“Terra em Transe” (Brasil, 1967) é um filme roteirizado e dirigido pelo cineasta brasileiro Glauber Rocha (1939-1981), lançado meses antes do decreto do regime militar conhecido AI5 (Ato Institucional número 5), no qual há o endurecimento da repressão, da violência e do vandalismo do Estado brasileiro contra as bravas forças populares de oposição ao regime. Neste contexto, o filme de Glauber é lançado como uma obra pretensamente engajada, que pretende entender e conscientizar a população através da Arte, ou no seu caso específico, do Cinema, sendo o filme um veículo de debate e reflexão de mobilização sobre a necessidade, as práticas e o contexto da população. Questões estas que estão colocadas no contexto atual brasileiro.
A narrativa de “Terra em Transe” se passa na fictícia república de Eldorado, um pequeno país localizado no continente americano, próximo ao oceano Atlântico. O país está em um contexto de efervescência política, pois a província de Alecrim elege o Governador populista Vieira, interpretado por José Lewgoy (1920-2003), que terá um embate político com o senador Porfírio Diaz, interpretado por Paulo Autran (1922-2007), sendo a caricatura do político tecnocrata anticomunista e favorável ao domínio imperialista do capital americano e do progressismo. Em meio o jogo político está o poeta e jornalista Paulo Martins, que representa o intelectual e o artista dividido entre a sua Arte e o engajamento político.
O filme se inicia com uma panorâmica horizontal sobre o oceano, similar a usada no filme “Sou Cuba” (Soy Cuba, U.R.S.S, 1964), dirigido pelo cineasta soviético Mikhail Kalatozov (1903-1973). Há a execução de uma música modal africana com tambores: a percussão e os cânticos parecem introduzir o transe que está por vir, seja ele político, social ou intelectual. Pois, o transe é a alteração dos estados de consciência, é a semi-demência, é a mudança de comportamento, algo típico do processo político brasileiro, principalmente, em época de eleição.
“Terra em transe” é uma alegoria do processo político brasileiro da década de 1960. O que se destaca é o populismo, representado pelo personagem Vieira. Um comício feito por Vieira como candidato é mostrado, há o paternalismo, jornalista cobrindo a caminhada do político junto à população, o diálogo com a população, criança no colo, abraços, apertos de mãos e beijos. No entanto, o ponto chave da cena é o diálogo de Vieira com um representante comunitário, caracterizado por um homem pobre e que não consegue se expressar frente às forças políticas que o regem. Mas, ao fundo, há música de circo, executada por uma banda de metais, algo típico de um espetáculo, de uma festa.
A obra de Glauber Rocha se insere no contexto da ditadura militar, pretende ser uma obra engajada, que questione o regime e elucide para a população as condições de seu contexto histórico. Pretende elucidar como se dá a luta e a condição da população no plano político. Porém, ela é fraca, miserável, não tem forças para lutar contra a repressão, a violência e o vandalismo do Estado e do poder político, pois os mecanismos de repressão e de controle partem do Estado e são comandados pelas classes que o controlam, de modo que o filme coloca que a luta de classes existe.
A preocupação de Glauber Rocha está em fazer um filme que se insira nas fileiras da Arte engajada. Paulo Martins acaba sendo, assim, um alter ego do cineasta, a dúvida de Paulo é a mesma de Glauber: o Artista deve alienar-se do processo histórico, correndo o risco de ser absorvido pelas forças materiais que regem a história, ou tentar superar o conflito colocando a sua Arte a serviço da sociedade? Ele é similar a figura mitológica de Janus: volta o seu olhar para a Arte e para a Sociedade, em um duplo movimento, tentando trabalhar ambas.
As dúvidas e decepções de Paulo representam a angústia do Artista e do Intelectual tentando entender o processo histórico e político que o cercam, com todas as suas contradições, seja do sistema político que beneficia determinadas classes e mantêm outras na exploração e miséria, ou ainda da função social da Arte e do Artista. A população, ou o “o povo” de acordo com jargão populista e político, é apenas um coadjuvante no processo, pois estando no estado de miséria e ignorância não consegue entender o processo político e histórico, mantendo-se, assim, passivos e crentes no processo político, que nada a beneficia.
Por fim, as questões, que são colocadas por Glauber Rocha em “Terra em Transe”, são questões que estão presentes no processo histórico e na atual situação política brasileira. A população está mobilizada, mas diferentemente da que foi representada e que existia na década de 1960, ela não é fraca, é, antes, forte. Mas, corre o risco de ser manipulada e levada a tomar caminhos tortuosos à direita, enquanto pode tomar um caminho revolucionário de supressão das contradições políticas, sociais e econômicas com uma revolução social. O que é difícil, mas não impossível, de acontecer, pois mesmo com a repressão, violência e vandalismo do Estado, o processo ainda está em curso, não estando decidido, ainda. Lutar é preciso, a Arte é imprecisa; ambas são importantes.