Exilados e Estrangeiros

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"Minha pátria é minha língua", famoso verso da canção ‘Língua’, lançada no disco ‘Velô’ (1984) do compositor Caetano Veloso (1942-), coloca uma questão importante: a da identidade individual projetada em uma identidade coletiva. O mesmo tema é tratado pelo filme ‘Exílios’ (Exils, França, 2003) do diretor franco-argelino de etnia cigana Tony Gatlif (1948-), que possui como pátria, a Argélia; como língua, a francesa; e como identidade, a cigana. 

Em ‘Exílios’, o jovem músico Zano e sua namora Naïma decidem partir de seu apartamento em Paris em caminho à Argélia para rever o “lar” de seus avôs. Deixam a cidade luz europeia e partem em direção à região do Magreb africano, tendo como destino Argel. No caminho, passam por regiões rurais francesas, pela Espanha, se destacando a cidade de Sevilha e a região da Andaluzia, passando pelo Mar Mediterrâneo, por Marrocos e, por fim, Argélia. 

A viagem de Zano e Naïma é uma tentativa de busca de identidade, de autoconhecimento. Se sentem estrangeiros em Paris, mesmo sendo criados dentro da cultura e do pensamento cartesiano francês, sentem um vazio existencial. A identidade individual parte também da identificação coletiva, de uma alteridade com o outro, neste caso identificada apenas entre o casal e não com o coletivo. Eles não se identificam com o meio em que vivem. O caos urbano contrasta com a calmaria do apartamento e com a inquietação interna que possuem. 

Zano é descendente de colonos franceses que passaram gerações na Argélia, sendo pejorativamente chamados de “Pieds noirs” (“pés pretos”) quando retornaram à França após as “guerras coloniais” no final da década de 1950 e início de 1960, nas quais as colônias africanas, surgidas durantes a “Era dos Impérios: 1875-1914”, conseguiram a sua independência. Por seu turno, Naïma é descendente de árabes que migraram para a Europa. Portanto, na França, se sentem exilados e estrangeiros. 

O filme é um road-movie (‘filme de estrada’), um gênero cinematográfico no qual a narrativa dos filmes se desenrolam a partir de uma viagem e do consequente deslocamento espacial. No caso de ‘Exílios’, ele segue a estrutura básica do gênero, já que o filme é sobre a viagem de Zano e Naïma de Paris à Argélia. No entanto, pela Europa unificada, acabam caminhando em um contra fluxo, já que fazem a rota oposta de milhares de imigrantes clandestinos que saem do continente africano rumo ao continente europeu. 

O casal caminha como clandestinos, à margem, o fluxo segue em caminho contrário, pelo caminho encontram personagens que estão migrando, como um casal de jovens irmãos árabes, ou mesmo trabalhadores ilegais em uma plantação de pêssegos. Confraternizam com ciganos na Andaluzia, com as suas paisagens e arquiteturas moçárabes. Região historicamente de difícil categorização, pois foi local de convívio entre europeus e árabes durante séculos e, mesmo com a expulsão dos muçulmanos da península ibérica em 1492, houve uma geração que não era nem europeu e muito menos árabe. 

Na Andaluzia cantada pelo poeta Federico García Lorca (1898-1936) nos seus romanceros gitanos, Zano e Naïma se encontram com um grupo de ciganos, indivíduos que não pertencem a nenhuma pátria e não possuem uma língua que os representem juntamente com um estado, é uma etnia historicamente nômade. O interessante é que o diretor mostra apenas indivíduos ou grupos que estão à margem da sociedade europeia: imigrantes, clandestinos, ciganos, mulçumanos, trabalhadores rurais. No entanto, a cultura cigana e árabe ganham destaque, seja na música flamenca ou na arquitetura moçárabe. 

A busca pela identidade passa pelo reconhecimento do corpo como intermediador do eu com o meio. Naïma tem o corpo livre, não gosta de prendê-lo com roupas, está se movendo, dançando, enfim, movimentando-o. Quando chega à região do Magreb africano, se estranha com as vestimentas das mulheres mulçumanas, com o corpo todo coberto. Em Argel, capital da Argélia, é interpelada por uma mulher se não sentia vergonha de mostrar o corpo, pois estava usando um vestido. Não compreende a repressão do corpo. Ainda sobre o corpo, o filme se inícia com um close nas costas nus de Zano, o plano vai se abrindo, mostrando o conjunto do espaço. Partindo, assim, do corpo para o espaço. 

O escritor argelino Albert Camus (1913-1960), de descendência francesa e de língua francesa, também trabalha a questão de identidade no seu romance ‘O Estrangeiro’ (L'Étranger, 1942) através da personagem Meursault, que não se sente nem francês ou árabe, e que, ao matar um árabe na praia (também citado pela música ‘Killing an arab’ da banda inglesa The Cure), é julgado e condenado, não pelo crime, mas por não mostrar sentimentos no velório da própria mãe. Zano e Naïma são estrangeiros, vivem exílios em um mundo sem identidade e de constantes mutações, de modo que a busca da identidade vai além da língua, da pátria, volta-se para as entranhas do próprio ser. E ao final, a identidade não está na saída nem na chegada, ela se dispõe no meio da travessia, na própria viagem.

Trailer do filme "Exílios":

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