‘O quarto de Jack’

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A Arte é a maior criação humana, maior do que os deuses que criamos, pois os superamos. Predominantemente, há duas formas de se absorver as obras artísticas: a primeira de forma sinestésica, catártica, na qual a obra agiria sobre os sentimentos e emoções do espectador; a outra de forma racional, racionalizando os processos criativos, criando estruturas e modelos para explicá-la. O filme ‘O quarto de Jack’ (Room, EUA, 2015), dirigido por Lenny Abrahamson, suscita diversos sentimentos no espectador, compactuando com a história narrada de mãe e filho que estão presos em um cativeiro, inicialmente, sem contato com o mundo exterior. 

O filme se inicia com o famoso trecho “Era uma vez”, proclamado pelo personagem Jack, que continua “(...) ante de eu chegar”. O menino tenta dar uma explicação mágica para a sua origem, pois teria chegado ao “quarto” através da claraboia. É o seu aniversário de cinco anos, acorda, dá bom dia para os móveis, para tudo o que há a sua volta, são poucas coisas dispostas no minúsculo espaço de aproximadamente cinco metros quadrados, onde vive há cinco anos. Sua mãe acorda, passou os últimos sete anos cativa, fora raptada pelo “Velho Nick” quando tinha dezesseis, seu filho nasceu no cativeiro. A rotina é mostrada, assim como a relação entre mãe e filho. Fazem exercícios, tomam banho, dizem que eles mesmos prepararão um bolo de aniversário. 

O quarto de Jack’ trabalha com a temática da relação entre mãe e filho a partir de traumas psicológicos criados em situações de cativeiro. O mundo dos dois é limitado a um espaço fechado, todas as relações ocorrem de forma limitada pela espacialidade representada pelo “quarto”, não há contato com o mundo exterior, exceto pela televisão, colocada como algo mágico, e com o “Velho Nick”, raptor da jovem Joy, que sofre violência e abuso sexual. A mãe tenta criar uma situação de convívio que poupe o filho da visão agressiva do rotineiro abuso sexual e da vida limitada, de modo que o mundo de Jack se resume ao “quarto”, nunca conhecera o mundo exterior, acredita que para além das paredes há apenas o espaço sideral.

O filme é dividido em duas partes: na primeira o enredo se passa dentro do espaço fechado do “quarto”; enquanto na segunda mãe e filho são libertados do cativeiro, tendo que se adaptarem ao convívio em sociedade. Há uma dialética do espaço interior versus o exterior. Os únicos contatos que possuem com o mundo fora do “quarto” é feito através da televisão e do “Velho Nick”. Na primeira parte, as relações se restringem a de mãe e filho, na construção do seu convívio cotidiano, rotineiro, limitado. No entanto, o espaço passa a ser pequeno para Jack, tem cinco anos, começa a compreender o mundo a sua volta, com isso, acaba ampliando-o. Ao serem libertos, devem lidar com um espaço mais amplo, com mais estímulos, relações, há problemas de adaptação. 

O interessante do filme é que o personagem Jack começa a questionar o que é real e o que não. Para ele, a realidade, inicialmente, seria apenas o que seus olhos podem ver ao longo do minúsculo recinto onde nasceu e foi criado, não conhece outro mundo. A claraboia mostra apenas o céu, que ele acredita ser apenas o espaço sideral. Tudo o que não está no “quarto” e é mostrado pela televisão, ou mesmo nos livros que lê, é algo mágico, que não tem existência concreta, real. Suas experiências são limitadas, ao ver um rato pela primeira vez se encanta com o novo, com uma existência que outrora desconhecia. A mãe tenta explicar para o filho que há um mundo do lado fora, um mundo grande, cheio de possibilidades. 

No filme ‘O Enigma de Kaspar Hauser’ (Jeder für sich und Gott gegen alle, Alemanha, 1974), do diretor alemão Werner Herzog, há a história do jovem Kaspar Hauser que permaneceu parte de sua vida em um porão sem contato com o mundo exterior. O enredo se passa em uma pequena vila próxima à cidade de Nuremberg, no início do século XIX. O jovem é libertado do cativeiro, acompanhamos o seu convívio em sociedade e o desenvolvimento de suas habilidades sociais e cognitivas. Aprende a língua em convívio social, se depara com questões filosóficas da consciência sobre a existência, ou mesmo de lógica e metafísica. Kaspar Hauser deve compreender, se adaptar a sua nova realidade para além da vida que tivera no porão. 

O filósofo grego Platão apresenta a condição humana, segundo a sua concepção filosófica através da “Alegoria da Caverna” no livro ‘A República, no qual homens nasceram e viveram neste espaço. Permanecem de costas para a entrada de uma caverna, com a face rente à parede, veem apenas as sombras projetadas julgando ser as únicas coisas reais existentes. No filme ‘O quarto de Jack’, inicialmente, mãe e filho estão presos, são cativos, prisioneiros de um mundo que acreditam ser o único real e possível. Se libertam, saem, o “quarto” é menor que o mundo, agora o mundo é grande, cheio de possibilidades, de aprendizado.

Trailer do filme

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