Cine Campus: Federico Fellini

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As Noites de Cabíria

Ficha técnica
Título original: Le Notti di Cabiria
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Pier Paolo Pasolini
Gênero: Drama
Tempo de duração: 115 min.
Ano de lançamento (Itália): 1957
Produção: Dino De Laurentis
Música Original: Nino Rota, Pasquale Bonagura
Fotografia: Aldo Tonti, Otello Martelli
Edição: Leo Cattozzo
Design de Produção: Piero Gherardi
Direção de Arte: Brunello Rondi
Figurino: Piero Gherardi

As Noites e os Dias de Cabiria

Breno Rodrigues de Paula

Cabiria é Cabiria. Cabiria é Giulietta Masina. Cabiria é Giulietta Masina Fellini. “As Noites de Cabiria” (Le Notti di Cabiria, Itália, 1957) é um dos filmes mais premiados do grande cineasta italiano Federico Fellini (1920 - 1993), dentre os principais prêmios, recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro e Giulietta Masina ganhou o prêmio de melhor atriz do Festival de Cannes de 1957. Em um período de nove anos (de 1954 a 1963), Fellini teve o seu auge criativo com a realização de quatro filmes: “A Estrada da Vida” (La Strada, 1954); “As Noites de Cabiria” (Le Notti di Cabiria, 1957); “A Doce Vida” (La Dolce Vita, 1960) e “Fellini – 8 ½ ” (1963). Nos dois primeiros filmes, há a parceria de Fellini com a sua esposa Giulietta Masina, nos dois últimos, há a parceria com o seu alterego Marcelo Mastroianni. A narrativa de “As noites de Cabiria” se desenvolve a partir de dois pólos: do sagrado e do profano e tem Giulietta com trunfo. Neste filme, Fellini conta ainda com a colaboração do polêmico cineasta Pier Paolo Pasoline.

Cabiria é uma prostituta sonhadora-, ingênua, que apenas busca a sua felicidade em Roma. Almeja um amor sincero, quer encontrar um homem honesto que a ame-, encontra apenas “canalhas”. Na primeira cena do filme, o seu namorado Giorgio (Franco Fabrizi) rouba a sua bolsa e a empurra no rio, afogando-se-, é salva por algumas crianças. Desiludida, volta a trabalhar-, faz “ponto” nas ruas de Roma. Após uma discussão com uma outra prostituta louca de meia-idade, Cabiria se dirige para a Via Venetto, a região mais rica de Roma, onde se encontra com o famoso ator Alberto Lazzari (Amedeo Nazzari), que havia brigado com a sua namorada Jessy (Dorian Gray). Cabiria passa a noite com ele, ficam conversando apenas. No dia seguinte, ela volta a sua rotina nas ruas, até que conhece Oscar (François Périer) em um show de variedades. Oscar diz-se apaixonado, começam a se encontrar com freqüência. Tudo caminha para um final feliz, mas o filme ainda possui traços neo-realistas. Oscar pede Cabiria em casamento, ela aceita-, vende a casa, junta uma grande quantia de dinheiro. Ao final, Oscar rouba o dinheiro e foge. A história se repete: a primeira vez em tragédia, a segunda vez em farsa.

A estrutura do filme segue os preceitos neo-realistas. Há apenas um núcleo narrativo, visto que acompanhamos apenas a história de Cabiria. A narrativa se configura a partir de episódios que se contrastam ou se complementam. Há uma forte presença da estética neo-realista. As ações são bastante dramatizadas, gerando um efeito sinestésico no público, que vai da angústia pelos infortúnios da prostituta à esperança de felicidade de Cabiria-, com a freqüente quebra de expectativa. Mas em “A Estrada da Vida” e em “As noites de Cabiria”, Fellini começa a desenvolver e a configurar alguns aspectos fílmicos que culminariam com o abandono do neo-realismo e o advento do adjetivo (o correto seria dizer estética) felliniano. Pode-se afirmar, desta forma, que nestes dois filmes, há o neo-realismo felliniano. Um neo-realismo que destoa, em termos, do neo-realismo representado por Vittorio de Sicca, Roberto Rossellini e Luchino Visconti.

Os dramas de Cabiria possuem uma base sociológica, mas também existencialista. Ela não representa uma classe, ela não é um símbolo-, pelo contrário, não é uma personagem ‘tipo”, ela é totalmente individualizada, única. Se seguisse a estética neo-realista clássica, Fellini deveria retratar as relações entre os indivíduos em um contexto histórico definido economicamente e socialmente. Seria retratado os dramas sociais de uma prostituta. Fellini faz isso, mas também vai além: retrata os dramas, mas também os anseios e os sonhos de Cabiria. Todo o momento, há esperanças, não há o hermetismo neo-realista, com a sua quebra de expectativa e angústia plena. Se o filme fosse um neo-realista clássico, Fellini o terminaria no momento em que Oscar rouba a bolsa, fazendo a história se repetir. Mas não, Cabiria dorme, acorda-, encontra um grupo de jovens Artistas, que tocam instrumentos musicais, cantam-, dançam. A fisionomia de Cabiria começa a mudar, em meio às lágrimas-, dá um sorriso. Ela olha sorridente para a câmera, há a quebra do efeito de realidade-, algo inadmissível para a estética neo-realista. O filme acaba, não há angustia-, há esperança.

Um aspecto interessante é que, mesmo tendo a “noite” como título, a narrativa do filme possui dois eixos: a noite e o dia que, de certa forma, perpassam pelos pólos do sagrado e do profano. O filme não narra apenas as noites de Cabiria, há também os dias. A noite pertence ao nível do profano, da escuridão-, do nebuloso. Neste período do dia, Cabiria trabalha-, toma consciência da sua situação. O dia, por seu turno, representa o sagrado, a iluminação-, a pureza, pois nele, como salienta Nietzsche, está “o grande meio-dia”, ou seja, a afirmação e o conhecimento. Neste período, Cabiria busca resposta na religião, chega a ir numa procissão católica em busca de solução-, como se trata de Fellini, ela não as encontra.

Fellini constrói o sagrado e o profano de forma carnavalizada, na concepção bakhitiniana do termo. O sagrado está no reino do profano e o profano está no reino do sagrado. Algo que somente a Arte e a manifestação artística pode fazer. Ao longo do filme, nota-se restícios do sagrado no profano e vice-versa. Cabiria vai, durante o dia, a procissão, entra na igreja-, se confessa. Com ela vão um cafetão e seu tio (ladrão e traficante) com uma comitiva de prostitutas. Todos profanos em meio ao “sagrado”. Durante a noite, Cabiria trabalha, faz “ponto” nas ruas de Roma. Ela está em volto à cafetões, prostitutas, traficantes, no entanto, ela se destoa deste meio-, ela é ingênua, pura-, quase que santa. Cabiria se encaixaria na categoria de “prostitutas santas”, como Maria Madalena representada na bíblia e mais ainda no romance “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do escritor português José Saramago.

Cabiria entrou para o conjunto de grandes personagens da história do cinema ao lado de Hynkel, Ivan, Kane, Antoine Doinel, Gelsomina, Antônio das Mortes, Totó, Antonius Block, Monika. Em “As Noites de Cabiria”, Fellini retrata o universo da prostituição em Roma a partir de uma ótica que caminha do neo-realismo, passando para um neo-realismo felliniano, chegando a desenvolver, em menor parte, o adjetivo felliniano, principalmente no final do filme, que se assemelha e representa o que viria a ser o adjetivo, que podemos denominar como estética felliniana, a partir do filme 8 ½. No crepúsculo, não dá para diferenciar o dia da noite-, Cabiria sorri levemente para o espectador. Em Fellini, a Arte é crepuscular, o sagrado se confunde com o profano e vice-versa.



8 1/2

Ficha Técnica

Título Original: Otto e Mezzo
Gênero: Drama
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Ennio Flaiano, Federico Fellini, Tullio Pinelli e Brunello Rondi, baseado em estória de Federico Fellini e Ennio Flaiano
Tempo de Duração: 140 minutos
Ano de Lançamento (Itália): 1963
Estúdio: Cineriz / Francinex
Distribuição: Embassy Pictures Corporation
Produção: Angelo Rizzoli
Música: Nino Rota
Fotografia: Gianni Di Venanzo
Desenho de Produção: Piero Gherardi
Direção de Arte: Piero Gherardi
Figurino: Piero Gherardi
Edição: Leo Cattozzo

Elenco
Marcello Mastroianni (Guido Anselmi)
Claudia Cardinale (Claudia)
Anouk Aimée (Luisa Anselmi)
Sandra Milo (Carla)
Rossella Falk (Rossella)
Barbara Steele (Gloria Morin)
Madeleine LeBeau (Atriz francesa)
Eddra Gale (Saraghina)
Guido Alberti (Produtor)
Mario Conocchia (Diretor)
Bruno Agostini (Secretário do produtor)
Cesarino Miceli Picardi (Inspetor)
Jean Rougeul (Escritor)
Mario Pisu (Mezzabotta)

8 ½: o filme aberto de Federico Fellini

Breno Rodrigues

O escritor irlandês James Joyce (1882 - 1941) dizia que almejava escrever uma obra, na qual para entendê-la, os críticos e os estudiosos se debruçariam por séculos -, escreveu o romance Ulisses. Joyce conseguiu o que queria, seu romance é uma obra complexa em todos os seus aspectos, seja formais, conteudísticos, ou discursivo-, ela é totalmente “aberta” ou, utilizando a teoria de Humberto Eco, ela é uma “obra aberta”, na qual as possibilidades de análise e de estudo se encontram em um patamar muito elevado. O cineasta italiano Federico Fellini (1920 - 1993) dizia que almejava fazer um filme “simples” e “sincero”, um filme “divertido”, para se divertir-, fez 8 ½ (Itália, 1963). O filme divide a filmografia do grande cineasta italiano em antes e depois e se configura como uma das obras mais complexas da Sétima Arte.

8 ½ narra a tentativa do cineasta Guido (Marcello Mastroianni) de fazer um filme. Mas, há muitos obstáculos de ordem técnica, criativa e de ordem pessoal. Em meio a uma crise de inspiração, Guido tem que fazer escolhas, escrever o roteiro-, dar andamento às filmagens. No entanto, ele possui um bloqueio criativo, neste momento, ele se volta para lembranças da sua infância, para devaneios, que, ao invés de serem um escapismo, se mostram como uma solução para as suas dúvidas e uma explicação para os seus anseios profissionais e pessoais. Porém nunca é mostrado o filme sendo feito. Vê-se apenas o dia-a-dia de Guido como cineasta em crise de inspiração e sua relação com três mulheres: sua esposa Luisa (Anouk Aimée), sua amante Carla (Sandra Milo) e a sua musa Claudia (Claudia Cardinali).

Para o seu oitavo filme Fellini deu o nome de 8 ½ . Nos seus sete filmes anteriores: “Mulheres e luzes” (Luci Del verità, 1950); “Abismo de um sonho” (Le sceicco bianco, 1952); “Os Boas Vidas” (I Vitelloni, 1953); “A estrada da vida” (La strada, 1954); “A trapaça” (Il bidone, 1955); “As noites de Cabíria” (Le notti di Cabiria, 1957); “A doce vida” (La dolce vita, 1959); Fellini caminhou da estética neo-realista para uma estética cinematográfica própria, única e singular, desenvolvendo, nos seus filmes seguintes principalmente em “Fellini - Satyricon” (1969); “Os Palhaços” (I Clown, 1970); “Fellini - Amarcord” (973); e em “A cidade das mulheres” (La città delle donne, 980) o adjetivo “felliniano”.

A estética cinematográfica do Neo-realismo surgiu na Itália após a Segunda Guerra Mundial, com preceitos e regras claras e bem definidas, tais como locações externas; utilização de luz natural; captação direta de áudio e, no plano narrativo, uma narrativa simples e linear, com histórias e dramas de indivíduos inseridos na sociedade capitalista do pós-guerra. O Neo-realismo foi uma estética marcada pelos preceitos do marxismo. O filme deveria servir também como um instrumento, no qual seriam expostos todos os sistemas de contradições da sociedade capitalista. Ele seria um veículo de representação das angústias e do sofrimento da classe trabalhadora, como podemos notar no clássico filme de Vitório de Sicca “Ladrões de bicicletas” (Ladri di biciclette), como também no filme de Roberto Rossellini “Roma, cidade aberta” (Roma, città aperta, 1945), como ainda no filme de Luchino Visconti “A terra treme” (La terra trema, 1948) e, até mesmo, nos primeiros filmes de Federico Fellini.

No caso de Federico Fellini, o filme 8 ½ representa uma cisão com a estética do neo-realismo. Seus primeiros são fortemente influenciados pelo neo-realismo, contudo, a partir de “A estrada da vida” e de “As noites de Cabíria”, Fellini começou a desenvolver recursos e técnicas cinematográficas, além de narrativas, próprias. Estes dois filmes destoam-se do neo-realismo, mas não fogem, na medida em que o primeiro filme possui uma narrativa centrada em um casal de Artistas mambembes e errantes, chamados Gelsomina (Giulietta Masina) e Zampanò (Anthony Quinn), com seus dramas existenciais e com suas dificuldades de relacionamento consigo mesmos e com a sociedade. Já o segundo filme, narra a história de uma prostituta chamada Cabíria (Giulietta Masina) que vive em Roma. Ela é uma grande sonhadora que apenas quer encontra um amor sincero. Mas, freqüentemente, é iludida e enganada, além de roubada. Contudo, no final, sempre há esperança-, sua tristeza é substituída por um sorriso alegre, em meio a um grupo de jovens cantores e dançarinos que se divertem de forma pura.

Em 8 ½ a estética neo-realista é abandonada por completo e são sintetizados todos os elementos que Fellini vinha desenvolvendo. O cineasta italiano desenvolve marcas próprias, criando, desta forma, um estilo que o tornou inconfundível e o elevou a condição de um dos principais cineastas da história da Sétima Arte. Fellini dizia que todos os seus filmes são, de certa maneira, autobiográficos. Mas é a partir de 8 ½ que os elementos autobiográficos ganham uma dimensão estética. Fellini começa a impor à criação da obra fílmica, fortemente marcada pelo coletivismo, os traços do autor, ou seja os traços do gênio criador-, individual. Seus filmes passariam a ter o seu nome no título. A teoria do autor, representada pela figura do Diretor, amplamente defendida pela Nouvelle Vague francesa, foi levada ao extremo com Fellini. Além de um estilo singular e inconfundível, Fellini se tornou uma marca, um logotipo que aparecia nos letreiros dos filmes, como em “Fellini-Satyricon”, “Fellini-Amarcord”.

Em um primeiro nível de análise, 8 ½ é o filme autobiográfico de Fellini por excelência. Ele narra a história do cineasta Guido, interpretado pelo seu alterego Marcello Mastroianni, que encontra várias dificuldades para realizar um filme. As dificuldades, que Guido encontra, são as mesmas que Fellini se deparou para realizar 8 ½. Esta característica levou alguns críticos a dizer que 8 ½ é um filme concebido a partir do mis en abîme, ou seja, “o filme dentro de um filme”. A técnica do mis en abîme coloca em perspectiva, mas em escalas menores, os elementos da obra dentro dela mesma. Um exemplo da técnica seria o desenho de um brasão, que tem no seu interior, o desenho dele mesmo. As dificuldades encontradas por Fellini para realizar 8 ½ são as mesmas encontradas por Guido para realizar o seu filme. Por isso nunca vemos o filme de Guido, pois ele próprio é o filme. O seu filme é igual ao 8 ½ de Fellini, como se a realidade de Guido fosse uma escala menor da realidade empírica de Fellini, deste modo, o filme de Guido seria a sua realidade em uma escala menor.

Em um segundo nível, 8 ½ é um metafilme. Com a construção em mis en abîme, todos os elementos, que envolvem a figura do Diretor e do seu universo de criação, são colocados em perspectiva e realçados. Ao vermos “um filme dentro do filme”, na passagem de um para outro, os elementos do discurso fílmico voltam-se para si mesmos, ressaltando, desta forma, a função metalingüística da linguagem cinematográfica. A função meta é fundamental para o desenvolvimento e para a reflexão sobre os elementos da linguagem cinematográfica . Pois eles, a partir da função meta, não são meros recursos discursivos-, acabam se transformando também em elementos de ordem estética, pelo seu valor central na obra cinematográfica. Em 8 ½ , Fellini passa de um filme autobiográfico, em um primeiro nível, para um metafilme.

8 ½ é o filme mais complexo da história da Sétima Arte. Ele é uma “obra aberta”, com vários níveis de análise e de interpretação, no qual a crítica e os estudiosos se debruçam por muito tempo, para compreendê-lo em sua plenitude. Aqui reside o ponto central da riqueza das grandes obras de Arte, elas não se esgotam em si mesmas-, são infindáveis, de modo que, cada público, estudioso, crítico encontra nela algo de diferente-, sendo ela, desta maneira, totalmente “aberta”. Gilda de Melo e Souza analisou 8 ½ a partir de bases sociológicas, por seu turno Roberto Schwarz o analisou a partir dos recursos da crítica literária, já Christian Mertz o analisou utilizando-se da semiologia, até mesmo o cineasta brasileiro Glauber Rocha reviu o seu posicionamento frente à filmografia de Fellini ao analisar 8 ½. 8 ½ é o filme, no qual o adjetivo felliniano se configura. Um filme autobiográfico, com certeza, mas todos os filmes de Fellini o são-, pois levam, em todos os planos e níveis, a forte marca de seu criador, de modo que a Criação torna-se sinônimo do Criador e vice-versa: 8 ½ - Fellini, Fellini - 8 ½.

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