O ônibus atrasou trinta minutos, deveria ter saído às 11h de Puerto Quijarro rumo a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. A manhã estava muito quente, conforme aproximávamos do meio-dia, o calor aumentava, assim como o desconforto. Comi duas empanadas de carne, bebi um suco de maracujá, era muito doce.
Não há organização prévia para o embarque, o ônibus permanece estacionado ao lado de fora da rodoviária de terra batida. Primeiro carregam as encomendas: caixas, sacos, uma lava louças, um ar condicionado, máquina de lavar roupas, uma pequena bicicleta, um pequeno boliviano a acompanha com o olhar atento. Em seguida, os passageiros colocam as suas bagagens, entram no precário veículo.
O ônibus parte, chego às 20h30 na rodoviária de Santa Cruz de la Sierra. Foram mais de quatrocentos quilômetros de calvário, com muito calor, nenhum conforto. O ar condicionado não funcionava, o sol estava ao lado da minha janela.
As noves horas de viagem foram uma experiência interessante: fisicamente era castigado com o calor, o desconforto. No entanto, psicologicamente me sentia bem, creio que devido às técnicas de respiração, de meditação ensinadas pela Marcela, minha professora de yoga. Ao meu lado, sentou-se um brasileiro, vivia há três anos em Santa Cruz de la Sierra, viajara a Bolívia como missionário, casou-se com uma boliviana, estava esperando o segundo filho.
Reilson é paraense, tem vinte e seis anos, viajava de roupa social. Contou-me como é sua vida, como foi sua infância, adolescência no estado brasileiro do Pará, sua experiência como missionário em diversas regiões do Brasil e da Bolívia. Largara os estudos para se dedicar à missão de evangelizar. Sua esposa nasceu em Cochabamba, na Bolívia, está grávida de quatro meses, seu primogênito tem sete meses.
Durante o trajeto, dialogamos sobre o Livro de Jó, o Evangelho de João e o Livro do Apocalipse. Havia paixão nas suas observações sobre a bíblia, é um crente, um evangelizador, propagador de sua religião. Eu, um ateu, preocupado, fascinado pelas narrativas, pelas reflexões, não concordando com a aposta feita entre Deus e o Diabo; mas que via beleza no título do livro do filósofo alemão Friedrich Nietzsche em alusão ao Evangelho de João no capítulo 19, versículo 5; ou mesmo se encantava com o versículo 8 do primeiro capítulo do último livro de João.
Em Santa Cruz de la Sierra, o ônibus parou em uma rua próxima à rodoviária, muito movimentada. Reilson se prontificou a encontrar um táxi para mim, não queria que os bolivianos me cobrassem mais caro por ser turista. Disse-me que deveria pagar $20 bolivianos, falara o endereço para o taxista, nos despedimos. Ele resolve pegar um ônibus circular para a sua casa, não daria tempo de chegar ao culto das 21h, reencontraria esposa e filho.
Quase dormindo, penso que Federico Fellini adoraria ter conhecido o Mercado Municipal e o Terminal Rodoviário de Puerto Quijarro com o seu barulho, as suas cores e o seu caos funcional, o que é belo. Penso em quem seria Flora Nina Guachalla, ou mesmo em uma boliviana parecida com Saraghina.
(Trecho do livro “De Araraquara a Machu Pichu: Relatos de Viagem”)
Para apoiar o livro, entre no site do Catarse: https://www.catarse.me/araraquaramachupichu