Um conto de dois países

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“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da fé, foi a época da incredulidade. Foi a estação da luz, foi a estação das trevas. Foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero. Tínhamos tudo diante de nós, não havia nada antes de nós.” O começo do romance “Um conto de duas cidades”, lançado em 1859 pelo escritor inglês Charles Dickens, é o melhor dos começos, o pior dos começos. O início da obra de Dickens pode ser a síntese do conturbado momento do transe político brasileiro, já seus antecedentes podem ser pensados a partir dos filmes ‘Terra em transe’, ‘Casa grande’, ‘O som ao redor’ e ‘Que horas ela volta?’. 

A narrativa do filme ‘Terra em transe’ (1967), de Glauber Rocha, se passa na fictícia república de Eldorado, um pequeno país localizado no continente americano, próximo ao oceano Atlântico. O país está em efervescência política, pois a província de Alecrim elege o Governador populista Vieira que terá um embate político com o senador conservador Porfírio Diaz, sendo a caricatura do político tecnocrata, anticomunista e favorável ao domínio imperialista do capital estrangeiro e do “progressismo”. O momento político é de transe, forças políticas antagônicas se debatem, as instituições democráticas são fracas, servem, e são submissas, aos interesses particulares de determinadas classes sociais. Nesse jogo de poder dentro das instituições políticas, a população e os movimentos sociais são coadjuvantes. 

Algumas estruturas e relações sociais brasileiras foram historicamente construídas, uma das mais perenes, que tem as suas bases no início do processo de colonização do país no século XVI, é a “casa grande e a senzala”, que são símbolos da relação entre classe opressora e classe oprimida, inicialmente representada pelo casa grande, local onde residia os senhores do engenho e os detentores do poder e, em anexo, a senzala com os escravos e em alguns momentos os serviçais, como destacado na obra de Gilberto Freyre. 

O filme ‘Que horas ela volta?’ (2015), de Anna Muylaert, juntamente com os filmes brasileiros ‘Casa grande’ (2014) e ‘O som ao redor’ (2013) contribuem para a reflexão das transformações sociais e culturais ocorridas no Brasil nos últimos treze anos. Em ‘Casa grande’, de Felipe Barbosa, tem-se a queda das elites brasileiras, ou seja, a ruína da “casa grande”, de modo que uma família rica, tradicional e historicamente detentora do poder e de prestígio social acaba por perder a posição de privilegiada frente a uma nova configuração social, não mais excessivamente estática, onde havia a garantia de reprodução de modelos e estruturas sociais. 

Já na produção ‘O som ao redor’, de Kleber Mendonça Filho, há justamente a tentativa de proteção das elites brasileiras frente a uma nova realidade. No filme, os moradores de uma rica rua de Recife têm a rotina quebrada quando um grupo de seguranças particulares propõem garantir a segurança das “redondezas”. O que se tem no filme é algo similar a um processo de “condominização” da sociedade brasileira, no qual haverá a tentativa por parte das elites de criar espaços fechados, “feudos”, conhecidos como “condomínios fechados”, que não interagem com o resto do espaço social, criando espaços homogêneos. 

Em ‘Que horas ela volta?’, temos o processo final de transformação da sociedade brasileira nos últimos anos sendo mostrado, aquele mais profundo, baseado na consciência de classe, como o demonstrado pela personagem Jéssica e transmitido para a sua mãe, Val. A filha se recusa a “seguir os passos” não da mãe, mas aqueles que lhe seriam legados historicamente devido a sua classe social. Libertando-se, também liberta a mãe. Já não são mais as mesmas, estão em comunhão. Libertaram-se de amarras históricas através do pensamento crítico e social. Assim, elas nunca mais voltarão para aquela condição de submissão social, não adiantando perguntar que horas, pois o tempo presente, a vida presente se transforma. Através do cinema podemos ver esta transformação de forma mais lúcida. 

Muitos anos depois, frente à televisão, o brasileiro haverá de recordar aquela tarde remota do dia 17 de abril de 2016 na qual conheceu a maioria dos 513 deputados federais. O Brasil é então um país com um rio de águas temporais diáfanas de poucos anos conjuntos de tradição democrática baseada em intuições consolidadas, sérias. Tudo foi televisionado, editado, mostrado como espetáculo de entretenimento; mas, o espetáculo não era tão doce, é conservador, reacionário, misógino, ou seja, um espetáculo dos nossos tristes tempos de contradições políticas, econômicas, filosóficas e sociais. Por fim, um transe político ocorre! E agora, José?

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