A ‘Melancolia’ de Lars von Trier

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O diretor dinamarquês Lars von Trier (1956-) é o principal cineasta da atualidade, junto com o austríaco Michael Haneke (1942-). A filmografia do cineasta dinamarquês é uma busca constante de experimentação da linguagem cinematográfica e o incessante anseio da expressão artística individual através do cinema, seja nos tempos do movimento Dogma 95, na década de 1990, ou ainda com o seu filme ‘Melancolia’ (Melancholia, Dinamarca, 2011). Com ele, Lars conseguiu o status de persona non grata no Festival de Cinema de Cannes, mas fez um filme genial, dialogando com a psicologia, pintura e com a música. 

Melancolia é um estado, uma relação conflituosa com o meio, gerado por um antagonismo. Ela é um sentimento psicossocial, já que o estado psicológico influencia as relações sociais e vice-versa. O termo e o conceito de melancolia foram cunhados e desenvolvidos pelos gregos, sendo discutidos pelo “pai da medicina” Hipócrates no século V a.C. O indivíduo melancólico perde o entusiasmo e a vontade de se relacionar socialmente, tornando-se um ser socialmente inativo. 

No filme ‘Melancolia’, tem-se a melancólica história de Justine (Kirsten Dunst), seu casamento e a relação familiar com mãe, pai, o cunhado e irmã (Charlotte Gainsbourg). Ela oscila entre pequenos e curtos momentos de euforia com estados constantes de melancolia. Vivendo em um mundo de aparências e obrigações, seja para criar um slogan para uma campanha publicitária, Justine ainda tem que lidar com as suas emoções, conseguindo tranquilidade apenas em contato com a água, seja na banheira ou, como coloca Lars (em cenas metafóricas) no cartaz, em um riacho. Mas, o planeta Melancolia está em rota de colisão com a Terra, o que gerará a destruição do planeta. 

O filme se inicia com um prelúdio de aproximadamente dez minutos com a introdução do tema da obra com cenas em câmera lenta, mostrando a colisão do planeta Melancolia, que estava escondido atrás do sol, com o planeta Terra. Justine caminha, um cavalo cai, o espaço sideral é mostrado. Os planos são belos, plasticamente perfeitos, com cores que dialogam com a obra do pintor austríaco Gustav Klimt (1862-1918), o amarelo se contrasta com o verde. Há ainda um diálogo com o filme ‘2001: uma odisseia no espaço’ (1968) do diretor Stanley Kubrick (1928-1999) ou ainda com o seu contraponto soviético ‘Solaris’ (1972), do diretor Andrei Tarkovski (1932-1986). 

Em ‘2001: uma odisséia no espaço’, há a utilização da música clássica no “prólogo dos macacos” com a música ‘Assim falou Zaratustra’, de Richard Strauss, baseada na obra homônima do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, mostrando a evolução humana de um estágio primitivo para um mais evoluído: do osso à estação espacial. Em ‘Melancolia’, o uso da ópera ‘Tristão e Isolda’, do compositor alemão Richard Wagner, cria um ritmo lento e apresenta o tom do filme: o trágico. O fim é inevitável, Melancolia está em rota de colisão, mas não há uma histeria coletiva, há cenas belas, calmas, como a música de Wagner. 

Lars von Trier é um cineasta inquieto, sempre busca utilizar o cinema como uma forma de expressão artística tendo a linguagem cinematográfica como elemento e o filme como produto. Em ‘Melancolia’, ele funde gêneros cinematográficos, em específico a ficção científica com o drama, pois, no filme, o planeta Melancolia está preste a colidir com a Terra. No entanto, o drama particular e a melancolia das personagens são o mais importante. O diretor também funde gêneros em ‘Dançando no escuro’ (2000), mais especificamente o musical com o drama, neste caso um drama social devido às contradições do “american way of life”. 
O filme ‘Melancolia’ é dividido em duas partes: na primeira “Justine” tem-se a melancolia do ser humano e as relações sociais em espaços fechados, no caso em um casamento, o que evidencia os conflitos familiares e sociais pré-existentes. A primeira parte se assemelha a proposta do filme ‘Festa em família’ (1998) do também diretor dinamarquês e membro do Dogma 95 Thomas Vinterberg, no qual os conflitos familiares são expostos em um jantar familiar. Na segunda parte “Claire”, a melancolia é causada pela iminência da colisão do planeta Melancolia com a Terra. Claire é a irmã de Justine. 

Os filmes de Lars von Trier são antes de tudo teses e expressões artísticas de seu criador. Tese porque uma ideia e um ponto de vista são defendidos e obras de arte são feitas. Em ‘Os Idiotas’ (1998), Trier busca demonstrar como se livrar da sociedade capitalista e dos dogmas burgueses com “atos idiotas”. Já em ‘Dançando no escuro’ (2000) e ‘Dogville’ (2003) busca demonstrar e analisar as contradições do pensamento psicossocial estadunidense. Em “Melancolia”, o diretor coloca a discussão da melancolia provocada por estados internos ou por forças externas. O que se tem é a oposição de um estado momentâneo de alegria com a essência melancólica do ser, como também demonstrada pela poesia do poeta francês Charles Baudelaire nos seus quadros parisienses, que deram início à modernidade artística no auge do capitalismo.

Trailer do filme 'Melancolia'

Cada Um Com Seu Cinema

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Cada um com seu cinema” (Chacun son Cinéma) é um projeto cinematográfico realizado por trinta e quatro cineastas de vinte e cinco países que foram incumbidos de fazer um curta-metragem cada um de aproximadamente três minutos sobre o cinema. O projeto foi proposto por Gilles Jacob, então presidente do Festival de Cinema de Cannes, França, como uma forma de comemorar os sessenta anos do festival, em 2007. Lars Von Trier, Alejandro González Iñárritu, Walter Salles, Takeshi Kitano, Ken Loach, Abbas Kiarostami, Nanni Moretti, Wong Kar-Wai, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, David Lynch e Wim Wenders são alguns dos cineastas que mostraram as suas visões, memórias e paixões sobre o cinema. 

O projeto é simples: cada cineasta fez um curta-metragem de três minutos contando uma história de amor ao cinema em seu respectivo país ou de acordo com as suas memórias ou influências dentro da sétima arte. A maioria dos curtas trata do espaço cinematográfico de exibição, ou seja, a sala de cinema. Um local de prazer dos olhos que traz uma experiência estética, emocional e afetiva junto à obra cinematográfica ou mesmo entre todos que a compartilham. 

Há a memória individual de filmes que marcaram uma vida, como é o caso do curta “No escuro”, dirigido pelo cineasta russo Andrei Konchalovsky, no qual a já idosa personagem divide uma velha sala de cinema com um casal de jovens. Enquanto o casal usa a sala para namorarem, ela se emocional vendo o filme “8 ½ ” (Itália, 1963) do cineasta italiano Federico Fellini, tendo o ator Marcello Mastroianni como protagonista. 

O grande ator italiano é ainda homenageado no curta “Três Minutos” do diretor grego Theo Angelopoulos, tendo uma cena do filme “A noite” (Itália, 1961) do cineasta Michelangelo Antonioni como base. No curta, a mesma atriz que contracena com Marcello Mastroianni no filme de Antonioni refilma a sua fala em 2007. Jeanne Moreau se emociona ao repetir as palavras do roteiro de 1961, homenageando, assim, Marcello que morreu onze anos antes. 

Além da relação do cinema com a memória individual, há a sua relação com a memória coletiva. No curta “Assistindo ao filme”, do diretor chinês Zhang Yimou, uma pequena vila do interior da China tem a rotina quebrada quando um cinema itinerante é montado. A montagem da estrutura, a preparação do espaço, a espera do por do sol são momento únicos que vão gerando a grande expectativa da exibição do filme por parte dos aldeões, de modo que a alegria e a simples relação entre luz e sombra tudo recria, desautomatizando a vida cotidiana. 

O cinema é a sala mágica, um local de desautomatização e de prazer estético. No curta “A fundição”, dirigido pelo cineasta finlandês Aki Kaurismäki, um grupo de operários de uma fundição esperam ansiosamente a hora do almoço para poderem assistir à sessão de cinema, projetada a partir de um pequeno projetor Super 8, vêem um dos primeiros filmes da história do cinema “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon” dos irmãos Auguste e Louis Lumière.  

O cinema enquanto desautomatização é ainda trabalhado no curta “Um belo dia”, do diretor japonês Takeshi Kitano. Nele, um trabalhador rural chega a um pequeno e inóspito cinema, mas encontra alguns empecilhos de ordem técnica para assistir ao filme. Já no curta “Cinema ao ar livre”, o cinema é uma celebração coletiva, mesmo sendo montado em um local improvisado, tem-se vários indivíduos celebrando a sétima arte em comunhão. 

O filme “Cada um com seu cinema” é dedicado ao cineasta italiano Federico Fellini, mas, antes de tudo, é um filme sobre o cinema, de modo que há a recorrência da metalinguagem, ou seja, o cinema falando do próprio cinema de forma direta, como é o caso do melhor curta: “Profissões”, dirigido pelo cineasta dinamarquês Lars Von Trier, ou de forma indireta com intertextualidade em relação a outras obras cinematográficas, como é o caso da maioria dos curtas-metragens. Além do cineasta italiano, o francês Jean-Luc Godard é o mais citado e homenageado, seja através de um cartaz, cenas de filmes ou diálogos. 

O cinema é uma arte coletiva que pode ser uma expressão individual de um artista (cinema de autor). No caso de “Cada um com seu cinema”, temos expressões artísticas individuais de grandes cineastas formando uma obra coletiva de exaltação do cinema, seja retratando um passado idílico ou a arte cinematográfica na memória ou em práticas de resistência contra o mero e insignificante filme como produto. Cada um com os seus filmes e nos com o nosso cinema de autores.

Trailer do filme:


Bob Dylan e Martin Scorsese

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Na sua famosa composição niilista “God”, John Lennon (1940-1980) enumera vários nomes que ele não acredita. Dentre estes nomes está o de Robert Zimmerman (1941-). Indagado, em uma célebre entrevista para a famosa revista de rock Rolling Stone, em 1970, o porquê de ter dito não acreditar em Zimmerman ao invés de Bob Dylan, Lennon diz que não acredita em Dylan e que há apenas Zimmerman. No documentário “No Direction Home” (EUA, 2005), dirigido por Martin Scorsese (1942-), pode-se ver justamente a transformação de Robert Zimmerman em Bob Dylan: da sua infância em Hibbling-Minnesota, EUA, até a sua grande turnê européia, em 1966, no qual Dylan era Bob Dylan. 
 
A estrutura do documentário é simples e seus aspectos formais são tradicionais dentro do gênero. Há o depoimento de Dylan, contando fatos de sua vida, acontecimentos de sua carreira, além de seus próprios comentários sobre todo o conteúdo da narrativa. Os depoimentos de Zimmerman se mesclam com entrevistas de pessoas que conviveram com o “menestrel”, como a cantora Joan Baez, o poeta da geração Beat Allen Ginsberg, e os músicos Dave von Ronk, Suze Rotolo, Pete Seeger, dentre outros. Os depoimentos e as entrevistas do presente da narrativa se amalgamam com vídeos, fotos e entrevistas da época, além das performances de Dylan e sua banda entre 1960-1966. 

A temática do documentário é divida em temas que tentam desvendar a “metamorfose” e os resquícios de Zimmerman em Dylan. A passagem, ou melhor dizendo, a fusão da música Folk com o Blues e o Rock. Cada tema é introduzido por uma performance de Dylan, o que sintetiza e introduz a temática do capítulo. O documentário mostra todos os dramas e as etapas da passagem de Zimmerman para Dylan, no plano musical, bem como as implicações e conseqüências desta mudança para a música Folk e para a música Pop, já que Dylan é o responsável por fundir o gênero musical Folk com o Rock, criando o Folk rock. 

O cantor de músicas de protesto, que cantou na histórica marcha pelos direitos civis em Washington, capital dos EUA, onde Martin Luther King fez o seu mais célebre discurso em 1963, é vaiado poucos anos depois por usar percussão e guitarra elétrica, sendo, então, chamado de traidor da música Folk no The Newport Folk Festival (Festival de Música Folk de Newport), em 1965. Dylan tocou suas canções com amplificadores e guitarras elétricas, tendo o excelente músico Mike Bloomfield (1943-1981) como guitarrista, algo muito diferente de dois anos antes, quando se apresentou com Joan Baez apresentando as denominadas “músicas de protestos” com traços folks tradicionais tais como "Blowin' in the Wind", "A Hard Rain's a-Gonna Fall", "Masters of War". 

O documentário também mostra Dylan sendo chamado de traidor da “música de protesto’ na sua turnê inglesa, em 1966, quando no intervalo da música “Ballad of a Thin Man” é chamado de “Judas”. Irritado Dylan retruca algumas palavras e começa a executar a música “Like a Rolling Stone”, encerrando, assim, a apresentação. O show ocorreu no dia 17 de maio no Free Trade Hall, em Manchester e não, como foi propagado de forma equivocada, na casa de concertos londrina Royal Albert Hall. 

Um dos pontos altos do documentário é o capítulo reservado à música “Like a Rolling Stone”; todo o processo de composição, de gravação e de lançamento é mostrado. A música é um marco para a história da Música Serial do século XX, por ter ampliado as possibilidades formais da música Pop. A canção não estaria mais presa a uma forma fixa, pequena e limitada, seus limites formais de três minutos foram ampliados para mais de seis minutos. Ela foi lançada, inicialmente, em um EP (single) no dia 20 de julho de 1965 e depois foi incluída no disco “Highway 61 Revisited”, lançado mo dia 30 de agosto de 1965. Todas a músicas do discos tiveram um dos maiores produtores musicais de todos os tempos: Tom Wilson (1931-1978).

”Por quantas estradas um homem deve caminhar para que o chamem de homem?” No documentário “No Direction Home”, Martin Scorsese caminha de 1941 até o ano de 1966, no qual o mundo passou a conhecer apenas e somente Bob Dylan. Ao final de 208 minutos de documentário, pode-se entender o que foi e o que é Bob Dylan. Há a possibilidade de se conhecer mais profundamente um gênio por trás de grandes composições como “Blowin’ In The Wind”; “A Hard Rain’s A- Gonna Fall”; “Subterranean Homesick Blues”; “Mr. Tambourine Man”, "Desolation Row", “Don't Think Twice, It's All Right” e, é claro, “Like a Rolling Stone”, no qual há a certeza de que os gênios fazem as suas próprias regras. Mas, Zimmerman e Dylan ainda possuem traços em comum, o primeiro é Robert, o segundo é Bob, este diminutivo daquele, concordando com Lennon.

Trailer de No Direction home:


Trecho do show em que Bob Dylan é chamado de "Judas" no dia 17 de maio de 1966 no Free Trade Hall, em Manchester:







Sessão Zoom ao Ar Livre

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A Sessão Zoom abre o mês de maio com cinema ao ar livre. A "4° Guerra Mundial" é um documentário que mostra imagens e as vozes de uma guerra não noticiada. Reuni cenas e histórias de várias manifestações pelo mundo.

O curta "A Caminho da Copa" abrirá a sessão mostrando os impactos negativos da realização da Copa do Mundo de Futebol FIFA no Brasil.

Após a sessão haverá bate-papo entre os presentes com Breno Rodrigues.

Local: Praça das Bandeiras
Horário: 19h30
Data: 05/05 - Segunda-feira



Quando ‘Azul é a Cor Mais Quente’

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Azul é a cor mais quente’ (La Vie D’Adèle, França) foi o grande ganhador do principal prêmio do Cinema mundial: a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, em 2013. O filme é dirigido pelo cineasta Abdellatif Kechiche (1960-), mostrando a vida de Adèle (Adèle Exarchopoulos) dos seus quinze anos até os vinte e poucos, com passagens da sua vida escolar e, principalmente, da formação da sua vida afetiva e amorosa quando encontra a cor azul nos cabelos de Emma (Léa Seydoux). O filme é uma adaptação da graphic novel (novela gráfica/história em quadrinhos) homônima (Le Bleu est une couleur chaude) da artista francesa Julie Maroh (1985-). 

No filme, Adèle é uma adolescente de quinze anos que vive uma rotina: acorda, quase perde o ônibus, vai para a escola-, volta para casa, janta com os pais, dorme. Depois, a repetição em um eterno retorno. Acompanhamos, inicialmente, a rotina da jovem nos sete primeiros dias, ela tenta se relacionar com um garoto, uma garota, ou mesmo nas discussões da aula de literatura francesa. No sétimo dia, Adèle cruza o seu olhar com uma mulher de cabelos azuis que atravessa a praça. Como obra do acaso, ou do destino, como discutiam na aula de literatura sobre a tragédia grega, é algo que não se pode evitar, a mulher de cabelos azuis a fascina. 

Adèle é uma adolescente, busca compreender o mundo a sua volta, mas não se encaixa nele. Ela tem desejos, vontades que se reprimidas, reprimem a sua própria essência. Como uma forma de escolha, Adèle vai procurar Emma e se apresenta. As duas passam a se relacionar afetivamente e, depois, sexualmente. Não há o acaso, e como a essência precede a existência, há a liberdade de escolha, sendo ela uma condição humana. A vida de Adèle muda, tendo o prazer e o outro como base de sua formação. Passam a morar juntas e juntas se entrelaçam na mais humana de todas as relações: a sexual. 

A cor azul foi utilizada pelo pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973) durante o seu “período azul”, antes do artista se render à estética cubista. A cor no contexto do filme possui uma grande importância, não apenas para o enredo, mas também na fotografia e na direção de arte. A vida de Adèle era cinza, de modo que o filme se inicia no outono, a luz e as cores são de alguns tons de cinza. O azul começa a aparecer, como exceção: em um esmalte, em um lenço, no banco do parque e, por fim, nos cabelos de Emma. A fotografia passa a ter tons azulados, assim como a passagem do frio ao calor. Neste contexto, azul é a liberdade, o prazer, a vida, o calor. 

O filme centra-se em Adèle, na passagem da sua adolescência, período de descobrimentos, conhecimento e autoconhecimento, para a fase adulta. A sua formação depende de uma alteridade, ou seja, depende do outro. Emma é o seu contraponto, a sua antítese, assim há uma dialética das cores, no qual o cinza é a tese, o azul a antítese, sendo a síntese o amor. A vida de Adèle é mostrada como uma formação, uma evolução, assim como os romances de formação do início do século XIX, o seu desenvolvimento, moral, social, afetivo e sexual é mostrado. Sua vida muda, floresce, passa de menina para mulher, de aluna para professora. 

Com ‘Azul é a cor mais quente’, e por enquanto apenas com ele, o diretor Abdellatif Kechiche se iguala, em termos de qualidade e técnicos, aos melhores cineastas da atualidade: Michael Haneke, Kim Ki-Duk, Abbas Kiarostami, Fatih Akın e Lars von Trier. O diretor faz um filme autoral com um estilo cinematográfico, em algumas cenas, principalmente as com Adèle, seja no ambiente familiar, sobre a mesa de jantar, ou mesmo as com Emma, a câmera, a fotografia e a montagem não apenas representam aquilo que está sendo mostrado, mas também possuem uma função, um estilo. Ele consegue ainda dar uma função narrativa e estética para as cenas de sexo, não sendo algo banal, apelativo ou fetichizado; mas, sim, sublime, belo e estético. 

Azul é a cor mais quente’ possui uma estreita relação com as artes plásticas. O filme é uma adaptação da história em quadrinhos homônima de Julie Maroh e como toda adaptação há pontos de diálogo, intersecção e distanciamento. Alguns planos do filme foram baseados em algumas sequências da narrativa gráfica, como por exemplo, o cruzamento entre Emma e Clementine, que no filme tem o nome de Adèle, ou mesmo em algumas cenas de sexo. A pintura é algo recorrente, de modo que Emma é pintora e em algumas cenas há a sobreposição da imagem pintada com a imagem cinematográfica, o que coloca a discussão da relação entre ambas, já feita pelo mentor da Nouvelle Vague Francesa André Bazin (1918-1958) na sua obra ‘Problemas da pintura’ e pelo cineasta Jean-Luc Godard (1930-) no filme ‘Acossado’ (1960). 

Em ‘Azul é a cor mais quente’, na vida de Adèle há a formação afetiva, amorosa e sexual a partir da relação homoafetiva com Emma, o que traz a sua maturidade. Aos quinze anos, sua vida possui cores frias com tons de cinza, com dias repetitivos até a libertação pelo azul. Pois, como proclama o lema iluminista: “a liberdade é azul”. No entanto, na escala cromática das cores, o azul não é uma cor quente, mas na vida de Adèle, a liberdade é azul, quando o azul é a cor mais quente.

Trailer do filme:

“Hiroshima, Mon Amour”: o Chronos cinematográfico de Alain Resnais

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Quando se diz que um cineasta pertence à fileira da estética cinematográfica da Nouvelle Vague Francesa, logo se tem a tendência de assimilá-lo à Cinemateca Francesa e à revista de crítica cinematográfica Cahiers du Cinéma, fundada por André Bazin (1918-1958). No caso do cineasta francês Alain Resnais (1922-), a sua formação e atividade profissional não estão ligadas a estes dois elementos embrionários dos demais cineastas da Nouvelle Vague, como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol; mas sim a uma atividade cinematográfica ligado ao estudo acadêmico e ao gênero documental. No seu primeiro longa-metragem “Hiroshima, Meu Amor” (Hiroshima, Mon Amour, França, 1959), Alain Resnais, ao lado de François Truffaut com o filme “Os Incompreendidos” (Les 400 Coups, 1959), deram visibilidade à ‘Nova Onda Francesa’ no Festival de Cinema de Cannes de 1959. 

Antes de realizar o seu primeiro longa-metragem, Alain Resnais foi um premiado documentarista, tendo ganhado diversos elogios e prêmios com a realização de documentários, que tratavam dos horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com esta bagagem, o diretor foi convidado por produtores para realizar um filme sobre a guerra, mas que tivesse alguma relação entre a França e o Japão na temática do enredo. Para o roteiro do filme, Resnais convidou a escritora francesa Marguerite Duras (1914-1996), que vinha em ascensão através da estética literária do Nouveau Roman (Novo romance). Duras aceitou o desafio e escreveu o roteiro, fazendo a junção de elementos da linguagem literária com a linguagem cinematográfica. 

Hiroshima, Mon Amour” narra a história de uma atriz francesa (Emmanuelle Riva), que está na cidade japonesa de Hiroshima para fazer um filme “sobre a paz”. A atriz acaba tendo um relacionamento amoroso com um arquiteto japonês (Eiji Okada); o que desencadeia um emaranhado de recordações sobre a guerra. As recordações fazem com que ela reviva alguns traumas passados, que são revelados a partir de flash-backs. As ações do presente acabam desenterrando, deste modo, lembranças de um tempo outrora esquecido. No entanto, as ações do presente são afetivas, amorosas, belas; as do passado são, inicialmente, belas, mas depois horríveis e, por fim, traumáticas. 

Na primeira parte do filme, de aproximadamente quinze minutos, vemos um documentário sobre os horrores, dramas e conseqüências da Segunda Guerra Mundial. As imagens são fortes, os danos, causados pela bomba atômica lançada sobre Hiroshima no dia 06 de agosto de 1945, são assustadores; uma voz em off narra e comenta as imagens. Em seguida, na segunda parte, tem-se o casal de amantes usufruindo de seus corpos e divagando sobre os horrores da guerra. Na primeira parte do filme, Resnais a estrutura de forma documental, vemos um documentário, o que gera um efeito de estranhamento. No momento da transição da parte documental para a ficcional, há algumas imagens do casal com seus corpos nus em cenas amorosas; a partir deste ponto, começa a narrativa ficcional. 

Resnais estrutura o filme a partir de dois eixos temáticos: o presente e o passado. As ações do presente desencadeiam lembranças colocadas nas profundezas da psique. Ao se relacionar com o arquiteto japonês, a atriz francesa se recorda da relação amorosa que tivera com um soldado alemão durante a ocupação nazista à França. Após o término da guerra, são mostradas toda a sua desgraça e a sua humilhação recebida, já que as mulheres francesas, que se relacionaram com os soldados alemães, foram espancadas em praça pública, além de terem os seus cabelos raspados, o que a obrigou permanecer em um porão até que crescessem novamente. O interessante é que o presente nunca se apresenta como possibilidade real. Ele desencadeia reminiscências de um tempo pretérito que, ao ser reconstruído, mesmo que involuntariamente; traz à tona traumas. As personagens tentam esconder os traumas, colocando “areias da ampulheta” sobre eles. 

Outro ponto interessante de “Hiroshima, Mon Amour” concerne a sua estreita relação com a literatura. A escritora Marguerite Duras escreveu o roteiro tendo como base os aspectos do Nouveau Roman. Resnais conseguiu passar para a narrativa fílmica todos estes elementos, o que gerou um diálogo entre a linguagem literária e a linguagem cinematográfica, sem, contudo, descaracterizar a segunda. Ao relacionar ambas as linguagens, Resnais destaca os elementos da linguagem cinematográfica, que se organiza com a preponderância de um discurso imagético. O eixo de significação sai do eixo da ação para o eixo da imagem. 

Alain Resnais, em “Hiroshima, Mon Amour”, deu uma dimensão interessante ao Cinema, uma dimensão que privilegia o discurso imagético, devido ao tratamento à imagem cinematográfica e ao tempo. Ele se utiliza de dois gêneros cinematográficos: o documental e o ficcional. No filme, podemos ver a obsessão de Resnais no que tange ao tempo. Ele faz um tratado sobre o chronos, de modo que há dois grupos temporais: o tempo coletivo e o tempo individual que se estruturam e, às vezes, se entrelaçam, segundo os eixos do passado e do presente. Nota-se ainda uma estreita relação com a durée do filósofo Henri Bergson (1859-1941), já que cada tempo possui a sua unidade e a sua duração, além de seu significado próprio. Não há a busca pelo tempo perdido, porque ele sempre volta.

Trailer do filme:


Seriados Televisivos

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Imaginemos a indústria do audiovisual como um supermercado onde se vende m apenas produtos industrializados de diversas marcas e qualidades, das piores e mais baratas, como produtos da globo filmes, a produtos intermediários hollywoodianos, e alguns itens de qualidade, representados por alguns seriados televisivos estadunidenses. Enquanto filmes hollywoodianos seguem uma fórmula simples e recorrente, sem qualidade, os seriados possuem maior liberdade de criação tanto no roteiro quanto em técnicas, é o que ocorre com as séries: ‘Breaking Bad’, ‘Game of Thrones’, ‘Vikings’ e ‘The Big Bang Theory’. 

Em termos técnicos e de fotografia a série Breaking Bad (2008-2013) é a melhor. Em relação à fotografia, há a busca de planos com diversos ângulos com pontos de vistas diferentes do padrão, o que cria um jogo de câmera de qualidade e diferenciado. Há planos, aparentemente sem sentido, mas cheio de carga metafórica: seja um lagarto caminhando pelo deserto, ou um ursinho de pelúcia em uma piscina. 

Outro ponto de destaque da série é a quebra do maniqueísmo, pois não há uma ética de estado e, sim, de ação, de modo que há uma linha tênue entre o que é certo e errado. O protagonista é o professor de química Walter White, interpretado pelo premiado ator Bryan Cranston. Ele mora com a família em Albuquerque, Novo México-EUA, e descobre que está com câncer em estágio avançado. Em um contexto de crise econômica, começa a produzir metanfetaminas, uma droga ilegal e cara, para, assim, poder deixar dinheiro para a esposa e filhos. 

Quando ‘Game of Thrones’ foi lançado em 2011, e o inverno estava chegando, houve um estranhamento por parte do público, pois a série seria uma obra que substituiria a lacuna deixada pela trilogia de ‘O Senhor dos Anéis’ no cinema. No entanto, ela foi exibida pelo canal de televisão HBO e não como filmes. Uma série baseada no universo criado pelo escritor George R. R, Martin seria perfeita para produções hollywoodianas, mas foi transformada em seriado televisivo. 

A narrativa se passa em um universo com traços medievais havendo sete reinos, chamados de sete casas, de Westeros, onde "verões duram décadas e os invernos uma vida inteira". O mais interessante da série é a construção das personagens, cada reino ou casa, possui um arquétipo de personalidade, o que pode criar identificações com as personalidades do público. Outro ponto interessante, é que ela é uma série épica aparentemente machista, no entanto, apenas as mulheres (e o anão Tyrion Lannister) agem de forma racional, de modo que os homens agem de forma instintiva e de acordo com as características da sua casa. 

Alguns canais de televisão especializados apenas em documentários começaram a produzir séries ficcionais, como é o caso do History que produziu a série ‘Vikings’ (2013-), um drama histórico que narra as aventuras do guerreiro viking Ragnar Lodbrok no século IX. Tem-se uma narrativa histórica que se baseia no desenvolvimento de uma tribo viking e a invasão nórdica à Inglaterra e a outros países europeus. 

A fotografia e as cenas de luta são os destaques da série, além da fidelidade histórica com a reconstrução de vilas e barcos, o tema do contato entre culturas diferentes: a nórdica (pagã) e a europeia (cristã) é um outro aspecto interessante. As cenas de luta são produzidas sem efeitos especiais e com uma grande quantidade de coadjuvantes, o que cria cenas realistas e impactantes. Não há a utilização de efeitos especiais baseados no chroma key, que coloca a partir de computação gráfica elementos que não foram filmados. 

A maioria dos bons seriados televisivos da atualidade são dramas ou narrativas épicas, mas outra série de qualidade é a comédia ‘The Big Bang Theory’ (2007-). Ela é um sitcom onde as personagens agem em locais fixos e o cômico surge dos diálogos, no caso dela o grande destaque, pois há recorrentemente referências ao universo geek e da física. No enredo têm-se os físicos Leonard Hofstadter e Sheldon Cooper que moram juntos em um apartamento, onde se passa a maioria dos episódios; além de Howard Wolowitz e Rajesh Koothrappali, há a personagem feminina Penny, que não pertence à área da ciência e ao universo geek, o que gera uma interação cômica. No entanto, o grande destaque da série são os diálogos. 

Os seriados televisivos podem ser considerados como o que de melhor é produzido dentro da indústria audiovisual. Um produto industrial de qualidade para o consumo rápido em uma sociedade onde tudo é feito para não durar, com uma existência liquida e passageira. Entre produtos indigestos com uma qualidade ruim de ingredientes com atores globais ou estrelas hollywoodianas, as prateleiras de alguns seriados televisivos como ‘Breaking Bad’, ‘Game of Thrones’, ‘Vikings’ e ‘The Big Bang Theory’ são o que há de melhor dentro do grande supermercado do audiovisual, atualmente.

‘A Fita Branca’: Um Filme Sobre As Origens Do Nazismo

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Michael Haneke
Se o cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-1997) conseguiu filosofar através do Cinema com filmes como ‘O Sétimo Selo’ (Det sjunde inseglet, 1956), ‘Através de um Espelho’ (Såsom i en spegel, 1961) e ‘A Hora do Lobo’ (Vargtimmen, 1968), levantando questões metafísicas humanas como a existência de deus, o livre arbítrio e o sentido da vida. O cineasta austríaco Michael Haneke (1942-) conseguiu fazer uma análise psicológica usando o Cinema, revelando o lado obscuro da essência humana. No filme ‘A Fita Branca’ (Das weiße Band, 2009), com o qual ganhou a sua primeira Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, ele tenta compreender a gênese da doutrina nazista. 

A Fita Branca
O enredo do filme se passa em uma pequena aldeia no interior da Alemanha às vésperas das 1ª Guerra Mundial (1914-1918). A paz e a calmaria são quebradas quando pequenos incidentes passam a ocorrer: um arame esticado entre duas árvores provoca um acidente com o médico local; um celeiro é incendiado; uma horta é destruída; o filho do barão é agredido, como também o filho da parteira, que possui necessidades especiais. A população da vila não sabe quem são os responsáveis pelos atos, o que cria uma desestabilização do ambiente, que é aumentada com a iminência da guerra, quando no dia 28 de julho de 1914 o arquiduque Francisco Ferdinand (1889-1914) é assassinado em Sarajevo. 

O cineasta Michael Haneke estudou Psicologia e Filosofia na Universidade de Viena, Áustria, antes de se dedicar ao Cinema. Nos seus filmes, há com frequência a tentativa de compreender as motivações psicológicas das personagens baseando-se nos princípios de Eros (o princípio de prazer) e a civilização (princípio de labuta e realidade), de modo que quanto mais se reprime os princípios de prazer, mais se exterioriza ações de autoflagelação, como, por exemplo, no filme ‘A Professora de Piano’ (La Pianiste, 2002), ou de agressão externa, como ocorre nos filmes ‘O Vídeo de Benny’ (Benny's Video, 1992), ‘Violência Gratuita’ (Funny Games, 1997) e ‘Caché’ (2005). 

A Fita Branca
Em ‘A Fita Branca’, Haneke também trabalha o enredo na tentativa de compreender as motivações psicológicas das personagens. Todos os acontecimentos que deturpam o cotidiano da vila sugerem-se que são provocados por um grupo de crianças de idade entre cinco e quinze anos, filhos do pastor e outras famílias da localidade. Novamente, Haneke coloca a repressão de sentimentos e instintos como o elemento causador da exteriorização da violência, pois a educação das crianças é austera e rígida, seja no seu aspecto social quanto moral, já que a religião é algo presente e muito forte na vida delas. 

A Fita Branca
Haneke, em ‘A Fita Branca’, faz uma alegoria da gênese da ideologia nazista. As crianças que são retratadas no filme são aquelas que vinte anos depois serão os arautos e os agentes do nazismo, que estarão nas linhas de frente com a Wehrmacht, bombardeando a Europa através da Luftwaffe ou sendo agentes da SS (Schutzstaffel). O que se tem, inicialmente, são crimes que quebram a hierarquia da comunidade, provocados contra o Médico e o Barão; depois crimes de intolerância, provocados contra o filho da parteira, que possui necessidades especiais; em seguida, há crimes de punição como disciplina contra as outras crianças. Todos crimes de ódio, causados pela repressão. 

A Fita Branca
Um aspecto interessante é a fita branca, que no contexto da narrativa do filme significa a pureza. O Pastor da vila obriga seus filhos a usarem uma fita branca como um sinal de desconfiança, de modo que as crianças sejam lembradas a não cometerem desvios de condutas e não se entregarem as ações consideradas imorais, como a masturbação, por exemplo. Segundo o Pastor, o branco é a cor da inocência, da pureza e, assim, deve-se manter não só as crianças, mas toda a comunidade. Pode-se relacionar a fita branca, que é usada no braço das crianças, com o símbolo que os adeptos da ideologia nazista usarão no braço: a suástica. 

Eric Hobsbawm
A história pode ser analisada a partir de um processo no qual forças materiais agem sobre a sociedade fazendo com os fatos ocorram. Pode-se fazer uma análise materialista da história, como feita por Eric Hobsbawm (1917-2012) nos seus livros ‘A Era dos Impérios-1875-1914’, que explica como um processo histórico de 39 anos culminou com a 1ª Guerra Mundial; ou mesmo ‘A Era dos Extremos – 1914-1991’, no qual o historiador nos mostra como a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) gerou a 2ª Guerra Mundial (1939-1945), propiciando a ascensão de regimes autoritários na Europa, seja na Espanha franquista, na Itália fascista ou mesmo na Alemanha nazista. 

Theodor W. Adorno
Diferentemente de Eric Hobsbawm, o que Michael Haneke demonstra em ‘A Fita Branca’ não são as raízes históricas do nazismo, mas, sim, as raízes mais profundas do mal, aquelas psicosociais, que são também trabalhadas pelo filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969) ao tentar compreender a extrema racionalização esquemática e burocrática do regime nazista. Portanto, Haneke, em ‘A Fita Branca’, tenta compreender a gênese da doutrina nazista justamente com aqueles que serão os seus arautos e agentes: crianças com idade entre cinco e quinze anos, tentando desvelar as características psicológicas das personagens, tendo a repressão das emoções e a expressão da violência como alicerce. Há a passagem do micro (vila) para o macro (sociedade alemã) com a tentativa de compreender um fato histórico a partir de uma perspectiva psicosocial.

Trailer do filme 'A Fita Branca'