Emir Kusturica, Cinema e os Eslavos do Sul

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Na história do Festival de Cinema de Cannes apenas três cineastas foram laureados duas vezes com a Palma de Ouro, são eles: o austríaco Michael Haneke (1942-) em 2009 com o filme “A Fita Branca” (Das weiße Band) e em 2012 com “Amor” (Amour); os irmãos belgas Luc (1954-) e Jean-Pierre Dardenne (1951-) com “Rosetta” em 1999 e “A Criança” (L’enfant) em 2005; e o cineasta sérvio Emir Kusturica (1954-) com “Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios” (Otac na službenom putu) em 1985 e “Underground: Mentiras de Guerra” (Underground) em 1995, sendo este último a sua grande obra prima. 

Underground: Mentiras de Guerra” é um filme que propõe representar a história do efêmero país dos “Eslavos do Sul” conhecido como Iugoslávia. A história se inicia no dia seis de abril de 1941 quando a Alemanha nazista ataca a cidade de Belgrado, inicialmente com a Luftwaffe, a força aérea alemã, e depois com Wehrmacht e a sua tentativa de blitzkrieg na região dos bálcãs. Marko e Blacky são dois amigos que criam uma resistência à invasão nazista. Com o auxílio do Exército Vermelho Soviético, Belgrado é libertada e cria-se a República Socialista Federativa da Iugoslávia, então aliada à União Soviética. 

Blacky refugia-se, em 1944, em um porão, enquanto Marko assume posições dentro do governo socialista iugoslavo, sendo homem de confiança do então líder da resistência e futuro presidente do país Josip Broz Tito (1892-1980). Um grupo de pessoas passa também a se esconder no porão. O inusitado é que Marko passa a dizer que a guerra não acabou, forçando todos que estão no porão a fabricarem armas durante a Guerra Fria. Todos deixam o porão apenas em 1992, em meio ao colapso da União Soviética e a Guerra da Iugoslávia, com a então desintegração do país dos “eslavos do sul”. 

Se no filme “Adeus, Lenin!” (Alemanha, 2003), do diretor Wolfgang Becker, a personagem Sra. Kerner representa simbolicamente a parte socialista da Alemanha, conhecida como DDR (Deutsche Demokratische Republik); em “Underground: Mentiras de Guerra” o porão representa simbolicamente a Iugoslávia. Por isso, Kusturica mistura o real com a ficção, recuperando elementos da história com uma narrativa que assemelha às narrativas fantásticas, tanto que o filme se inicia com a frase “Era uma vez uma terra que tinha uma capital de nome Belgrado”. A fusão entre real e ficcional é feita também a partir de imagens reais da época da guerra fria que servem como base de algumas cenas de passagem da narrativa do filme. 

O cinema de Emir Kusturica se assemelha muito ao estilo que se costumou chamar de “felliniano”. Com narrativas que questionam o estatuto do real, mas sem perder a verossimilhança, com elementos fantásticos, ou simplesmente com recursos carnavalesco, havendo a inversão de regras e dos estatutos sociais, com ocorrência do cômico, da ironia, criando um “mundo às avessas”. Sonho, realidade, ficção e história se misturam em uma narrativa coesa entre o cômico e o dramático, fundindo, assim, gêneros, que por muito tempo, não dialogavam entre si, tendo a música como base. 

A música para Emir Kusturica é algo importante não só para seus filmes, como também para a sua vida, tanto que possui uma banda chamada “Emir Kusturica & The No Smoking Orchestra”. Uma banda de me
tais que mescla elementos da música tradicional servia com gypsy e rock. Ao longo do filme, em diversas cenas há uma banda de metais que acompanha a ação e ajuda a criar o carnavalesco e, muitas vezes, o insólito na narrativa.

Outra relação com o cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993) em “Underground: Mentiras de Guerra” ocorre com a técnica do “mise en abyme", ou seja, “a obra dentro da obra”. No filme "8 ½ ", Fellini faz um filme dentro do filme. Uma obra que vai além do metacinema, do Cinema retratando o Cinema, para mostrar, em diversos níveis, um filme dentro de outro, que está dentro de outro filme. Kusturica também se utiliza do metacinema, pois há um filme sendo feito sobre Blacky, reconstituindo tudo o que foi mostrado no início da narrativa, ainda com os mesmo atores, havendo inclusive uma confusão, pois ao escapar do porão Blacky se depara com um set de filmagens e acredita ainda que a guerra esteja em curso, atirando nos figurantes com roupas nazistas, confundindo, assim, ficção com realidade. 

Uma mentira ainda é uma falsa verdade. Em “Underground: Mentiras de Guerra”, Marko manteve uma grande mentira por décadas, aprisionando vários indivíduos em um porão. Mas, o porão é a metáfora de um país, ou como diz Marko “O comunismo é um enorme porão”. Ao final do filme, todos estão entre o último conflito da Iugoslávia. Em seguida, ela não existe mais, estão em um outro mundo, reunidos, em um pedaço de terra que se desprende, há o efeito de afastamento e o ficcional é mostrado. Eis o fim: a partir das memórias do subterrâneo um país durou, nasceu, e se desintegrou: era uma vez um país, se desprende, agora só resta a memória, a história, a ficção. Um final digno como o de Macondo e seus cem anos de solidão.


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