Os filmes de nossas vidas

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O Cinema é uma arte coletiva voltada para um público amplo. Não se realiza um filme com um único indivíduo exercendo todas as funções, como produzindo, atuando, gravando, dirigindo; é necessário um esforço conjunto de vários profissionais, técnicos e artistas. Um único espectador também não pode ser o dono da obra, ela é destinada a um público mais amplo, podendo atingir uma quantidade significativa de pessoas. Assistir à filmes é um ato de comunhão, é possível identificar gostos e preferências pessoais do outro, o que gera empatia ou mesmo antipatia, sendo comum em rodas de conversas entre amigos, familiares surgir discussões sobre filmes, atores, diretores, etc. No entanto, as melhores conversas sobre cinema surgem em diálogos. 

Em rodas de conversas sobre filmes prefiro ouvir do que falar, é mais interessante para mim. Há o amigo que achou ‘O regresso’ (2015, EUA), dirigido por Alejandro González Iñárritu, o melhor filme “dos últimos tempos”, com uma “atuação perfeita” de Leonardo DiCaprio; outro alega que é uma obra ruim, com uma atuação banal do ator premiado. Uma terceira diz que o diretor fez “uma cópia malfeita” do estilo do diretor soviético Andrei Tarkovski. Discutem filmes do presente, que acabaram de ser lançados no cinema ou que estejam disponíveis no Netflix. Quando algum dos membros não assistiu ao filme discutido, um se prontifica a compartilhá-lo para que possa ser assistido. 

Os familiares são mais saudosistas, falam dos filmes que viram no cinema em outras épocas; talvez, hoje, já na condição de clássicos ou mesmo na condição de fragmento da memória afetiva. Um tio viu ‘O retorno de Jedi’ no cinema com a namorada que gostaria de ter visto ‘Flashdance: em ritmo de embalo’; uma prima se lembra de ter chorado com a história de Jack e Rose, começam a discutir se o rapaz caberia ou não na tábua de madeira. Alguns se orgulham de terem vistos filmes nas suas estreias: ‘Tubarão’, ‘Rock III: o desafio supremo’, ‘Uma linda mulher’ ou ‘Duro de matar’. Há sempre o que diz, ainda nos dias de atuais, que o “cinema brasileiro é ruim” e que “só tem mulher pelada e pornografia”, é o mesmo que faz a piada se é “pavê ou pra comer”. 

Ir ao cinema também é uma atividade de casais, os que estão juntos a certa quantidade de tempo vão para entrar em comunhão a partir do filme; outros, os mais jovens usam o local como pretexto para “namorarem”. Certa vez, um casal de adolescentes entrou na sessão do filme ‘Dançando no escuro’, dirigido por Lars von Trier, pois era a única disponível no horário, saíram da sala em poucos minutos. Os dramas da personagem Selma, interpretada pela Björk, não propiciavam um “clima romântico”, como teriam no filme ‘A culpa é das estrelas’, se chegassem quarenta minutos antes. O cinema é ainda lugar da memória afetiva: em alguma sessão quebra-se a barreira do contato físico; em outra, pediram alguém em namoro, ou mesmo em casamento. 

No início é o logos, formado pelas conversas do cotidiano, depois o diálogo se intensifica quando começamos a conversar sobre cinema. No filme ‘Alta fidelidade’, as personagens Rob Gordon e Barry enumeram com frequência os/as cinco melhores músicas, discos, cantores, bandas, filmes; resolvo propor o mesmo, mas de forma alternada: ela fala um, depois eu outro, um jogo, um pretexto, como se não quiséssemos nos despedir. Começo, digo ‘8 ½’ do Fellini; o seu primeiro é ‘Na natureza selvagem’. Continuamos, hesitamos no que mostrar. Penso em ‘Andrei Rublev’, ela em ‘Belle de jour’, agora estamos entre um russo e um espanhol feito na França. 

O jogo é algo difícil de ser feito, pensamos, mas o fluxo de consciência ajuda. Devemos dizer o que vier à mente, falo ‘Magical Mystery Tour’, ela demora um pouco para falar, está pensando, responde ‘Pierrot le Fou’. Agora já foram três, ainda faltam dois. O quarto filme, que apareceu na minha mente, foi ‘Asas do desejo’; o dela ‘Vale Abraão’, do cineasta português Manoel de Oliveira, objeto de seu estudo. Chegou o momento do quinto, ela diz que não consegue escolher o último, concordo que é algo difícil, pensou em vários: ‘Má educação’, ‘Rosa púrpura do Cairo’, ‘Abril Despedaçado’ e ‘Encontros e desencontros’, mas não escolheu o quinto. Não hesito, até mesmo pelo contexto (“it's that thing”), afirmo ‘Frances Ha’. 

Já é tarde, livros do Eisenstein precisam ser lidos, filmes precisam ser vistos, textos precisam ser escritos, este resolvo escrevê-lo em seguida. O dia seguinte exige do anterior, é preciso prepará-lo. Penso no livro ‘O prazer dos olhos’ do cineasta francês François Truffaut, relaciono-o com o “prazer do logos” e do diálogo a partir de filmes. Com amigos e familiares os filmes são objetos de discussões, brigas apaixonadas; com algumas pessoas são fontes de diálogo, de conhecimento, do outro. Pode-se conhecer alguém pelos seus filmes prediletos, pelos filmes de nossas vidas. Tenho que assistir ao “Vale Abraão”, o único filme que me falta para conhecê-la.

Cena de "Frances Ha"

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