A ‘Cópia Fiel’ de Abbas Kiarostami

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O diretor iraniano Abbas Kiarostami (1940-) é um dos principais cineastas da atualidade. Estudou Artes na Universidade de Teerã, começou a se dedicar ao cinema após se formar, conseguindo obter destaque dentro da produção iraniana durante as décadas de 1970 e 1980. Mas, foi apenas a partir da década de 1990 que ele ganhou projeção internacional, primeiro com o filme ‘Gosto de Cereja’ (Ta'm e Guilass, Irã, 1997), com o qual ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes; depois com o filme ‘Dez’ (Dah, Irã, 2002). No filme ‘Cópia Fiel’ (Copie Conforme, França, 2010), Kiarostami realiza o seu primeiro filme fora do Irã e faz a sua primeira grande obra de caráter universal, discutindo a questão da originalidade e da cópia da obra de arte. 

‘Cópia Fiel’ se inicia com uma palestra sobre a história da arte do estudioso inglês James Miller, interpretado pelo ator britânico William Shimell (1952-), em uma pequena cidade na região da Toscana, Itália, abordando o tema da “cópia fiel” dentro da história da arte. Acompanhamos uma típica palestra acadêmica, com a piada inicial do palestrante, poucas pessoas presentes, celular tocando, etc, com o tema e a cerne da questão do filme sendo introduzida. A atenção do palestrante se volta para a platéia, onde se encontra Elle, interpretada pela atriz francesa Juliette Binoche (1964-), que ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes pela atuação. O restante do enredo do filme é Miller e Elle dialogando sobre conceitos de autenticidade, originalidade e o valor da cópia na arte em diversos outros espaços: uma galeria, em um café, no campo. 

O tema que o filme trabalha surge concomitantemente à própria criação artística, pois com a arte vem a ‘necessidade’, ou o fetiche, de autenticação da obra como pertencente a um autor de prestígio específico. A obra de arte, neste contexto, seria algo singular e de existência única e, caso haja uma cópia, ela não teria o mesmo valor que a original. O livro que Miller escreve e que está sendo lançado na Toscana com uma tradução italiana se propõe a discutir a necessidade de autenticar a cópia, sendo ela fiel. Os diálogos entre Miller e Elle ao longo do filme problematizam e relativizam a necessidade do original, sendo a obra original, para Miller, apenas um conceito de referencialidade que não tiraria a qualidade e a importância da cópia. 

A primeira grande discussão da cópia dentro da arte surge com o conceito clássico de mimésis, que pode ser definido como “imitação”, ou mesmo “representação”, da natureza. Para o filósofo grego Platão (428-348 a.C.), o mundo seria uma cópia imperfeita do mundo das ideias e, portanto, como a arte, para ele, é uma cópia do real, ela seria a cópia da cópia. O que faz o filósofo criar restrições aos artistas na República. Já para Aristóteles (384-322 a.c.), a mimésis não teria um aspecto negativo, sendo um aspecto positivo na estreita relação da arte com o mundo real. 

A questão da cópia ganhou uma conotação pejorativa e perdeu o status de referencialidade a partir do Romantismo e com o advento da modernidade artística, que colocou dois novos elementos essenciais para a obra de arte: a primeira, a originalidade; e a segunda, a inovação. A obra de arte deve ser original na medida em que deve ser única e singular, seja na sua proposta estética ou mesmo na sua existência, o que leva o artista a buscar incessantemente a inovação. A partir do roteiro de Abbas Kiarostami o espectador entra em contato com as questões clássicas e da modernidade acerca da obra de arte. 

É impossível ver ‘Cópia Fiel’, de Abbas Kiarostami, e não relacionar a temática do filme com as questões levantadas pelo filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) sobre a reprodutividade técnica da obra de arte no seu ensaio “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936). O pensador alemão faz uma análise materialista da arte, discutindo conceito de originalidade e cópia, defendendo que a arte sempre foi reprodutível, portanto sempre possuiu cópias, e que com o sistema capitalista houve o advento da reprodutividade técnica da obra de arte em uma escala massiva, de modo que a cópia é uma reprodução idêntica da original. 

A busca de todo e qualquer grande artista é conseguir dar um aspecto universal para a sua obra, mesmo trabalhando temas particulares. O cineasta iraniano Abbas Kiarostami fez o percurso do particular, ao dirigir filmes com características particulares da cultura iraniana, para o universal, ao trabalhar temas importantes para a humanidade no campo da arte. Em terras italianas, de grandes artistas e cineastas, tais como Roberto Rossellini (1906-1977), Luchino Visconti (1906-1976), Vittorio De Sica (1901-1974), Pier Paolo Pasolini (1922-1975) e Federico Fellini (1920-1993), Abbas Kiarostami fez ‘Cópia Fiel’, sua obra prima e se mostrou adepto das palavras do escritor romano Publio Terêncio: “humani nihil a me alienum puto” (Nada do que é humano me é alheio).

Trailer de "Cópia Fiel"


A Música Pop Segundo os Beatles

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No princípio era o caos, o espectro dos Beatles pairava sobre a face das águas turvas do rio Mersey e disse John: “Haja o The Quarrymen”, e houve a banda. Viu que era bom. John chamou Paul, fez a separação da velha banda. E disse Paul: “haja uma expansão”, George foi chamado. Chamaram a nova criação de The Beatles, viram que eram bons, chamaram Ringo. No sétimo dia do mês de fevereiro de 1964, foram os Beatles para o local da gênese do gênero musical, desembarcam na cidade de Nova Iorque para a primeira visita aos Estados Unidos. A visita foi documentada através de fotos, escritos e do documentário “The Beatles: a primeira visita aos EUA” (The Beatles: First U.S. Visit). 

O documentário “The Beatles: a primeira visita aos EUA”, sendo dirigido pelos irmãos Albert (1926-) e David Maysles (1932-1987) em 16 mm, retrata os quatorze dias que a banda permaneceu em solo estadunidense. São mostradas as duas apresentações ao vivo no programa do apresentador de televisão Ed Sullivan (1901-1974). A primeira apresentação ocorreu nos estúdios da CBS, em Nova Iorque, no dia nove de fevereiro para um público televisivo de mais de 73 milhões. Tocaram as músicas “All my loving”, “Till there was you”, “She loves you”, terminando com “I saw her standing there” e “I wanna hold your hand”. 

Entre a primeira aparição e a segunda no programa do apresentador Ed Sullivan acompanhamos as imagens do quarteto de Liverpool no quarto de hotel e o diálogo com o DJ Murray The K (1922-1982). Há uma proximidade, a câmera sempre se encontra próxima aos músicos, mostrando as ações espontâneas do grupo e o seu deslumbramento com a cidade de Nova Iorque. A histéria das fãs é mostrada. Em uma cena, tem-se um fato curioso: John Lennon está com um instrumento de sopro e começa a tirar algumas notas musicais, que se assemelham às usadas três anos depois na música  Strawberry fields forever”.

De Nova Iorque, os Beatles vão para Washington D.C. no dia 11 de fevereiro onde fazem uma apresentação no Washington Coliseun, que depois foi lançada em DVD com o nome de “Live in Washington D.C.”. Tocaram as músicas “Roll over Beethoven”, “From me to you”, “I saw her standing there”, “I wanna be your man”, “Please please me”, “Till there was you”, “She loves you” e “I want to hold your hand”. No documentário colocaram apenas as performances de “I saw her standing there”, “I wanna be your man” e “I want to hold your hand”. 

Em seguida, no dia 13, acompanhamos os fab four em Miami Beach, Flórida, onde tem-se a famosa sessão de fotos tiradas pelo fotógrafo Dezo Hoffmann (1918-1986) para a revista Life, como também a última apresentação no programa do Ed Sullivan, no dia 16, entrando para o documentário as músicas “From me to you”, “This Boys” e “All my loving”. No dia 18, conhecem ainda o maior boxeador de todos os tempos Cassius Clay (1942-), que depois mudaria o seu nome para Muhammad Ali

O documentário foi possível graças à evolução tecnológica das câmeras de filmagem, que se tornaram mais compactas. Ele foi filmado em 16 mm com a  proposta de documentar todos os passos dos Beatles nos Estados Unidos para ser, depois, transmitido em um especial para a televisão. Os irmãos Maysles fariam ainda o documentário “The Rolling Stones: Gimme Shelter” (1970) sobre a turnê da banda pelos Estados Unidos divulgando o disco “Let it bleed” (1969). Os Maysles foram uma grande influência para o cineasta e documentarista D. A. Pennebaker (1925-), que filmou a turnê do bardo Bob Dylan pela Inglaterra, em 1966, dando origem ao documentário “Don’t look back”. Pennebaker filmou ainda “Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” do músico britânico David Bowie (1947-), em 1973. 

A importância dos Beatles para a música popular da segunda metade do século XX é um fato concreto. Sua influência se estende por diversos campos indo além do musical e entrando na esfera da cultura popular. A primeira visita dos Beatles aos Estados Unidos é significativa, pois o país é o centro de irradiação da cultura pop e local de gênese do rock através da árvore genealógica de parentes distantes como o Blues e o Fiddle. Com a invasão britânica, há a inversão dos pólos de influência, antes os Estados Unidos eram os produtores e exportadores, naquele momento tornaram-se receptores e consumidores. No princípio era a música, e a música estava com os Beatles, e a música era os Beatles. Tudo foi feito por eles; e nada do que tem sido feito depois, foi feito sem eles. Quem tiver ouvidos, ouça.

Emir Kusturica, Cinema e os Eslavos do Sul

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Na história do Festival de Cinema de Cannes apenas três cineastas foram laureados duas vezes com a Palma de Ouro, são eles: o austríaco Michael Haneke (1942-) em 2009 com o filme “A Fita Branca” (Das weiße Band) e em 2012 com “Amor” (Amour); os irmãos belgas Luc (1954-) e Jean-Pierre Dardenne (1951-) com “Rosetta” em 1999 e “A Criança” (L’enfant) em 2005; e o cineasta sérvio Emir Kusturica (1954-) com “Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios” (Otac na službenom putu) em 1985 e “Underground: Mentiras de Guerra” (Underground) em 1995, sendo este último a sua grande obra prima. 

Underground: Mentiras de Guerra” é um filme que propõe representar a história do efêmero país dos “Eslavos do Sul” conhecido como Iugoslávia. A história se inicia no dia seis de abril de 1941 quando a Alemanha nazista ataca a cidade de Belgrado, inicialmente com a Luftwaffe, a força aérea alemã, e depois com Wehrmacht e a sua tentativa de blitzkrieg na região dos bálcãs. Marko e Blacky são dois amigos que criam uma resistência à invasão nazista. Com o auxílio do Exército Vermelho Soviético, Belgrado é libertada e cria-se a República Socialista Federativa da Iugoslávia, então aliada à União Soviética. 

Blacky refugia-se, em 1944, em um porão, enquanto Marko assume posições dentro do governo socialista iugoslavo, sendo homem de confiança do então líder da resistência e futuro presidente do país Josip Broz Tito (1892-1980). Um grupo de pessoas passa também a se esconder no porão. O inusitado é que Marko passa a dizer que a guerra não acabou, forçando todos que estão no porão a fabricarem armas durante a Guerra Fria. Todos deixam o porão apenas em 1992, em meio ao colapso da União Soviética e a Guerra da Iugoslávia, com a então desintegração do país dos “eslavos do sul”. 

Se no filme “Adeus, Lenin!” (Alemanha, 2003), do diretor Wolfgang Becker, a personagem Sra. Kerner representa simbolicamente a parte socialista da Alemanha, conhecida como DDR (Deutsche Demokratische Republik); em “Underground: Mentiras de Guerra” o porão representa simbolicamente a Iugoslávia. Por isso, Kusturica mistura o real com a ficção, recuperando elementos da história com uma narrativa que assemelha às narrativas fantásticas, tanto que o filme se inicia com a frase “Era uma vez uma terra que tinha uma capital de nome Belgrado”. A fusão entre real e ficcional é feita também a partir de imagens reais da época da guerra fria que servem como base de algumas cenas de passagem da narrativa do filme. 

O cinema de Emir Kusturica se assemelha muito ao estilo que se costumou chamar de “felliniano”. Com narrativas que questionam o estatuto do real, mas sem perder a verossimilhança, com elementos fantásticos, ou simplesmente com recursos carnavalesco, havendo a inversão de regras e dos estatutos sociais, com ocorrência do cômico, da ironia, criando um “mundo às avessas”. Sonho, realidade, ficção e história se misturam em uma narrativa coesa entre o cômico e o dramático, fundindo, assim, gêneros, que por muito tempo, não dialogavam entre si, tendo a música como base. 

A música para Emir Kusturica é algo importante não só para seus filmes, como também para a sua vida, tanto que possui uma banda chamada “Emir Kusturica & The No Smoking Orchestra”. Uma banda de me
tais que mescla elementos da música tradicional servia com gypsy e rock. Ao longo do filme, em diversas cenas há uma banda de metais que acompanha a ação e ajuda a criar o carnavalesco e, muitas vezes, o insólito na narrativa.

Outra relação com o cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993) em “Underground: Mentiras de Guerra” ocorre com a técnica do “mise en abyme", ou seja, “a obra dentro da obra”. No filme "8 ½ ", Fellini faz um filme dentro do filme. Uma obra que vai além do metacinema, do Cinema retratando o Cinema, para mostrar, em diversos níveis, um filme dentro de outro, que está dentro de outro filme. Kusturica também se utiliza do metacinema, pois há um filme sendo feito sobre Blacky, reconstituindo tudo o que foi mostrado no início da narrativa, ainda com os mesmo atores, havendo inclusive uma confusão, pois ao escapar do porão Blacky se depara com um set de filmagens e acredita ainda que a guerra esteja em curso, atirando nos figurantes com roupas nazistas, confundindo, assim, ficção com realidade. 

Uma mentira ainda é uma falsa verdade. Em “Underground: Mentiras de Guerra”, Marko manteve uma grande mentira por décadas, aprisionando vários indivíduos em um porão. Mas, o porão é a metáfora de um país, ou como diz Marko “O comunismo é um enorme porão”. Ao final do filme, todos estão entre o último conflito da Iugoslávia. Em seguida, ela não existe mais, estão em um outro mundo, reunidos, em um pedaço de terra que se desprende, há o efeito de afastamento e o ficcional é mostrado. Eis o fim: a partir das memórias do subterrâneo um país durou, nasceu, e se desintegrou: era uma vez um país, se desprende, agora só resta a memória, a história, a ficção. Um final digno como o de Macondo e seus cem anos de solidão.



‘Um Alguém Apaixonado’ e o Prazer dos Olhos

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Um alguém apaixonado’ (Like Someone in Love, França/Japão, 2012) é a última produção do diretor iraniano Abbas Kiarostami (1940-), sendo a sua segunda produção fora de seu país de origem. Filmado inteiramente no Japão e com equipe técnica e atores japoneses, tem-se um filme perfeito para se exemplificar e dialogar sobre elementos da linguagem cinematográfica, exigindo não um espectador passivo, mas, sim, uma interação constante entre espectador e obra, entre conceito e análise, entre Arte e crítica. 

Em ‘Um alguém apaixonado’, Kiarostami sai da sua zona de conforto e pontos comuns das suas narrativas anteriores de tom realista-existencialista de filmes como “Gosto de cereja” (Ta'm e Guilass, Irã, 1997), com o qual ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, ou mesmo ‘O Vento nos Levará’ (Bad ma ra khahad bord, Irã, 199), ou ainda ‘Dez’ (Dah, Irã, 2002) para trabalhar um drama. Na produção japonesa, tem-se a história da jovem universitária Akiko, que também é prostituta, e deve se encontrar para um proograma com o já idoso professor universitário chamado Watanabe Takashi. Ninguém de sua família, sua avó e seu noivo não sabem da sua profissão, o que gera desencontros e conflitos, respectivamente. 

O filme se passa apenas em três espaços: em um bar, na casa de Watanabe e na oficina, há os espaços de transição. Na cena inicial, no bar, Kiarostami começa a mostra a sua visão de Cinema em um diálogo que se estabelece entre duas personagens, o que provoca estranhamento. Recorrentemente, em um diálogo, a decupagem mais comum é plano e contra plano, ou seja, a alternância de planos entre falante e ouvinte. No entanto, o que se tem é que o falante não está no plano, está fora do enquadramento, mas no mesmo universo da ação, por isso não há uma voz em off. Se o cineasta francês Jean-Luc Godard (1930-) conseguiu um efeito diferente filmando um diálogo com os atores de costas em ‘Acossado’ (À bout de souffle, França, 1960), Kiarostami o filmou fora do enquadramento, como experimentação, assim a fonte da fala está no plano, mas não está no enquadramento. 

Na mesma cena, que se desenrola com unidade de tempo por vinte minutos, outro fator que se destaca é a profundidade de campo, o que amplia os elementos e a possibilidade de representação da limitada duas dimensões (altura e largura) para uma ilusória e bela profundidade, como difundida por Orson Welles (1915-1985) no seu filme ‘Cidadão Kane' (Citizen Kane, EUA, 1941). Com a profundidade de campo não se cria apenas a ilusão de profundidade como também amplia a possibilidade de deslocamento das personagens e também a quantidade de ações que podem ser representadas no enquadramento do plano. 

Escrever sobre ‘Um alguém apaixonado’ é discorrer sobre Cinema, no qual podemos destacar o plano-sequência, sendo caracterizado com uma tomada com unidade de tempo, ação e espaço, sem cortes Ele é o plano da contemplação da imagem e do efeito de atmosfera; da unidade explícita do espaço e da continuidade do tempo. Nele, a ação de desenvolve com um ritmo natural e livre, com deslocamentos das personagens, com a movimentação da câmera e do olhar do espectador. A ação está nos olhos, não nos cortes ou na montagem acelerada, com os seus diversos planos por minutos. 

Com a recorrência do plano-sequência, há poucas elipses, ou seja, a ação se desenvolve sem corte ou passagens de tempo. No cinema convencional, há as elipses, ou seja, há a seleção de faixas de ação e, consequentemente, de tempo que serão representados. Comumente, na decupagem de um filme comercial, caso a personagem tem que se deslocar de um ponto A para um ponto B, opta-se por omitir partes do percurso ou mesmo todo ele, o que não ocorre no cinema de Kiarostami, pois ação é mostrada como um todo, um conjunto completo de significado na sua completude, não na sua fragmentação. 

Alguns cineastas, que obtém sucesso fora da indústria cinematográfica, acabam sendo cooptados pela indústria hollywoodiana e saem do se país para serem, não mais artistas, mas, sim, empregados de grandes produtoras nos Estados Unidos. Não é o caso de Abbas Kiarostami que, ao produzir filmes fora do seu país, manteve-se fiel à sua Arte, realizando filmes com qualidade como é o caso da produção ‘Um alguém apaixonado’, sendo um filme para falar de Cinema, teorizar sobre. Alguns proclamam ser o seu Cinema “parado”, sem ação; mas devem perceber que o diretor faz um Cinema de contemplação da imagem; faz Arte, não produto para ser descartado a cada estação. Portanto, tem-se como destaca o título de um célebre livro de François Truffaut: “O prazer dos olhos”.

Trailer do filme:


‘Querida Wendy’: Um Filme Sobre Armas e Falo

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A maioria dos grandes artistas tende a ser egoístas, trabalham sozinhos e não dividem a fama ou o reconhecimento. No entanto, artistas excepcionais conseguem colaborar uns com os outros, como é o caso dos cineastas franceses François Truffaut (1932-1984) e Jean-Luc Godard (1930-), que trabalharam juntos na produção marco da Nouvelle vague francesa “Acossado” (À bout de souffle, 1960), tendo o primeiro como roteirista e o segundo como diretor. Outra parceria de outros excepcionais cineastas ocorreu na produção do filme “Querida Wendy” (Dear Wendy, Dinamarca, 2005), que possui o roteiro de Lars von Trier (1956-) e a direção de Thomas Vinterberg (1969-). 

“Querida Wendy” narra a história do jovem Dick, interpretado por Jamie Bell (1986-), que ficou famoso ao interpretar Billy Elliot; e um grupo de adolescente que mora em uma cidade fictícia do interior dos Estados Unidos. Eles formam um grupo “pacifista” de adoradores de armas. Cada membro do grupo possui a sua arma, nomeando-a e dedicando rituais a elas. A arma de Dick se chama “Wendy”, as da personagem Susan recebem a alcunha de Lee e Grant; já a de Freddie é nomeada de Badsteel (Mau aço), e a de Huey recebe o nome de Lyndon, em alusão ao filme de Stanley Kubrick. Os membros do grupo são chamados de “Dandis” e possuem a regra de “nunca sacarem as suas armas”, pois elas seriam apenas “amuletos”, que dão confiança e autocontrole. 

A narrativa do filme possui uma característica epistolar, há um narrador em off que está escrevendo uma carta para a sua querida arma, por isto o título “Querida Wendy” ser uma saudação, algo típico do gênero textual, havendo a interlocução entre o remetente (Dick) e o destinatário (Wendy). O que vemos materializadas em grande parte do filme são as palavras de Dick em sua carta, o que cria dois tempos: o passado da história, pois o narrador relembra como conheceu a sua querida, e o presente da escrita, ambos os tempos acabam se entrelaçando ao final do filme com a despedida e, consequentemente, o fim da carta, restando apenas o tempo presente e o desfecho em tiroteio da história. 

O cineasta Lars von Trier é um eximio analista e crítico da sociedade estadunidense. No seu filme “Dançando no escuro” (Dancer in the Dark, 2000), ele faz uma crítica ao “sonho americano” do imigrante em contraste com os valores e práticas dos estadunidenses, destacando as suas contradições de pensamento, o que também é feito nos filmes “Dogville” (2003) e “Manderlay” (2005). Já no roteiro de “Querida Wendy” Lars trabalha com o tema do fascínio pelas armas da sociedade estadunidense, tentando compreender de onde surge a “necessidade” e o discurso de justificação do uso de armas. 

Em “Querida Wendy”, os cineastas Lars von Trier e Thomas Vinterberg conseguem ir além do tema sociológico do uso de armas, trabalhando a questão pelo viés psicológico, já que armas são, neste contexto, elementos fálicos que dão poder e autoconfiança ao seu portador. O personagem principal é chamado de Dick, palavra que na língua inglesa é uma gíria para designar o pênis. Elementos fálicos são símbolos de poder, tais como o cetro que expõe o poder religioso e a espada que representa o poder social, em algumas grandes cidades há o obelisco. Na mitologia grega, os deuses possuem símbolos fálicos de poder, como Poseidon que tem o seu tridente. Na sociedade estadunidense e no filme a arma cumpre esta função simbólica. 

Outros filmes trabalham o fascínio da sociedade estadunidense por armas. Em “Tiros em Columbine” (Bowling for Columbine, EUA, 2002), o diretor estadunidense Michael Moore (1954-) faz um documentário tendo como ponto de partida o massacre que ocorreu na cidade de Columbine, em 1999, quando dois jovens estudantes entraram atirando em uma escola, matando alunos e professores e, em seguida, se suicidando. O diretor tenta relacionar o fascínio por armas com o alto índice de mortes e massacres similares ao de Columbine. Já o filme “Elefante” (Elephant, EUA, 2003), ganhador da Palma de Ouro de Cannes em 2003, recria o massacre de Columbine a partir de outros elementos ficcionais e de uma grande qualidade técnica, já que a história é contada a partir de vários pontos de vistas, criando uma narrativa polifônica e tecnicamente perfeita do diretor Gus Van Sant (1952-).

Em “Querida Wendy”, os dois maiores cineastas do movimento cinematográfico conhecido como Dogma 95 se uniram para fazer um excelente filme, com o roteiro e a obsessão de Lars von Trier em entender e criticar a sociedade estadunidense aliada à técnica e ao talento do diretor Thomas Vinterberg. No filme, os diretores partem do particular, analisando o fascínio pelas armas da sociedade estadunidense e caminham para o universal, ao trabalhar as armas como símbolos fálicos de poder, ritualizando o porte de armas, já que há cânticos, rituais e saudações para elas. No filme, mesmo que Dick caminhe sobre a mina e a praça da morte, nada temerá, pois ele tem a sua queria Wendy.

Fatih Akin e o Cinema Germânico-Turco Atual

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O cinema alemão possui dois grandes períodos: o primeiro representado pelo Expressionismo alemão, que floresceu durante as décadas de 1910 e 1920 com cineastas como Fritz Lang (1890-1976), Robert Wiene (1873-1938) e F. W. Murnau (1888-1931). Já o segundo ocorreu nas décadas de 1960 e 1970 com os diretores Wim Wenders (1945-), Werner Herzog (1942-) e Rainer Werner Fassbinder (1945-1982). O melhor cineasta alemão da atualidade se chama Fatih Akin, sendo de descendência turca, ele consegue fazer o que a sociedade alemã tem dificuldades: unir as culturas alemã e turca através de filmes como “Contra a parede” (2004) e “Do outro lado” (2008). 

Fatih Akin nasceu em Hamburgo, na Alemanha, em 1973. Seus pais são turcos que foram para a Alemanha junto com uma grande leva de imigrantes nas décadas de 1970 e 1980. Os grandes pólos de destino foram as cidades de Hamburgo, Mu
nique e Berlim, onde há o bairro turco de Kreuzberg. A sociedade alemã e a cultura turca, neste processo de contato, possuem certa dificuldade de diálogo e assimilação uma da outra, o que cria certa heterogeneidade cultural e conflitos, pois ambas as culturas dividem o mesmo espaço, mas não “se misturam”. O problema se agrava com as primeiras gerações de filhos dos imigrantes, que vivem entre as duas culturas: a materna, turca, e a do contexto, alemã.

Para os descendentes de imigrantes, a dificuldade é maior, há o peso da cultura materna e a riqueza da cultura alemã; há as tradições familiares e a liberdade social. Neste conflito, alguns poucos conseguem uma síntese das duas culturas, o que está acontecendo nas artes plásticas como se pode ver no principal centro artístico de Berlim, o Tacheles na Oranienburger Straßee e, principalmente, no cinema com o diretor Fatih Akin. Em seu cinema, há uma síntese da cultura alemã e turca, algo difícil de acontecer no âmbito social. 

No seu primeiro longa metragem “Em julho” (In Juli, 2.000) Fatih Akin já coloca em diálogo a cultura turca e alemã, o que também ocorre com o seu principal e mais premiado filme “Contra a parede” (Gegen Die Wand, 2004). No filme, temos a história de Síbel, interpretada por Sibel Kekilli, que era atriz de filmes pornogrâficos e, atualmente, na série Game of trhones, e Cahit (Birol Ünel) que se conhecem no hospital após ambos tentarem se suicidar, a primeira cortando os pulsos erroneamente na horizontal e o segundo jogando-se contra a parede, ao som da música “I feel you” do Depeche Mode. Síbel propõe que se casem, pois, assim, ela teria “liberdade” para ter uma vida sem o peso da tradição e as restrições familiares. Acabam se casando, ela para se libertar, ele por compaixão. 

No início do filme e na passagem de diversas cenas, há uma banda turca com o Estreito de Bósforo ao fundo tocando uma música, que serve como prólogo para a ação de algumas cenas. O que se percebe na narrativa é que ambos estão perdidos, Cahit vive uma crise existencial, enquanto Síbel busca uma liberdade de conduta longe das tradições culturais turcas. Casando-se, ela consegue o que tanto almeja liberdade sexual, social, mas não espiritual, ou seja, tudo o que Cahit possui. Elementos da cultura pop, tais como bandas new wave e pós-punk Depeche Mode, Siouxsie and the Banshees, Soft Cell e Einstürzende Neubauten mesclam-se com outros da cultura alemã e turca no filme. 

No seu filme “Do outro lado” (Auf der Anderen Seite, 2008), Fatih Akin aprofunda a questão da identidade do imigrante turco, bem como a perda e a busca de identidade pelos filhos dos imigrantes já influenciados pelas duas culturas. O diferencial neste filme em relação à produção “Contra a parede” é que há mais núcleos de personagens como também pelo fato de parte da narrativa se passar na Alemanha e outra parte em Istambul, na Turquia. Na primeira, um idoso aposentado turco, que mora em Hamburgo, se relaciona com uma prostituta turca e a convida para morar em sua casa com o seu filho, que é doutor e professor de literatura alemã. Com a morte da prostituta, o filho decidi ir até Istambul atrás da filha dela, acaba encontrando-a em um contexto de manifestações sociais. 

Nos filmes de Fatih Akin, as personagens sempre vão para a Turquia em busca de algo: amor, paz e essência. Há o retorno, para a raiz. Mesmo tendo liberdade dentro da cultura alemã, o vazio existencial é algo predominante. Mas, o fato é que a cultura alemã e a turca possuem uma relação de difícil diálogo, o que gera uma segregação social e cultural, sendo quebrada, atualmente, apenas pela arte e pelo cinema de Fatih Akin, que consegue fazer uma síntese das duas culturas. Akin é o melhor cineasta alemão da atualidade e sente o mesmo peso do cineasta francês Tony Gatlif (1948-), produto de duas culturas, em seu caso a francesa e a argelina, como expresso no filme “Exílios” (Exils, 2003). No caso da sociedade alemã, a Arte está sempre na vanguarda, sendo o cinema de Fatih Akin o seu arauto.

Cinema, Música e Videoclipe

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Em termos históricos, a música enquanto arte possui uma longevidade maior do que o cinema. Enquanto a primeira sempre acompanhou a humanidade; o segundo possui pouco mais de cem anos. A relação da música pop com o cinema é prolífera e se destaca na produção de videoclipes, seja com bandas e cantores utilizando trechos de filmes de diretores consagrados, como é o caso das bandas Queen, The Smashing Pumpkins e Arcade Fire; ou mesmo cineastas como Sofia Coppola, Gus Van Sant e Michel Gondry que dirigiram videoclipes para as bandas The White Stripes, Red Hot Chilli Pepers e para a cantora Björk. 

A banda inglesa Queen, formada pelo vocalista Freddie Mercury (1946-1991), pelo guitarrista Brian May (1947-) e pelos músicos John Deacon (1951-) e Roger Taylor (1949-), é uma das principais bandas dentro do gênero hard rock nas décadas de 1970 e 80. Sua relação com o cinema se dá no videoclipe da música “Radio Ga Ga”, lançada no disco “The Works” de 1984, com reprodução de trechos do filme “Metrópolis” (1927) do cineasta germânico Fritz Lang (1890-1976), sendo um dos maiores expoentes do expressionismo alemão. 

Em 1995, a banda estadunidense The Smashing Pumpkins lança o videoclipe da música “Tonight, Tonight” do disco “Mellon Collie and the Infinite Sadness”, gravado por Billy Corgan (1967-), D'arcy Wretzky (1968-) e James Iha (1968-). A banda insere trechos e se inspira no filme “Viagem à lua” (Le Voyage dans la lune, 1902) do cineasta francês e um dos pais do cinema narrativo Georges Méliès (1861-1938) para produzir o videoclipe, que é dirigido pelo casal de cineastas Jonathan Dayton (1957-) e Valerie Faris (1958-), mais conhecidos por dirigirem o filme “Pequena Miss Sunshine” (Little Miss Sunshine, 2006). 

A banda canadense Arcade Fire, formada pelo casal Win Butler (1980-) e Régine Chassagne (1977-), utilizou cenas do filme “Orfeu negro” (Orphée Noir, 1959), dirigido pelo cineasta francês Marcel Camus (1912-1982) na música “Afterlife” do disco “Reflektor” (2013). A produção é baseada na peça “Orfeu da Conceição” (1954) de autoria de Vinícius de Morais (1913-1980) com a trilha sonora de Tom Jobim (1927-1994) e Luiz Bonfá (1922-2001), recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes. O filme revisita o mito de grego de Orfeu e Eurídice. As cenas utilizadas no videoclipe dialogam com a letra da música, pois há uma relação entre a letra com cenas do filme e uma alusão à música “We can work it out” dos Beatles, no trecho “Can we work it out?”. 

Um videoclipe muito interessante é o da música “I Just Don’t Know What to do with Myself”, do disco Elephant (2003) da banda estadunidense The White Stripes, que é composta por Jack White (1975-) na guitarra e Meg White (1974-) na bateria. Neste videoclipe, tem-se a direção da cineasta Sophia Coppola (1971-) e conta com a participação da modelo Kate Moss (1974-), que faz a interpretação da canção a partir de gestos corporais rítmicos e sensuais, que dialogam, ao mesmo tempo, com o ritmo e faz um contraponto com a letra. No entanto, o que impera é a beleza da imagem com o ritmo do movimento da modelo no pole dance, além do contraste de luz e sombra da fotografia. 

The White Stripes trabalhou com outros cineastas em seus clipes, como é o caso do francês Michel Gondry (1963-), que dirigiu videoclipes para Paul McCartney (Dance Tonight), Beck (Cell Phone's Dead), Björk (Human Behaviour), Radiohead (Knives Out), The Rolling Stones (Like A Rolling Stone), Daft Punk (Around the World) e Massive Attack (Protection). O cineasta francês ficou famoso por dirigir os filmes “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) e “A Natureza Quase Humana” (Human Nature, 2001). 

O diretor estadunidense Gus Van Sant (1952-) dirigiu o videoclipe da música "Under the Bridge" do disco “Blood Sugar Sex Magik” (1991) da banda Red Hot Chili Peppers. Gus Van Sant se destacou com filmes como “Elephant” (2003), com o qual ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e “Last Days” (2005) que mostra de forma ficcional os últimos dias do vocalista do Nirvana Kurt Kobain (1967-1994); como também “Paranoid Park” (2007) no qual o cineasta faz uma releitura do romance “Crime e Castigo” (1866) do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881).
  
Tudo começou com os Beatles que não queriam se apresentar ao vivo no programa do apresentador estadunidense Ed Sullivan (1901-1974) e resolveram mandar um “vídeo promocional” com a performance de uma de suas canções para ser exibido no programa. Com isso, criaram o objetivo do videoclipe: o de promover o artista e o torná-lo onipresente em canais de comunicação. O videoclipe nasce dependente da música e passa a se relacionar com o cinema. Cineastas passam a dirigi-los e, até mesmo, serem influenciados por ele, como o caso do diretor Darren Aronofsky (1969-) no filme “Réquiem para um Sonho” (Requiem for a Dream, 2000), com cortes rápidos e planos curtos. Música, Cinema, Videoclipe; Cinema, Videoclipe, Música; Videoclipe, Música, Cinema.

Programação de Novembro da Sessão Zoom

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