Um Filme Sob o Céu de Berlim

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Win Wenders
No céu sobre Berlim há nuvens cinza, o frio, o vento gélido e anjos, que pairam no ar, descansam em monumentos e caminham entre os homens. “Asas do Desejo” (Der Himmel über Berlin, 1987, RDA) foi dirigido pelo cineasta Wim Wenders (1945-), um dos representantes do Novo Cinema Alemão (Neuer Deutscher Film), surgido nas décadas de 1960 e 1970, tendo a Nouvelle Vague Francesa com o seu Cinema de Autor como influência e a tentativa de revigorar a produção cinematográfica alemã como objetivo. O filme é um dos mais expressivos da carreira do cineasta, sendo ainda laureado com a Palma de Ouro no festival de Cinema de Cannes e uma das obras mais importantes e expressivas da história do cinema. 

Sobre o céu de Berlim há anjos que observam a humanidade dentre as cinzas nuvens ou mesmo nas ruas de uma cidade dividida. Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) são anjos que acompanham os pensamentos e as ações dos berlinenses e seus visitantes, seja na parte socialista oriental (DDR) ou, predominantemente, na parte capitalista ocidental (BRD). O muro divide a cidade; no tempo, são cinquenta anos dos jogos olímpicos e duzentos do vôo de balão de Blanchard. Damiel se apaixona por uma trapezista chamada Marion (Solveig Dommartin), o que realça o seu fascínio pela humanidade, acompanhando-a desde os seus estágios mais pretéritos. Seu mundo é preto e branco, a queda o seu desejo, Marion suas asas. 

O filme possui dois títulos: o primeiro “Asas do Desejo” (Wings of Desire, Les Ailes du Désir, Las Alas del Deseo) divulgado e destinado à distribuição fora da Alemanha; o segundo, “O Céu sobre Berlim” (Der Himmel über Berlin), o mais interessante, pois o filme é uma ode à capital alemã. A cidade é um dos pontos mais importantes do filme, mesmo sendo dividida, os anjos pairam acima das questões históricas e políticas. Monumentos como a Coluna da Vitória (Siegessäule) no centro do Parque Tiergarten, a Avenida Unter den Linden para o leste da cidade e, em sentido oposto, a Torre de Rádio de Berlim (Berliner Funkturm) são mostrados. Um velho procura, rente ao muro, a Postdamer Platz, acha as suas reminiscências e um sofá. 

Damiel e Cassiel são dois anjos que acompanham a humanidade. Os anjos são seres míticos de diversas narrativas, sejam elas de matriz judaica (conhecidos como Malach), cristã, ou ainda zoroatrista, hindu e budista (chamados de Devas). Olham de cima para baixo, observando seres que adquiriram consciência e livre-arbítrio, tentando se elevar. No filme, Damiel é passional, dionisíaco, tem fascínio pela humanidade, se apaixona por uma mulher, quer sentir o gosto do café, de cigarro, sentir frio e poder se aquecer. Cassiel é apolíneo, poderia ser analisado como a metáfora do “Anjo da história”, utilizada pelo filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) no seu ensaio “Sobre o conceito de história” (1940) para analisar o conceito de progresso da história. 

Asas do Desejo” se destaca pela fotografia, inicialmente, em preto e branco. Em alguns planos e na parte final do filme, ela passa a ter cores. O mundo das cores é o da visão do homem, da condição humana, sendo elas quentes ou frias. Aos anjos restam-lhes apenas ver o mundo e os homens em preto e branco. Como a visão de Damiel e Cassiel é a compartilhada pela câmera subjetiva, mostrando o que os anjos veem, o espectador também. Ao final, com a queda de Damiel, e com a recorrência do seu olhar, a fotografia passa a ser em cores, pois, o outrora anjo é, agora, humano demasiado humano. A primeira coisa que ele aprende é diferenciar as cores, vendo o significado de significantes, reproduzindo os seus nomes, apontando-as no muro. 

O filme é a materialização da Arte cinematográfica; a poesia e a narrativa são a da Literatura. A relação entre o Cinema e a Literatura com frequência é associada entre narrativa literária e filme. No entanto, em “Asas do desejo”, o filme se assemelha à poesia. Ele se utiliza dela na abertura, no prólogo, com o poema do escritor austríaco Peter Handke (1943-): “Quando a criança era criança” (Als das Kind Kind war), sendo escrito sobre uma folha de papel. Cada plano tem a sua duração, é polido com luz, sombra, arte e se assemelha às palavras lavradas, trabalhadas pelo poeta ourives, tentando extrair, criar, destacar, atribuir o máximo de significado e de expressão poética da palavra bruta. 

O mais famoso dos anjos é o portador da luz, Lúcifer, denominado pela tradição judaica como “Estrela da manhã”, foi representado como orgulhoso no poema épico “Paraíso perdido” do escritor inglês John Milton, ou mesmo como o “Pai dos revoltosos” nas “litanias de Satã” do poeta francês Charles Baudelaire, como também nas narrativas poéticas e nos quadros de William Blake. Em “Asas do desejo”, Damiel e Cassiel são anjos, mas sem o aspecto religioso, e, sim, com uma moldagem filosófica, crítica, ou seja, Apolínea e Dionisíaca. O primeiro, cansado de admirar a humanidade sobre o céu de Berlim, se torna um anjo caído; já o segundo tem toda a eternidade para observar a efêmera história dos homens. Continua...


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