A relação entre
o Cinema e a Literatura se deu através de vários estágios e níveis ao longo da história da Sétima Arte. Nos seus primórdios, o Cinema era tratado, pejorativamente, como sendo um “Teatro filmado”, tendo ainda uma grande dependência dos romances do século XIX. Somente com o desenvolvimento e com a configuração de uma linguagem própria que o Cinema pode se firmar como uma expressão artística (Sétima Arte) e pode ainda ganhar autonomia frente à Literatura. O filme brasileiro “Nina” (2004), do diretor Heitor Dhália, nos mostra uma relação interessante entre a Literatura e o Cinema. O roteiro foi escrito por Marçal Aquino e é inspirado no célebre romance “Crime e Castigo” do escritor russo Fiodor Dostoiéviski.
Com a sua autonomia enquanto uma expressão artística, o Cinema passa a
se relacionar com a Literatura a partir de uma nova maneira: as obras literárias são adaptadas à linguagem cinematográfica. Contudo o processo de adaptação mostra-se complexo, não se limitando apenas aos comuns “adaptação fiel” ou “adaptação livre”, mas sim a um complexo nível de diálogo entre as duas linguagens: a literária e cinematográfica. Ambas as linguagens possuem as suas especificidades, com as suas respectivas potencialidades e limitações formais.
No caso do filme “Nina”, há um diálogo com o romance “Crime e Castigo”. A narr
ativa centra-se na personagem Nina (Guta Stresser), uma desenhista, uma artista na acepção do termo-, que começa a ter problemas de falta de dinheiro e, conseqüentemente, com a sua senhoria, uma repugnante velha que passa a tirar proveito da situação, forçando a garota a tornar-se sua empregada. Nina é uma artista, ela não se encaixa na categoria medíocre da cotidianidade e das relações hipócritas-, tanto que ela se rebela e mata a velha, sufocando-a com um saco plástico. Atormentada psicologicamente, Nina começa a ter alucinações, neuroses-, e acaba confessando o crime. Todavia, não acreditam que ela assassinara a velha, o médico alega que ela morreu devido a um ataque cardíaco.
A narrativa de “Nina” é inspirada no romance “Crime e Castigo”, alguns
pontos da história original são mantidos-, outros são modificados. O livro de Dostoiéviski narra a história de um jovem estudante chamado Raskolnikov, que vive em São Petesburgo. Sua família é pobre, o que o obriga a morar num pequeno quarto alugado por uma velha no “Beco S.”. Para conseguir se manter na cidade, Rodka começa a penhorar pequenos objetos de valor junto a uma velha aproveitadora. Indignado com a sua situação, ele mata a velha e a sobrinha, momento do crime. Em seguida, começa o castigo, que é mental, de ordem psicológica-, o que o leva a confessar o crime. Rodka é julgado e condenado.
O que leva Rodka a cometer, e justificar, o crime é a sua teoria de divisão d
a humanidade entre “Indivíduos ordinários” e “Indivíduos extraordinários”. A primeira categoria representaria os indivíduos comuns presos as suas preocupações medíocres do cotidiano e da misera existência, ou sub-existência-, já a segunda categoria seria os seres que se elevaram dentro da condição humana, seja ela ética ou artística, na qual tudo se justifica. No início do filme, há a narração em off desta passagem por Nina, tal conceito permeia toda a narrativa, já que Nina é uma desenhista e, portanto, uma artista-, sendo pertencente à categoria de “Indivíduos extraordinários”.
Outro ponto de diálogo direto com o romance se encontra nas cenas em que Nina têm pesadelos idênticos aos de Rodka, como o espancamento de um cavalo por um Mujique. Nos momentos de alucinações dela, têm-se também referências
às mesmas de Rodka. Logo os dois pontos de referência direta ao romance se encontram nos sonhos e nas alucinações de Nina, o que aumenta o diálogo entre ambas as obras. Contudo há algumas modificações: Rodka comete o crime, sofre o castigo de ordem psicológica-, se entrega à polícia. Nina, por seu turno, sofre castigos, comete o crime-, se entrega; mas não é condenada, pois ninguém acredita na confissão. Portanto, a ordem ‘crime e castigo’ é alterada.
No processo de adaptação, a narrativa do filme abre espaço para a interpretação diferente da interpretação do conteúdo do livro. A questão que se coloca no romance, e que
permeia quase que toda obra de Dostoiéviski, diz respeito à questão ética da justiça e do justo, por isso a teoria do “extraordinário” e do “ordinário”. Nas obras do escritor russo a questão do crime é sempre colocada numa ordem ética, moral-, sendo ele um componente “necessário” para a redenção do indivíduo, na acepção cristã do termo. No caso do filme, como a ordem ‘crime e castigo’ é invertida, o conteúdo tende a ressaltar temas diferentes, como o vazio da existência contemporânea e a mediocridade do cotidiano, além da questão da não adaptação a este por parte do Artista. Com a inversão e com o modo de adaptação do tema junto à linguagem cinematográfica, os pontos trabalhados por Dostoiéviski ganham nova dimensão, e até mesmo, novo sentido.
Um ponto interessante do filme é a sua fotografia. Apesar de ser um filme em cores, predomina-se as cores escuras-, o que cria um tom noir. Na relação
entre luz e sombra, prevalece a segunda como elemento predominante na composição das cenas. O efeito noir é realçado com os desenhos em preto e branco de Lourenço Mutarelli, que são intercalados nos momentos de pesadelo e alucinação de Nina. Há a mescla destes desenhos com pequenos trechos de animação. Na fotografia, os espaços são grandes, sóbrios e desérticos-, o que cria a sensação que só existem as personagens, mesmo nos espaços abertos e públicos, como nas ruas e praças. Não há ninguém, é meio que um “espaço kafkaniano”. A trilha sonora é outro aspecto interessante, indo da música eletrônica, ao rock, passando pelo Pop francês.
O filme “Nina” cria um nível interessante na relação entre a Literatura e o Cinema. O seu processo de adapta
ção se categoriza como sendo “inspirado”, já que há algumas modificações no plano da forma que interferem no plano do conteúdo. No filme, a ordem ‘crime e castigo’ é invertida para ‘castigo e crime’, o que origina a modificação do tema: em Dostoiéviski a justiça e a ética-; em Dhália as contradições e bizarrices do cotidiano, além da inadaptação do artista a este cotidiano. Nina não é Raskolnikov; Dostoiéviski nos coloca frente às questões filosóficas atemporais e universais; enquanto Dhália nos coloca frente a uma história, que poderia ser típica dos nossos medíocres tempos.
Nina (Guta Stresser) é uma jovem de sensibilidade agudíssima e mente fragilizada, que procura meios de sobrevivência numa metrópole desumana. A proprietária do apartamento onde mora, Dona Eulália (Myriam Muniz), uma velha mesquinha e exploradora, parece ter prazer em esmagar a vontade da sua inquilina exaurida. Em meio aos desenhos que faz em toda a parte e vivendo a agitada cena eletrônica de São Paulo, Nina mergulha nos fantasmas de seu inconsciente até acabar envolvida em um crime.