Durantes os seus doze trabalhos, Hércules viajou do Peloponeso ao Cáucaso, do Jardim das Hespérides ao mundo dos mortos. Por sua vez, na obra “Odisseia”, de Homero, tem-se a viagem de Odisseu na tentativa de retornar a Ítaca após a Guerra de Troia. Já Marco Polo relata as suas experiências nas “viagens” ao oriente através da rota da seda. Durante o período das Grandes Navegações portuguesas e espanholas nos séculos XV e XVI, há “os relatos de viagens” sobre o continente americano, o extremo oriente e as ilhas do pacífico. O tema da viagem é recorrente em narrativas míticas, na literatura e no cinema. “A viagem a Citera” é um tema que influenciou a pintura com Jean-Antoine Watteau, a literatura com Charles Baudelaire e o cinema com Theo Angelopoulos.
Citera é uma ilha grega situada no Mar jônico defronte ao Peloponeso. Durante séculos, a ilha foi um entreposto fenício para o comércio com cidades estados gregas e com o restante do Mar Mediterrâneo. Os fenícios fundaram na ilha um templo dedicado à deusa Astarte, símbolo feminino da fertilidade e da sexualidade. Na mitologia grega, Citera foi o local de nascimento da deusa Afrodite, que teria nascido da espuma (aphrós) do mar quando a divindade suprema Cronos cortou a genitália de Urano e a arremessou à costa da ilha. Segundo a tradição, a ilha de Citera é um local idílico, harmonioso, dotado de beleza singular, natural, onde homem e natureza estão em comunhão, servindo de inspiração para artistas ao longo do tempo.
O pintor francês Jean-Antoine Watteau (1684-1721) foi um dos principais representantes do estilo de pintura conhecido como Rococó surgido na França entre as estéticas barroca e o arcadismo, sendo considerado como um “barroco profano”, ou seja, sem a influência religiosa da arte barroca, mas com a sua ornamentação. No quadro “Peregrinação à ilha de Citera” (1717), Watteau recupera elementos da viagem mítica à Citera. Na obra, tem-se um grupo de pessoas no santuário da deusa Afrodite na ilha. Há casais com roupas opulentas, a natureza e no canto direito do quadro uma estátua de Afrodite. Ao fim, o que se tem como tema na “peregrinação a Citera” é uma peregrinação à ilha do amor, de Afrodite.
O poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) é um “lírico no auge do capitalismo” sendo o responsável, segundo o filósofo alemão Walter Benjamim, pela modernidade artística surgida a partir da segunda metade do século XIX. O seu livro de poesia “As flores do mal” (1ª edição em 1857 e a 2ª edição em 1860) é o ponto de partida para a modernidade artística tendo como base as novas relações sociais que se estabelecem na sociedade capitalista, industrial e urbana. O poema “Uma viagem a Citera” é uma ode à ilha de Afrodite. O poeta teve como influência o quadro de Watteau de onde se inspirou nos seguintes versos: “Ilha dos corações em festiva embriaguez! / Da antiga Vênus nua a imagem soberana.”
O cineasta grego Theo Angelopoulos (1936-2012) faz uma homenagem à ilha no filme “Viagem a Citera” (1984). No filme, tem-se a história de Spyro que passa trinta e dois anos no exílio na União Soviética após militar do lado da esquerda na Guerra civil grega na década de 1940. Com o retorno, vem o contato com a família, sua esposa Katarina, o filho Alexandros, que é um cineasta melancólico; o estranhamento do reencontro com um ente querido depois de três décadas. No plano social, Spyro tenta compreender e se adaptar à sociedade grega, o que se mostra problemático, pois ainda ele guarda os ideais socialistas que acabam em conflito com os da sociedade, que tenta se modernizar tendo como base ideias liberais.
Em “Viagem a Citera”, Theo Angelopoulos trabalha a relação do passado com a construção do presente, Spyro não se adapta e não pertence mais ao meio e ao presente, sua história é apenas a memória de poucos que a viveram e a dos que estão no cemitério, como a maioria dos seus companheiros de luta. Angelopoulos se uniu ao escritor e roteirista italiano Tonino Guerra (1920-2012) para escrever o roteiro do filme, que já havia trabalhado com os melhores cineastas italianos da década de 1960, tais como Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Vittorio De Sicca, Elio Petri, Mario Monicelli, com os irmãos Paolo e Vittorio Taviani, bem como com o cineasta soviético Andrei Tarkovski no filme “Nostalgia”.
Por fim, Citera é uma ilha grega, um tema universal. Fonte de inspiração de narrativas míticas como o mito do nascimento da deusa Afrodite, ou mesmo tema da pintura dos artistas Rococós franceses do século XVIII com Jean-Antoine Watteau, ou ainda da poesia do “poeta maldito” Charles Baudelaire na segunda metade do século XIX, como também do cinema do diretor grego Theo Angelopoulos no século XX. A alusão a Citera se constrói a partir do arquétipo do lugar ideal, idílico, perfeito, não importa se ela seja feita no mito, na pintura, na poesia ou no cinema, viajar a Citera é preciso e recorrente para a humanidade que se sustenta na Arte: “Ilha do verde mirto flores vistosas,/Venerada afinal por todas as nações”.