Fazemos Arte porque viver não é o bastante. Comer, excretar, respirar não é o suficiente para a vida demasiada humana. Precisamos existir, sentir, admirar, contemplar, para isso criamos, fazemos Arte. Tomamos a consciência criativa como sendo a própria consciência do mundo e de nós mesmos. Como espectadores da Arte, observamos, analisamos e, principalmente, sentimos. A capacidade de suscitar emoções é uma das principais características das linguagens artísticas seja a partir da leitura de um texto literário; da melodia de uma música que caminha entre o som e sentido; dos movimentos rítmicos e repousos da dança; do estático e imortal momento retido pela escultura ou pintado em um quadro, ou mesmo através das camadas de significação do cinema.
O Cinema é uma linguagem artística peculiar, pode ser considerada como sendo a síntese de todas as outras, pois trabalha a imagem (em movimento), a palavra e o som. Ele afeta os nossos dois principais sentidos: a visão e a audição, com os quais tomamos uma consciência maior do real e, principalmente, pelos quais somos afetados emocionalmente de forma mais intensa. Se uma fotografia, com sua composição “desenhada pela luz”, ganhando forma pelo enquadramento e a visão de determinado anglo, pode nos afetar, a música potencializa não apenas o efeito de sentido, mas também a carga de emoção. A alegria, a euforia, a dor, o medo, a angústia, a ansiedade, o êxtase pode ser sentido ou assimilado à filmes. Temos filmes que nos fizeram chorar, querer correr, vagar pelo mundo, voar, arrumar um amor, ou mesmo morrer, mesmo que simbolicamente.
Frances corre pelas ruas de Nova Iorque, ela está feliz, seus ligeiros passos se alternam com alguns de dança: rodopia, salta, movimenta-se. A música “Modern love”, de David Bowie, potencializa a euforia, que também é nossa, assim como é de Frances Halladay. A cena dura exatos quarenta e nove segundos e nos cinco segundos seguintes, ela entra em seu apartamento vazio, não há música, não há ninguém, a sensação muda, sentimos outra coisa. Enquanto a música toca, ela corre, dança, esbarra nas pessoas que sempre estão em sentido contrário, seu semblante é de felicidade, uma infinita felicidade, que na língua inglesa tem o seu significante praticamente intraduzível para outros idiomas: "bliss".
Na Grécia antiga, tem-se a simbologia das duas máscaras do teatro clássico para representar a comédia e a tragédia: a primeira está sorrindo enquanto a segunda possui um semblante triste. Chaplin conseguiu dar um tom melancólico ao riso com o seu personagem Carlitos, algo que os românticos fizeram com a sua leitura das inicialmente cômicas andanças pelo interior da Espanha do “cavaleiro da triste figura” Dom Quixote de la Mancha com o seu cavalo Rocinante e o seu fiel escudeiro Sancho Pança. A pequena Olive Hoover está a caminho do concurso “pequena miss sunshine”, na van amarela estão seu tio, irmão, o pai e a mãe. Sua apresentação artística no concurso, que foi ensinada pelo avô, será apresentada ao som da música "Super Freak”, de Rick James; todos dançam, nós rimos.
Alguns filósofos proclamam que sentimos “medo do desconhecido”. No caso dos filmes de terror, já sabemos o que encontraremos, o que sentiremos e, mesmo assim, assistimos. Não se assiste a filmes de terror durante o dia; o sol, a claridade, ou mesmo a lucidez, faz parte deste momento apolíneo. Filmes de terror são para serem ”vividos” à noite, no escuro, na confusão de sentidos, no “frio do estômago”. Sentimos mais à noite, dionisíaco período. Por fim, tem-se o abraço de conforto e a segurança com a companhia, pois também não se assiste a filmes de terror sozinho. Queremos sentir medo para depois sermos abraçados, acalentados, afagados. Com Pazuzu possuindo uma garotinha, ou mesmo um grupo de pessoas passando um final de semana em uma cabana em uma região deserta, buscamos participar do congresso internacional do medo.
Camões espera ter “engenho e arte”, ou seja, técnica e inspiração para escrever “Os lusíadas”. Os críticos e estudiosos, paradoxalmente, esgotam e desertificam a obra de arte com discursos e estruturas acadêmicas pretensiosamente científicas com um líquido método. Pode-se ter gozo com o intelecto, com jogos, falácia, verborragia; mas a sinestesia é o que cria a marca, a cicatriz no ser. Selma Jezková é a síntese, protagonista da obra que pode criar labirintos retóricos de análise e/ou mesmo catarses coletivas em indivíduos que comungavam, antes do espaço virar profano, no cinema. Selma caminha os 107 passos até o silêncio que é quebrando pela expressão serena e pelo canto, depois volta-se ao silêncio, em seguida ruídos, e, por fim, soluços, choros, nossos prantos.
O Cinema é uma fonte e, por vezes, responsável pela nossa associação com sentimentos, emoções. Podemos assistir a filmes não para fugir da realidade, da vida ordinária cotidiana, mas, sim, para senti-la de forma extraordinária, senão apenas comeríamos, excretaríamos e respiraríamos. Viver não é o suficiente, sentir é preciso: ‘Frances Ha” nos faz sentir alegria e melancolia na sua vida de bailarina desengonçada; Olive dança, une a família para empurrar a van que a levará a um concurso de miss mirim; o medo é a única certeza daqueles que “leem o livro dos mortos”; e Selma nos mostra a apoteose do humano, na nossa briga entre a razão e a emoção, o apolíneo e o dionisíaco, vencendo o último, nos deixando com uma imensa tristeza, o que contraria o versos do “Samba da benção” e concordando com os de Fernando Pessoa: “E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão,/Esse comboio de corda/Que se chama coração.”
Sinta:
Euforia e melancolia
Ria
Medo
Angústia demasiada humana
Sinta:
Euforia e melancolia
Ria
Medo
Angústia demasiada humana