“Simpatia pelo Diabo” e por Godard

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Uma música mereceria um filme? Algumas poucas dentro da história da música popular massiva da segunda metade do século XX, sim, tais como ‘Like A Rolling Stone’ (1965) do Bob Dylan, ou mesmo ‘A Day in The Life’ (1967) dos Beatles, ou ainda ‘Johnny B. Goode’ (1955) do Chuck Berry, como também ‘White Light/White Heat’ (1968) do Velvet Underground. A música ‘Sympathy For The Devil’ (1968), da banda inglesa The Rolling Stones, teve o seu processo de gravação em estúdio filmado pelo cineasta francês Jean-Luc Godard (1930-), sendo lançado com o título de ‘Sympathy For The Devil - One Plus One’ (Inglaterra, 1968) em um filme cheio de referências ao contexto musical, histórico, cultural e político de 1968. 

Por gentileza, permita-me que apresente ‘‘Sympathy For The Devil’, uma música de fortuna e requinte gravada em junho e lançada como abertura do lado A no disco ‘Beggars Banquet’ em 06 de dezembro de 1968 pelos Rolling Stones. A canção foi composta por Mick Jagger tendo como inspiração para a letra o romance ‘O Mestre e Margarida’ (1940) do escritor soviético Mikhail Bulgakov e uma tradição ocultista que remete às ‘Litanias de Satã’ do poeta francês Charles Baudelaire, ou ainda às ‘fáusticas histórias’ do escritor alemão Goethe. Os arranjos são de Keith Richards e Brian Jones. O ritmo foi influenciado pela música modal africana a partir do Candomblé, que os músicos entraram em contato em uma visita à Bahia meses antes. 

Prazer em lhe conhecer, quando o cineasta Jean-Luc Godard vai a Londres, em junho de 1968, para realizar um filme com produtores britânicos, sua ideia inicial é modificada, sendo sugerido que faça uma produção com/sobre os Beatles ou mesmo os Rolling Stones. Os primeiros recusam por questões contratuais, já os segundos aceitam a proposta de realizar um filme com o grande nome da nouvelle vague francesa. Da parceria surge o filme ‘Sympathy For The Devil - One Plus One’. 

O filme se inicia com o ensaio da música, Brian Jones e Mick Jagger estão com instrumentos de cordas decorando os primeiros versos da canção. Em seguida, chega Keith Richards e, a partir de uma panorâmica horizontal, têm-se os outros músicos como o baterista Charlie Watts e o baixista Bill Wyman; Jagger entoa o refrão “Pleased to meet you/Hope you guess my name”. A câmera é documental, mostra o processo de gravação no estúdio Olympic em Londres. 

Godard entende a natureza do jogo, faz um filme que documenta o processo de gravação de ‘Sympathy For The Devil” entre os dias 04 a 10 de junho de 1968, mas, não apenas. Poucos dias antes, o cineasta estava no Festival de Cinema de Cannes na França, sendo um dos arautos (juntamente com os cineastas Carlos Saura, François Truffaut, Louis Malle, Terence Young e Roman Polanski) para o seu cancelamento em solidariedade às manifestações que estavam ocorrendo em Paris, em “Maio de 68”. 

Mas, o que intriga é o filme de Godard. O cineasta já havia abandonado as propostas estéticas da nouvelle vague para fazer filmes de caráter político através do grupo cinematográfico Dziga Vertov, que fundara no início de 1968. No filme, o cineasta vai além da música, coloca a sua nova diretriz política marxista segundo várias esquetes narrativas, discutindo o contexto social e político da época, dando vozes para os Panteras Negras, com a discussão racial; para as formas de manifestações sociais e a posição do intelectual; ou ainda a Guerra do Vietnã. As esquetes são surrealistas, quebram com o efeito de realidade e com o discurso cinematográfico padrão. 

Paris era o centro das manifestações políticas a partir de maio de 1968, Londres era a capital cultural. O termo “Swinging London” foi usado para descrever a efervescência cultural da cidade que estava na vanguarda da música com a “invasão britânica’, das artes e do cinema com os diretores Tony Richardson, Richard Lester e Lindsay Anderson. Assim, vários cineastas de outras nacionalidades foram filmar na cidade, tais como o francês François Truffaut com ‘Fahrenheit 451’ (1966), ou mesmo o italiano Michelangelo Antonioni com o filme ‘Blow-up’ (1967), e também Jean-Luc Godard com ‘Sympathy For The Devil - One Plus One’ (1968). 

Com o filme ‘Sympathy For The Devil - One Plus One’, Godard cria uma polifonia, um conjunto de vozes, de discursos: do musical com o processo de gravação da canção ‘Sympathy For The Devil’ centrado em uma banda de rock, os Rolling Stones; como também político com os Panteras Negras; ou ainda histórico, com a discussão sobre a Guerra do Vietnã. As vozes são musicais, trechos de obras literárias, sociológicas ou mesmo filosóficas. Há a voz em off, que destoa da imagem, pichações em muros, carros com os dizeres: “Cinemarxism”, “Freudemocracy”, “sovietcongs”. Jean-Luc Godard cria uma obra que presenciará muitos acontecimentos.

Trailer do filme:

Exilados e Estrangeiros

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"Minha pátria é minha língua", famoso verso da canção ‘Língua’, lançada no disco ‘Velô’ (1984) do compositor Caetano Veloso (1942-), coloca uma questão importante: a da identidade individual projetada em uma identidade coletiva. O mesmo tema é tratado pelo filme ‘Exílios’ (Exils, França, 2003) do diretor franco-argelino de etnia cigana Tony Gatlif (1948-), que possui como pátria, a Argélia; como língua, a francesa; e como identidade, a cigana. 

Em ‘Exílios’, o jovem músico Zano e sua namora Naïma decidem partir de seu apartamento em Paris em caminho à Argélia para rever o “lar” de seus avôs. Deixam a cidade luz europeia e partem em direção à região do Magreb africano, tendo como destino Argel. No caminho, passam por regiões rurais francesas, pela Espanha, se destacando a cidade de Sevilha e a região da Andaluzia, passando pelo Mar Mediterrâneo, por Marrocos e, por fim, Argélia. 

A viagem de Zano e Naïma é uma tentativa de busca de identidade, de autoconhecimento. Se sentem estrangeiros em Paris, mesmo sendo criados dentro da cultura e do pensamento cartesiano francês, sentem um vazio existencial. A identidade individual parte também da identificação coletiva, de uma alteridade com o outro, neste caso identificada apenas entre o casal e não com o coletivo. Eles não se identificam com o meio em que vivem. O caos urbano contrasta com a calmaria do apartamento e com a inquietação interna que possuem. 

Zano é descendente de colonos franceses que passaram gerações na Argélia, sendo pejorativamente chamados de “Pieds noirs” (“pés pretos”) quando retornaram à França após as “guerras coloniais” no final da década de 1950 e início de 1960, nas quais as colônias africanas, surgidas durantes a “Era dos Impérios: 1875-1914”, conseguiram a sua independência. Por seu turno, Naïma é descendente de árabes que migraram para a Europa. Portanto, na França, se sentem exilados e estrangeiros. 

O filme é um road-movie (‘filme de estrada’), um gênero cinematográfico no qual a narrativa dos filmes se desenrolam a partir de uma viagem e do consequente deslocamento espacial. No caso de ‘Exílios’, ele segue a estrutura básica do gênero, já que o filme é sobre a viagem de Zano e Naïma de Paris à Argélia. No entanto, pela Europa unificada, acabam caminhando em um contra fluxo, já que fazem a rota oposta de milhares de imigrantes clandestinos que saem do continente africano rumo ao continente europeu. 

O casal caminha como clandestinos, à margem, o fluxo segue em caminho contrário, pelo caminho encontram personagens que estão migrando, como um casal de jovens irmãos árabes, ou mesmo trabalhadores ilegais em uma plantação de pêssegos. Confraternizam com ciganos na Andaluzia, com as suas paisagens e arquiteturas moçárabes. Região historicamente de difícil categorização, pois foi local de convívio entre europeus e árabes durante séculos e, mesmo com a expulsão dos muçulmanos da península ibérica em 1492, houve uma geração que não era nem europeu e muito menos árabe. 

Na Andaluzia cantada pelo poeta Federico García Lorca (1898-1936) nos seus romanceros gitanos, Zano e Naïma se encontram com um grupo de ciganos, indivíduos que não pertencem a nenhuma pátria e não possuem uma língua que os representem juntamente com um estado, é uma etnia historicamente nômade. O interessante é que o diretor mostra apenas indivíduos ou grupos que estão à margem da sociedade europeia: imigrantes, clandestinos, ciganos, mulçumanos, trabalhadores rurais. No entanto, a cultura cigana e árabe ganham destaque, seja na música flamenca ou na arquitetura moçárabe. 

A busca pela identidade passa pelo reconhecimento do corpo como intermediador do eu com o meio. Naïma tem o corpo livre, não gosta de prendê-lo com roupas, está se movendo, dançando, enfim, movimentando-o. Quando chega à região do Magreb africano, se estranha com as vestimentas das mulheres mulçumanas, com o corpo todo coberto. Em Argel, capital da Argélia, é interpelada por uma mulher se não sentia vergonha de mostrar o corpo, pois estava usando um vestido. Não compreende a repressão do corpo. Ainda sobre o corpo, o filme se inícia com um close nas costas nus de Zano, o plano vai se abrindo, mostrando o conjunto do espaço. Partindo, assim, do corpo para o espaço. 

O escritor argelino Albert Camus (1913-1960), de descendência francesa e de língua francesa, também trabalha a questão de identidade no seu romance ‘O Estrangeiro’ (L'Étranger, 1942) através da personagem Meursault, que não se sente nem francês ou árabe, e que, ao matar um árabe na praia (também citado pela música ‘Killing an arab’ da banda inglesa The Cure), é julgado e condenado, não pelo crime, mas por não mostrar sentimentos no velório da própria mãe. Zano e Naïma são estrangeiros, vivem exílios em um mundo sem identidade e de constantes mutações, de modo que a busca da identidade vai além da língua, da pátria, volta-se para as entranhas do próprio ser. E ao final, a identidade não está na saída nem na chegada, ela se dispõe no meio da travessia, na própria viagem.

Trailer do filme "Exílios":

‘Quadrophenia’ Musical e Cinematográfica

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Quadrophenia’ (Inglaterra, 1979) é um filme dirigido por Franc Roddam, é baseado na “Ópera Rock” homônima lançada em 1973 da banda inglesa The Who, formada pelos músicos Roger Daltrey (1944-), Pete Townshend (1945-), John Entwistle (1944-2002) e pelo lendário baterista Keith Moon (1946-1978). O filme é um retrato do cenário musical e cultural londrino nos primeiros anos da década de 1960, com a oposição entre os dois principais grupos conhecidos como Mods e Rockers, como também a arquetipal dualidade entre o velho e o novo em uma sociedade em constantes transformações.

No filme, tem-se a história do jovem Jimmy, um mod que vive no subúrbio de Londres. Sua vida é influenciada pelo seu contexto social e cultural, sofre com o vazio da sua geração, sem perspectiva de futuro, a não ser em um emprego burocrático e alienante. O seu cotidiano é modificado quando se encontra com outros indivíduos adeptos do estilo mod, identificados pelos seus ternos e pelo consumo de anfetaminas, além de todos possuírem uma Lambreta decorada e cheia de espelhos. 

Os mods cultuavam a Lambreta não apenas como meio de transporte, mas como também estilo de vida e de diferenciador social. Eram adeptos da música pesada e moderna produzida por bandas inglesas como The Who, Small Faces, The Kinks e pelo importante grupo The Yardbirds, de onde saíram músicos como Eric Clapton, Jeff Beck, Jimi Page, sendo o embrião de bandas como Cream, The Jeff Beck Group e Led Zeppelin.

No contexto social britânico, os mods tinham como inimigos o rockers, que possuíam motos e se caracterizavam pelo uso de jaquetas de couros e um estilo mais despojado, se identificando com o estilo musical dos anos de 1950 conhecido como Rockabilly, com músicos como Gene Vincent, Jerry Lee Lewis, Carl Perkins, Buddy Holly, Bill Halley e Eddie Cochran, ou seja, a maioria músicos da gravadora Sun Records, fundada por Sam Phillips em 1952 em Memphis, Tennessee, nos Estados Unidos. 

Em ‘Quadrophenia’, Jimmy é um mod que sempre está em confronto com os rockers, o que representa um embate não apenas musical, mas também de ocupação do espaço urbano, tomada por jovens que se auto-afirmam a partir da identificação com um grupo de indivíduos com as mesmas características e se diferencia em relação a outros grupos sociais, o que gera conflitos. Em Londres, os mods não convivem nos mesmos espaços que os rockers e ao irem para o feriado na região litorânea de Brighton, na Inglaterra entram em conflito, causando transtorno com as constantes brigas generalizadas.

O filme mostra o conflito entre os mods e os rockes, como também o conflito entre gerações na sociedade inglesa. O conflito entre o velho e o novo representado pelo embate da música Rockabilly da década de 1950 e do R&B britânico da década de 1960. Ao tomar banho, Jimmy ouve alguém cantando ‘Be Bop a Lula’, de Gene Vincent, logo responde cantando em tom alto a música ‘You Really Got Me’, da banda The Kinks. “Os velhos valores” da sociedade e da cultura inglesa são representados pelos pais e pelo mercado de trabalho, que condicionam e limitam as possibilidades de desenvolvimento do indivíduo fora destas esferas, o que gera o conflito de gerações. 

O interessante do filme é a sua estreita relação com a música, sendo baseado em um disco da banda inglesa The Who, e produzido pelos integrantes dela. O filme coloca em destaque as músicas do disco homônimo. O que se tem no filme e no contexto social da segunda metade do século XX, é a musica popular massiva como identidade etnografia urbana entre grupos, aqueles que ouvem a música de um determinado gênero e se vestem como seus representantes possuindo uma identidade individual projetada em uma identidade coletiva. Como grupo, perdem a sua fraqueza individual e sentem a força coletiva, é o que acontece com Jimmy e seus amigos. 

Com ‘Quadrophenia’ do The Who, o gênero musical Rock se expande, o disco ganha uma pretensa unidade e as músicas uma narratividade, opondo-se, assim, ao Rock and roll, que surgiu como produto para adolescentes liberarem a sua libido através da música e da dança com a sua estrutura melódica simples. Quando o gênero Rock and roll evoluiu, tornando-se Rock, eleva-se a música popular massiva artisticamente, ganhando relevância cultural, ampliando os seus temas, a sua estrutura melódica, as harmonias, e as faixas etárias. 

Quando perguntado, no aeroporto JFK de Nova Iorque no dia 07 de fevereiro de 1964, logo no desembarque da “Invasão Britânica”, se os Beatles eram mods ou rockers (“Are you a mod or a rocker?”), o baterista Ringo responde serem “mockers” (“I'm a mocker”). O conflito real existiu, mods e rockers dividiram os jovens britânicos, mas os inimigos eram outros, que se somam com os dias dos anos. Do conflito surgiu o disco e o filme, de modo que sempre o atrito gera algo, sempre “Talkin' bout' my generation”.

Trailer do filme:


The Who - My Generation

O Cisne Branco e Negro

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Dentro da mitologia clássica grega há as Musas, figuras femininas responsáveis pela inspiração artística, sendo ao todo nove, cada uma com a capacidade de inspirar uma Arte. A Musa da Dança é conhecida como Terpsícore, como destaca o poeta grego Hesíodo na sua ‘Teogonia’. O cineasta estadunidense Darren Aronofsky (1969-) possui uma carreira cinematográfica que coloca as musas sob assédio da indústria cultural com filmes como ‘Noé’ (EUA, 2014), ‘O Lutador’ (EUA, 2008), ‘Fonte da Vida’ (EUA, 2006); mas também coloca em destaque Terpsícore com o filme ‘Cisne Negro’ (Black Swan, EUA, 2010). 

Cisne Negro’ narra a história de Nina Sayers (Natalie Portman), uma bailarina de uma companhia nova-iorquina de balé que fará uma montagem do ‘Lago dos Cisnes’ (1877), do compositor russo Tchaikovsky (1840-1893). Para receber o papel de rainha dos cisnes, Nina terá que interpretar ambos os cisnes: o Cisne Branco e o Cisne Negro, algo difícil, pois representam uma dualidade arquetipal humana entre bem e mal, o primeiro com inocência, graça, pureza e leveza; enquanto o segundo com malícia, sexualidade e robustez. 

Com a tentativa de incorporar o Cisne Negro, Nina cria um conflito psicológico, que questiona o estatuto do real e projeta o seu duplo, expressando uma dualidade e os seus conflitos internos. O que se tem é o conflito psíquico de Nina que cria um reconhecimento em relação à personagem Lily e uma projeção em relação a uma outra personalidade, mais livre, também representada pelo Cisne Negro. Para expressar a questão do duplo, Aronofsky coloca em diversas cenas jogos com espelhos, sendo a forma mais arcaica de duplicação do ser, o que também gera um duplo movimento em Nina de reconhecimento e estranhamento, pois se coloca através dos espelhos uma fronteira entre o real e o insólito, quebrada com frequência. 

O tema do duplo faz parte de uma tradição mitológica e literária, sendo o arquétipo básico da dualidade humana representada pela questão ética do bem e do mal, materializada em personagens dentro da mitologia judaica-cristã como Caim e Abel, Esaú e Jacó, ou mesmo na mitologia grega com a figura do sósia na narrativa de Anfitrião e Alcmena, ou mesmo no mito de Narciso. Na literatura, se expressa no conto ‘William Wilson’, do escritor estadunidense Edgar Allan Poe, ou mesmo no romance ‘O Homem Duplicado’ do escritor português José Saramago; e no conto ‘O Sósia’ do escritor russo Fiódor Dostoiévski

No cinema, o tema do duplo segue uma tradição de projeção de conflitos internos das personagens, como nos filmes ‘O Clube da Luta’ (Fight Club, EUA, 1999), de David Fincher; ou mesmo em ‘A Dupla Vida de Verônica’ (Polônia, 1991), de Krzysztof Kieslowski; como também o filme alemão ‘O Estudante de Praga’ (Student von Prag, 1913), de Paul Wegener; ou ainda em ‘Partner’ (França, 1968) de Bernardo Bertolucci. O filme ‘Cisne Negro’ segue a tradição do duplo, mas sem maniqueísmo, já que o lado obscuro de Nina ficou reprimido pela sua mãe, profissão, sendo ele a libertação. 

Para se libertar, Nina tem que deixar aquilo que a reprime sexualmente, artisticamente e socialmente. Ela como bailarina sempre buscou a perfeição, o que a credencia como interprete perfeita do Cisne Branco. No entanto, quanto maior for a repressão dos impulsos psíquicos humanos, mais degradantes são suas formas de libertação, como também demonstrado no filme ‘A Professora de Piano’ (La Pianiste, França, 2002) do diretor austríaco Michael Haneke. Nina se autoflagela, se coça, se corta, a dor é constante, criando uma estética da dor, pois tudo aquilo que tem uma aparência bela no seu estágio final, tem um processo doloroso e uma essência destruidora. 

A liberdade de Nina segue um percurso, sendo guiada por Thomas (Vincent Cassel), o diretor da companhia e um provocador, e pela personagem Lily que se mostra como antagonista, já que ela possui todas as características que são reprimidas por Nina. Lily é a guia, mostra a Nina a liberdade e se projeta como desejo de assimilação, principalmente sexual. A transformação de Nina fica clara nas suas roupas e na decoração do seu quarto, antes ela usavas apenas roupas claras e possuía bichinhos de pelúcia, depois suas roupas passam a possuir tons de escuro, o que expressa a sua transformação. 

Certa noite, ao fugir da sua realidade opressora, Nina se metamorfoseia em um cisne negro. Há um estado de ecstase, pois a liberdade é um estado de graça, a beleza, a libertação, a revolta, contra a mãe, contra uma personalidade opressora. No balé, a dança, a luz, o ritmo, os passos, o plié, a graça, a delicadeza são uma ode à Terpsícore. Com o filme ‘Cisne Negro’, o cineasta Darren Aronofsky protege as Musas do assédio com uma obra de qualidade dentro da indústria cultural.


Trailer do filme 'Cisne Negro':

A ‘Melancolia’ de Lars von Trier

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O diretor dinamarquês Lars von Trier (1956-) é o principal cineasta da atualidade, junto com o austríaco Michael Haneke (1942-). A filmografia do cineasta dinamarquês é uma busca constante de experimentação da linguagem cinematográfica e o incessante anseio da expressão artística individual através do cinema, seja nos tempos do movimento Dogma 95, na década de 1990, ou ainda com o seu filme ‘Melancolia’ (Melancholia, Dinamarca, 2011). Com ele, Lars conseguiu o status de persona non grata no Festival de Cinema de Cannes, mas fez um filme genial, dialogando com a psicologia, pintura e com a música. 

Melancolia é um estado, uma relação conflituosa com o meio, gerado por um antagonismo. Ela é um sentimento psicossocial, já que o estado psicológico influencia as relações sociais e vice-versa. O termo e o conceito de melancolia foram cunhados e desenvolvidos pelos gregos, sendo discutidos pelo “pai da medicina” Hipócrates no século V a.C. O indivíduo melancólico perde o entusiasmo e a vontade de se relacionar socialmente, tornando-se um ser socialmente inativo. 

No filme ‘Melancolia’, tem-se a melancólica história de Justine (Kirsten Dunst), seu casamento e a relação familiar com mãe, pai, o cunhado e irmã (Charlotte Gainsbourg). Ela oscila entre pequenos e curtos momentos de euforia com estados constantes de melancolia. Vivendo em um mundo de aparências e obrigações, seja para criar um slogan para uma campanha publicitária, Justine ainda tem que lidar com as suas emoções, conseguindo tranquilidade apenas em contato com a água, seja na banheira ou, como coloca Lars (em cenas metafóricas) no cartaz, em um riacho. Mas, o planeta Melancolia está em rota de colisão com a Terra, o que gerará a destruição do planeta. 

O filme se inicia com um prelúdio de aproximadamente dez minutos com a introdução do tema da obra com cenas em câmera lenta, mostrando a colisão do planeta Melancolia, que estava escondido atrás do sol, com o planeta Terra. Justine caminha, um cavalo cai, o espaço sideral é mostrado. Os planos são belos, plasticamente perfeitos, com cores que dialogam com a obra do pintor austríaco Gustav Klimt (1862-1918), o amarelo se contrasta com o verde. Há ainda um diálogo com o filme ‘2001: uma odisseia no espaço’ (1968) do diretor Stanley Kubrick (1928-1999) ou ainda com o seu contraponto soviético ‘Solaris’ (1972), do diretor Andrei Tarkovski (1932-1986). 

Em ‘2001: uma odisséia no espaço’, há a utilização da música clássica no “prólogo dos macacos” com a música ‘Assim falou Zaratustra’, de Richard Strauss, baseada na obra homônima do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, mostrando a evolução humana de um estágio primitivo para um mais evoluído: do osso à estação espacial. Em ‘Melancolia’, o uso da ópera ‘Tristão e Isolda’, do compositor alemão Richard Wagner, cria um ritmo lento e apresenta o tom do filme: o trágico. O fim é inevitável, Melancolia está em rota de colisão, mas não há uma histeria coletiva, há cenas belas, calmas, como a música de Wagner. 

Lars von Trier é um cineasta inquieto, sempre busca utilizar o cinema como uma forma de expressão artística tendo a linguagem cinematográfica como elemento e o filme como produto. Em ‘Melancolia’, ele funde gêneros cinematográficos, em específico a ficção científica com o drama, pois, no filme, o planeta Melancolia está preste a colidir com a Terra. No entanto, o drama particular e a melancolia das personagens são o mais importante. O diretor também funde gêneros em ‘Dançando no escuro’ (2000), mais especificamente o musical com o drama, neste caso um drama social devido às contradições do “american way of life”. 
O filme ‘Melancolia’ é dividido em duas partes: na primeira “Justine” tem-se a melancolia do ser humano e as relações sociais em espaços fechados, no caso em um casamento, o que evidencia os conflitos familiares e sociais pré-existentes. A primeira parte se assemelha a proposta do filme ‘Festa em família’ (1998) do também diretor dinamarquês e membro do Dogma 95 Thomas Vinterberg, no qual os conflitos familiares são expostos em um jantar familiar. Na segunda parte “Claire”, a melancolia é causada pela iminência da colisão do planeta Melancolia com a Terra. Claire é a irmã de Justine. 

Os filmes de Lars von Trier são antes de tudo teses e expressões artísticas de seu criador. Tese porque uma ideia e um ponto de vista são defendidos e obras de arte são feitas. Em ‘Os Idiotas’ (1998), Trier busca demonstrar como se livrar da sociedade capitalista e dos dogmas burgueses com “atos idiotas”. Já em ‘Dançando no escuro’ (2000) e ‘Dogville’ (2003) busca demonstrar e analisar as contradições do pensamento psicossocial estadunidense. Em “Melancolia”, o diretor coloca a discussão da melancolia provocada por estados internos ou por forças externas. O que se tem é a oposição de um estado momentâneo de alegria com a essência melancólica do ser, como também demonstrada pela poesia do poeta francês Charles Baudelaire nos seus quadros parisienses, que deram início à modernidade artística no auge do capitalismo.

Trailer do filme 'Melancolia'

Cada Um Com Seu Cinema

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Cada um com seu cinema” (Chacun son Cinéma) é um projeto cinematográfico realizado por trinta e quatro cineastas de vinte e cinco países que foram incumbidos de fazer um curta-metragem cada um de aproximadamente três minutos sobre o cinema. O projeto foi proposto por Gilles Jacob, então presidente do Festival de Cinema de Cannes, França, como uma forma de comemorar os sessenta anos do festival, em 2007. Lars Von Trier, Alejandro González Iñárritu, Walter Salles, Takeshi Kitano, Ken Loach, Abbas Kiarostami, Nanni Moretti, Wong Kar-Wai, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, David Lynch e Wim Wenders são alguns dos cineastas que mostraram as suas visões, memórias e paixões sobre o cinema. 

O projeto é simples: cada cineasta fez um curta-metragem de três minutos contando uma história de amor ao cinema em seu respectivo país ou de acordo com as suas memórias ou influências dentro da sétima arte. A maioria dos curtas trata do espaço cinematográfico de exibição, ou seja, a sala de cinema. Um local de prazer dos olhos que traz uma experiência estética, emocional e afetiva junto à obra cinematográfica ou mesmo entre todos que a compartilham. 

Há a memória individual de filmes que marcaram uma vida, como é o caso do curta “No escuro”, dirigido pelo cineasta russo Andrei Konchalovsky, no qual a já idosa personagem divide uma velha sala de cinema com um casal de jovens. Enquanto o casal usa a sala para namorarem, ela se emocional vendo o filme “8 ½ ” (Itália, 1963) do cineasta italiano Federico Fellini, tendo o ator Marcello Mastroianni como protagonista. 

O grande ator italiano é ainda homenageado no curta “Três Minutos” do diretor grego Theo Angelopoulos, tendo uma cena do filme “A noite” (Itália, 1961) do cineasta Michelangelo Antonioni como base. No curta, a mesma atriz que contracena com Marcello Mastroianni no filme de Antonioni refilma a sua fala em 2007. Jeanne Moreau se emociona ao repetir as palavras do roteiro de 1961, homenageando, assim, Marcello que morreu onze anos antes. 

Além da relação do cinema com a memória individual, há a sua relação com a memória coletiva. No curta “Assistindo ao filme”, do diretor chinês Zhang Yimou, uma pequena vila do interior da China tem a rotina quebrada quando um cinema itinerante é montado. A montagem da estrutura, a preparação do espaço, a espera do por do sol são momento únicos que vão gerando a grande expectativa da exibição do filme por parte dos aldeões, de modo que a alegria e a simples relação entre luz e sombra tudo recria, desautomatizando a vida cotidiana. 

O cinema é a sala mágica, um local de desautomatização e de prazer estético. No curta “A fundição”, dirigido pelo cineasta finlandês Aki Kaurismäki, um grupo de operários de uma fundição esperam ansiosamente a hora do almoço para poderem assistir à sessão de cinema, projetada a partir de um pequeno projetor Super 8, vêem um dos primeiros filmes da história do cinema “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon” dos irmãos Auguste e Louis Lumière.  

O cinema enquanto desautomatização é ainda trabalhado no curta “Um belo dia”, do diretor japonês Takeshi Kitano. Nele, um trabalhador rural chega a um pequeno e inóspito cinema, mas encontra alguns empecilhos de ordem técnica para assistir ao filme. Já no curta “Cinema ao ar livre”, o cinema é uma celebração coletiva, mesmo sendo montado em um local improvisado, tem-se vários indivíduos celebrando a sétima arte em comunhão. 

O filme “Cada um com seu cinema” é dedicado ao cineasta italiano Federico Fellini, mas, antes de tudo, é um filme sobre o cinema, de modo que há a recorrência da metalinguagem, ou seja, o cinema falando do próprio cinema de forma direta, como é o caso do melhor curta: “Profissões”, dirigido pelo cineasta dinamarquês Lars Von Trier, ou de forma indireta com intertextualidade em relação a outras obras cinematográficas, como é o caso da maioria dos curtas-metragens. Além do cineasta italiano, o francês Jean-Luc Godard é o mais citado e homenageado, seja através de um cartaz, cenas de filmes ou diálogos. 

O cinema é uma arte coletiva que pode ser uma expressão individual de um artista (cinema de autor). No caso de “Cada um com seu cinema”, temos expressões artísticas individuais de grandes cineastas formando uma obra coletiva de exaltação do cinema, seja retratando um passado idílico ou a arte cinematográfica na memória ou em práticas de resistência contra o mero e insignificante filme como produto. Cada um com os seus filmes e nos com o nosso cinema de autores.

Trailer do filme:


Bob Dylan e Martin Scorsese

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Na sua famosa composição niilista “God”, John Lennon (1940-1980) enumera vários nomes que ele não acredita. Dentre estes nomes está o de Robert Zimmerman (1941-). Indagado, em uma célebre entrevista para a famosa revista de rock Rolling Stone, em 1970, o porquê de ter dito não acreditar em Zimmerman ao invés de Bob Dylan, Lennon diz que não acredita em Dylan e que há apenas Zimmerman. No documentário “No Direction Home” (EUA, 2005), dirigido por Martin Scorsese (1942-), pode-se ver justamente a transformação de Robert Zimmerman em Bob Dylan: da sua infância em Hibbling-Minnesota, EUA, até a sua grande turnê européia, em 1966, no qual Dylan era Bob Dylan. 
 
A estrutura do documentário é simples e seus aspectos formais são tradicionais dentro do gênero. Há o depoimento de Dylan, contando fatos de sua vida, acontecimentos de sua carreira, além de seus próprios comentários sobre todo o conteúdo da narrativa. Os depoimentos de Zimmerman se mesclam com entrevistas de pessoas que conviveram com o “menestrel”, como a cantora Joan Baez, o poeta da geração Beat Allen Ginsberg, e os músicos Dave von Ronk, Suze Rotolo, Pete Seeger, dentre outros. Os depoimentos e as entrevistas do presente da narrativa se amalgamam com vídeos, fotos e entrevistas da época, além das performances de Dylan e sua banda entre 1960-1966. 

A temática do documentário é divida em temas que tentam desvendar a “metamorfose” e os resquícios de Zimmerman em Dylan. A passagem, ou melhor dizendo, a fusão da música Folk com o Blues e o Rock. Cada tema é introduzido por uma performance de Dylan, o que sintetiza e introduz a temática do capítulo. O documentário mostra todos os dramas e as etapas da passagem de Zimmerman para Dylan, no plano musical, bem como as implicações e conseqüências desta mudança para a música Folk e para a música Pop, já que Dylan é o responsável por fundir o gênero musical Folk com o Rock, criando o Folk rock. 

O cantor de músicas de protesto, que cantou na histórica marcha pelos direitos civis em Washington, capital dos EUA, onde Martin Luther King fez o seu mais célebre discurso em 1963, é vaiado poucos anos depois por usar percussão e guitarra elétrica, sendo, então, chamado de traidor da música Folk no The Newport Folk Festival (Festival de Música Folk de Newport), em 1965. Dylan tocou suas canções com amplificadores e guitarras elétricas, tendo o excelente músico Mike Bloomfield (1943-1981) como guitarrista, algo muito diferente de dois anos antes, quando se apresentou com Joan Baez apresentando as denominadas “músicas de protestos” com traços folks tradicionais tais como "Blowin' in the Wind", "A Hard Rain's a-Gonna Fall", "Masters of War". 

O documentário também mostra Dylan sendo chamado de traidor da “música de protesto’ na sua turnê inglesa, em 1966, quando no intervalo da música “Ballad of a Thin Man” é chamado de “Judas”. Irritado Dylan retruca algumas palavras e começa a executar a música “Like a Rolling Stone”, encerrando, assim, a apresentação. O show ocorreu no dia 17 de maio no Free Trade Hall, em Manchester e não, como foi propagado de forma equivocada, na casa de concertos londrina Royal Albert Hall. 

Um dos pontos altos do documentário é o capítulo reservado à música “Like a Rolling Stone”; todo o processo de composição, de gravação e de lançamento é mostrado. A música é um marco para a história da Música Serial do século XX, por ter ampliado as possibilidades formais da música Pop. A canção não estaria mais presa a uma forma fixa, pequena e limitada, seus limites formais de três minutos foram ampliados para mais de seis minutos. Ela foi lançada, inicialmente, em um EP (single) no dia 20 de julho de 1965 e depois foi incluída no disco “Highway 61 Revisited”, lançado mo dia 30 de agosto de 1965. Todas a músicas do discos tiveram um dos maiores produtores musicais de todos os tempos: Tom Wilson (1931-1978).

”Por quantas estradas um homem deve caminhar para que o chamem de homem?” No documentário “No Direction Home”, Martin Scorsese caminha de 1941 até o ano de 1966, no qual o mundo passou a conhecer apenas e somente Bob Dylan. Ao final de 208 minutos de documentário, pode-se entender o que foi e o que é Bob Dylan. Há a possibilidade de se conhecer mais profundamente um gênio por trás de grandes composições como “Blowin’ In The Wind”; “A Hard Rain’s A- Gonna Fall”; “Subterranean Homesick Blues”; “Mr. Tambourine Man”, "Desolation Row", “Don't Think Twice, It's All Right” e, é claro, “Like a Rolling Stone”, no qual há a certeza de que os gênios fazem as suas próprias regras. Mas, Zimmerman e Dylan ainda possuem traços em comum, o primeiro é Robert, o segundo é Bob, este diminutivo daquele, concordando com Lennon.

Trailer de No Direction home:


Trecho do show em que Bob Dylan é chamado de "Judas" no dia 17 de maio de 1966 no Free Trade Hall, em Manchester:







Sessão Zoom ao Ar Livre

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A Sessão Zoom abre o mês de maio com cinema ao ar livre. A "4° Guerra Mundial" é um documentário que mostra imagens e as vozes de uma guerra não noticiada. Reuni cenas e histórias de várias manifestações pelo mundo.

O curta "A Caminho da Copa" abrirá a sessão mostrando os impactos negativos da realização da Copa do Mundo de Futebol FIFA no Brasil.

Após a sessão haverá bate-papo entre os presentes com Breno Rodrigues.

Local: Praça das Bandeiras
Horário: 19h30
Data: 05/05 - Segunda-feira