Continuação... Um Anjo paira sobre os céus de Berlim, não o vemos, mas compartilhamos a sua visão, em preto-e-branco, mostrada pela câmera subjetiva. Seus movimentos são livres, voa rente ao parque Tiergarten, circunda a estátua da Coluna da Vitória (Siegessäule), em seguida, pousa sobre os ombros do monumento. No filme “Tão longe, tão perto” (In weiter Ferne, so nah!, Alemanha, 1993) tem-se a continuação da produção “Asas do desejo” (Der Himmel über Berlin, 1987), nos quais o diretor alemão Wim Wenders (1945-) apresenta a história de anjos que observam a humanidade, ora acompanhando a história individual de alguns, ora escutando os pensamentos humanos cheios de dúvidas, angústias; mas também repletos de experiências, vivacidade, paixões, etc.
Em “Asas do desejo” (1987), Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) são dois anjos que acompanham a humanidade desde os primórdios. Pairam sobre Berlim, ainda dividida pelo Muro, que foi construído em 1961 para separar a parte soviética, conhecida como DDR (Deutsche Demokratische Republik), da parte capitalista, a BRD (Bundesrepublik Deutschland). São seres elevados que olham de cima para baixo, observando os que ganharam consciência e livre-arbítrio, com uma vida humana demasiada humana com sentimentos, angústias, prazeres e uma existência, mesmo que efêmera, colorida e cheia de experiências. No filme, Damiel se apaixona pela trapezista Marion (Solveig Dommartin). Deseja sentir, não quer mais apenas observar. A queda é a sua humanização.
No filme “Tão longe, tão perto” (1993), o diretor Wim Wenders retorna ao universo criado em “Asas do desejo” (1987). Enquanto no filme de 1987, a ação se concentra no anjo Damiel e na sua paixão por Marion; na produção de 1993, Cassiel é o protagonista. Na tentativa de intervir nas ações humanos, ao tentar salvar uma criança que cai da sacada de um prédio, ele “cai”, se torna humano, para salvá-la. Ao se tornar humano, Cassiel tem que lidar com o que caracteriza o peso da humanidade: seus sentimentos, angústias, prazeres, dores. Após a queda, se rende à jogatina, experimenta sensações, sabores, tira documentos, para ter uma “existência social”, arruma um emprego, no qual conhece e compreende a dificuldade do maniqueísmo para os humanos, por ser seres complexos.
Tanto “Asas do desejo” quanto “Tão longe, tão perto” são obras cinematograficamente belas, mas também com um roteiro repleto de diálogos que aludem à questões de cunho filosófico, principalmente questões metafísicas humanas. Pois, ao observar o seres humanos, os anjos acabam divagando sobre aspectos humanos, tais como a efemeridade da existência e as suas angústias, sobre a vida, “um momento tão curto comparado à eternidade”. Neste contexto, o tempo é o principal elemento, de modo que “ele já existia, não sabiam que ele os faria observadores”, ressaltando que o tempo se relaciona conosco de forma subjetiva. Por isso, há as histórias de uma criança e de um idoso se entrelaçando com a de Cassiel, cada um representando os “três tempos” da vida humana, já colocados como pergunta alegórica pela Esfinge para Édipo.
Os anjos, no contexto dos filmes, são mensageiros, trazem a mensagem de luz. São alegorias de quem apenas observa e vê a existência humana de fora. Eles não interferem nas ações dos seres humanos. Acompanhamos os seus fluxos de consciência, sua divagações mais racionais do que sensitivas. Se em “Asas do desejo”, o anjo Damiel representava a postura dionisíaca, voltada para as paixões, prazeres, sentimentos e sensações; Cassiel se portava como apolíneo, racionalizando os processos humanos. No entanto, a partir da “queda” de Cassiel, em “Tão longe, tão perto”, ele se torna dionisíaco, pois terá que aprender a lidar com as sensações e sentimentos humanos, algo difícil, doloroso e necessário para a evolução e para a existência plena humana. Ele se perde, mendiga; mas, ao final, compreende na prática o que é ser humano.
Em “Tão longe, tão perto”, dois novos seres são incorporados ao universo narrativo criado por Wim Wenders: o primeiro é o anjo chamada de Raphaela, interpretada pela atriz alemã Nastassja Kinski (1961-), filha do ator Klaus Kinski (1926-1991). Ela já havia trabalho com Wenders no filme “Paris, Texas’ (1984). Além de Raphaela, que é a interlocutora de Cassiel, há a figura do misterioso e enigmático personagem Emit Flesti, interpretado por Willem Dafoe (1955), que pode transitar e se relacionar com os anjos e com os homens. Ele pode ser entendido como sendo a personificação do tempo, no final ele é mostrado como parte integrante das engrenagens de um relógio, símbolo máximo do tempo e da tentativa de dividi-lo, compreendê-lo e, por fim, domá-lo.
Em um eterno retorno ou em um alfa e ômega, o que se tem é que “Tempo é Arte”. Mas, o tempo não está dissociado do espaço, da noção de distância como pode-se ver no filme “Tão longe, perto”, título que alude à coordenadas espaciais. Assim, na curta e efêmera vida humana, o tempo é supremo, senhor pelo qual a existência humana se curva. Se na tradição das narrativas de matriz judaico-cristã o anjo Lúcifer “caiu” por não querer se curvar aos humanos, nos filmes de Wim Wenders, “Asas do desejo” e “Tão longe, tão perto”, os anjos “caem ” para se tornarem humanos, por um desejo de sentirem e ter a vida humana, fazendo com que a “queda” seja uma forma de elevação, que trará uma plenitude, mesmo que efêmera, pois não se pode ganhar do tempo. Logo, resta aos homens compartilharem das indagações de Cassiel sobre os versos de Lou Reed: “Why can't I be good/Why can't I act like a man”.
Trailer do filme "Tão longe, tão perto"
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