três a quatro dias, para filmar a trama e mostrar as suas transformações. 

No início do filme “Boyhood: da infância à juventude”, Mason (Ellar Coltrane) é um garoto de sete anos que mora com a irmã Samantha (Lorelei Linklater) e com a mãe Olivia (Patricia Arquette) em uma casa simples em alguma cidade do estado do Texas. O seu pai Mason (Ethan Hawke) havia deixado a família alguns anos antes. Seus setes anos são marcados pela mudança de cidade e a tentativa de compreensão do mundo a sua volta. Ao final do filme, Mason tem dezoito anos e está nos seus primeiros dias na faculdade e na fase adulta, morando sozinho em uma nova cidade, com novas pessoas e novas experiências. 

Como é preciso atar as duas pontas, o filme mostra de forma linear a partir de um enredo simples, sem tramas ou jogos temporais, a vida de Mason e de sua família. O seu pai o visita no seu oitavo ano. Com nove anos ele vai a uma aula da mãe, que está tentando se formar em psicologia, e percebe a relação dela com o professor. Vai ao lançamento do livro “Harry Potter e o enigma do príncipe”. No ano seguinte, sua mãe se casa com o professor universitário, Mason passa um final de semana na casa do pai. Com onze anos, há o início da atração e do descobrimento da sexualidade, na escola recebe um bilhete de uma pretensa namorada, Olivia se separa. Aos treze anos, Mason acampa com o pai.

Aos quatorze anos, sua mãe se torna professora universitária, sua irmã adolescente. Mason está na oitava série e bebe a primeira cerveja. No seus aniversário de quinze anos há um bolo, festa, e a visita do pai, o contato com os avós maternos em uma típica casa e família texana. Com dezesseis, Mason se encanta pela fotografia, está entre a Arte e a obrigação de fotografar, tendo que se relacionar com um novo padrasto veterano da guerra do Iraque. No ano seguinte, arruma trabalho em uma lanchonete e visita a irmã na faculdade, namora o seu grande amor da adolescência. Por fim, com dezoito anos, termina o colegial, vai para a faculdade. 

O filme mostra a vida de Mason a partir de dois importantes períodos: a infância e a juventude. O primeiro é o período de descobertas, é a percepção do mundo ao redor de um ponto de vista de baixo para cima, o que o diretor coloca como recorrente através da câmera alta e câmera baixa, alternando com frequência o plano e contra-plano, o que reforça o ponto de vista da personagem. As ações dos adultos condicionam a de Mason, cabe-lhe apenas segui-las. Na adolescência, Mason constrói a sua identidade, seja afirmando uma aparência com cabelos longos ou unhas pintadas, ou mesmo negando alguma prática, ou ainda expressando-se a partir da fotografia. 

O diretor Richard Linklater mostra a passagem do tempo através das transformações físicas que ele provoca nas personagens: no envelhecimento da pele, na transformação do cabelo, alternando em longos e curtos, como também na direção de arte com objetos de cenas típicos e representativos de cada ano, seja um computador, um console de videogame, ou mesmo acontecimentos históricos para os Estados Unidos como a invasão do Iraque em 2003, mesmo as eleições presidenciais de 2008, que elegeram Barack Obama como presidente. Outro elemento que situa historicamente a narrativa é a trilha sonora com músicas como “Yellow” do Coldplay, “She’s long gone” da banda The Black Keys, e músicas de bandas como The Flaming Lips, Wilco e Arcade Fire

Ver as personagens envelheceram durante doze anos ao longo do filme “Boyhood: da infância à juventude” é uma experiência para o espectador, pois o tempo está condensado e apreendido. O cineasta francês François Truffaut (1932-1984) também mostra a passagem da vida do seu personagem Antoine Doinel, interpretado pelo ator Jean-Pierre Léaud (1944-), ao longo de cinco filmes: “Os Incompreendidos” (1959), “O Amor aos Vinte Anos” (1962), “Beijos Proibidos” (1968), “Domicílio Conjugal” (1970) e “Amor em Fuga” (1979). Assim, pode-se acompanhar a vida de Antoine Doinel dos seus quinze anos até os trinta e poucos anos, apreendendo o tempo e diluindo-o em cinco filmes. 

O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) formulou o conceito de “la durée”, ou duração, no qual o tempo é caracterizado pela duração de momentos temporais que compõem uma experiência humana. O filme “Boyhood: da infância à juventude” mostra a duração, a natureza própria do tempo enraizada no envelhecimento do corpo, nas experiências e nas relações pessoais humanas. O Cinema é uma Arte temporal, Richard Linklater fez um filme sobre o tempo, o tempo presente, a vida presente, mas contínuo, sendo a matéria do filme o próprio tempo.

Trailer do filme