A Divina Comédia de Arnaldo Baptista

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Na cosmovisão medieval, baseada no modelo aristotélico-ptolomaico de organização do universo a partir de círculos concêntricos, tem-se o planeta Terra ao centro. Baseando-se no modelo medieval, o poeta italiano Dante Alighieri (1225-1321) escreveu o seu poema épico “A divina comédia” (1304-1321) narrando a jornada da personagem de próprio pelos “três reinos do além túmulo”: inferno, purgatório e céu. Assim, o percurso do herói é o caminho pelos três reinos, sendo um feito grandioso, épico. No caso do músico brasileiro Arnaldo Dias Baptista (1948-), o percurso é alterado para céu, inferno e purgatório, como mostrado no documentário “Loki” (2008), dirigido por Paulo Henrique Fontenelle

Loki” é um documentário biográfico sobre a vida e obra do músico brasileiro Arnaldo Baptista, mais conhecido por integrar a banda Os Mutantes juntamente com o seu irmão Sérgio Dias (1950-) e Rita Lee (1947-). O documentário mostra as diversas etapas da vida de um gênio, considerado louco pelas suas baladas musicais inicialmente roqueiras, depois tropicalistas e psicodélicas. Sua vida atual na região rural de Juiz de Fora é mostrada, passando pelo início da sua carreira musical em meados da década de 60, ao tropicalismo a partir do Festival da Música Popular brasileira de 1967, indo até à saída de Rita Lee dos Mutantes, em 1973, como também a gravação do disco “Loki”, terminando com o retorno dos Mutantes em 2007 no show em Barbican Hall, em Londres. 

No chão de asfalto/Ecos, um sapato/Pisa o silêncio caminhante noturno”. Arnaldo Baptista caminhante vai, há luzes, câmeras, com Sérgio e Rita revolucionam a música popular brasileira ao dar características particulares, brasileiras à música pop, principalmente ao Rock, que era apenas copiado sem identidade pela Jovem guarda. Por um tempo, instrumentos eletrificados tais como guitarras elétricas eram menosprezados pelos compositores da MPB tradicional. Somente em 1967, no Festival de música popular brasileira que o estigma é quebrado quando Caetano Veloso é acompanhando pela banda de rock argentina Beat Boys na música “Alegria, alegria” e Gilberto Gil é acompanhado pelos Mutantes na música “Domingo no parque”. Surge a Tropicália. 

O Tropicalismo é um dos principais movimentos artísticos brasileiros do século XX, permeando linguagens como as artes plásticas com Hélio Oiticica; o teatro com José Celso Martinez Corrêa; o cinema com Joaquim Pedro de Andrade; a música com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes e Tom Zé. O objetivo foi fundir elementos da música popular brasileira, nos seus mais diversos ritmos, com elementos da música pop, principalmente o rock. O movimento foi antropofágico, assimilando múltiplas influências e estilos para criar uma expressão artística brasileira, aliando o estrangeiro com o nacional, o particular com o universal, sendo os Mutantes os responsáveis por trazer a música pop para dentro do movimento a partir de Arnaldo Baptista

Nas narrativas mitológicas, a descida ao mundo inferior é parte de uma busca superior ou feito heroico como ocorreu com Teseu, Hércules e Eneias; representa ainda a busca da amada no mito de Orfeu; ou mesmo a descoberta do caminho de volta para casa no caso de Odisseu. Para Arnaldo Baptista, a queda ocorre em no dia 31 de dezembro de 1981, ao tentar se suicidar jogando-se do quarto andar de um prédio. No entanto, o seu inferno astral se inicia em 1973 com a separação de Rita Lee da sua vida amorosa e dos Mutantes. No ano seguinte, em 1974, “nos portões do inferno”, lança a sua obra prima “Loki”, como uma sinfonia da dor pela perda de Rita, um disco com músicas melancólicas e letras com lirismo poético. 

Depois da queda, Arnaldo passa a se recuperar e a purgar-se dedicando-se à pintura e às artes plásticas, isolando-se em Juiz de Fora, Minas Gerais. Faz, assim, a “reclusão do herói”, volta-se para música em poucas ocasiões como o lançamento do disco “Disco voador” em 1987. Na década de 1990, seu nome volta a ecoar quando o músico da banda grunge Nirvana Kurt Cobain declara a sua admiração por Arnaldo e pela música dos Mutantes, mesma opinião do cantor e compositor Beck, David Byrne e do filho de John Lennon, Sean Ono Lennon, que tocou com Arnaldo em 2000 no Free Jazz Festival. A volta triunfal do herói ocorre em 2007 em Londres com o show dos Mutantes no Barbican Hall. 

Assim como Dante teve que percorre o inferno, purgatório e céu para concluir o seu objetivo e concretizar o seu feito grandioso, Arnaldo Baptista teve o seu auge com os Mutantes e com a sua relação com Rita Lee. Depois foi “aos portões do inferno” com os discos “Loki” (1974) e “Singin' alone” (1981). Virou modelo e os cânticos vieram de seus pares com homenagens e exaltações dos seus feitos. Ao Arnaldo, após o seu percurso do herói, cabe se tornar um mito, no qual as ações e o seu nome vencem as ações do tempo e é cantada pelas gerações futuras. Nas loucuras de Quixote, Arnaldo se identifica: “A vida é um moinho/É um sonho o caminho” e, por fim, ele criou: “Eu juro que é melhor/Não ser o normal/Se eu posso pensar que Deus sou eu”.

Trailer do documentário

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