O Cinema e as Emoções

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Fazemos Arte porque viver não é o bastante. Comer, excretar, respirar não é o suficiente para a vida demasiada humana. Precisamos existir, sentir, admirar, contemplar, para isso criamos, fazemos Arte. Tomamos a consciência criativa como sendo a própria consciência do mundo e de nós mesmos. Como espectadores da Arte, observamos, analisamos e, principalmente, sentimos. A capacidade de suscitar emoções é uma das principais características das linguagens artísticas seja a partir da leitura de um texto literário; da melodia de uma música que caminha entre o som e sentido; dos movimentos rítmicos e repousos da dança; do estático e imortal momento retido pela escultura ou pintado em um quadro, ou mesmo através das camadas de significação do cinema. 
O Cinema é uma linguagem artística peculiar, pode ser considerada como sendo a síntese de todas as outras, pois trabalha a imagem (em movimento), a palavra e o som. Ele afeta os nossos dois principais sentidos: a visão e a audição, com os quais tomamos uma consciência maior do real e, principalmente, pelos quais somos afetados emocionalmente de forma mais intensa. Se uma fotografia, com sua composição “desenhada pela luz”, ganhando forma pelo enquadramento e a visão de determinado anglo, pode nos afetar, a música potencializa não apenas o efeito de sentido, mas também a carga de emoção. A alegria, a euforia, a dor, o medo, a angústia, a ansiedade, o êxtase pode ser sentido ou assimilado à filmes. Temos filmes que nos fizeram chorar, querer correr, vagar pelo mundo, voar, arrumar um amor, ou mesmo morrer, mesmo que simbolicamente. 

Frances corre pelas ruas de Nova Iorque, ela está feliz, seus ligeiros passos se alternam com alguns de dança: rodopia, salta, movimenta-se. A música “Modern love”, de David Bowie, potencializa a euforia, que também é nossa, assim como é de Frances Halladay. A cena dura exatos quarenta e nove segundos e nos cinco segundos seguintes, ela entra em seu apartamento vazio, não há música, não há ninguém, a sensação muda, sentimos outra coisa. Enquanto a música toca, ela corre, dança, esbarra nas pessoas que sempre estão em sentido contrário, seu semblante é de felicidade, uma infinita felicidade, que na língua inglesa tem o seu significante praticamente intraduzível para outros idiomas: "bliss". 

Na Grécia antiga, tem-se a simbologia das duas máscaras do teatro clássico para representar a comédia e a tragédia: a primeira está sorrindo enquanto a segunda possui um semblante triste. Chaplin conseguiu dar um tom melancólico ao riso com o seu personagem Carlitos, algo que os românticos fizeram com a sua leitura das inicialmente cômicas andanças pelo interior da Espanha do “cavaleiro da triste figura” Dom Quixote de la Mancha com o seu cavalo Rocinante e o seu fiel escudeiro Sancho Pança. A pequena Olive Hoover está a caminho do concurso “pequena miss sunshine”, na van amarela estão seu tio, irmão, o pai e a mãe. Sua apresentação artística no concurso, que foi ensinada pelo avô, será apresentada ao som da música "Super Freak”, de Rick James; todos dançam, nós rimos. 

Alguns filósofos proclamam que sentimos “medo do desconhecido”. No caso dos filmes de terror, já sabemos o que encontraremos, o que sentiremos e, mesmo assim, assistimos. Não se assiste a filmes de terror durante o dia; o sol, a claridade, ou mesmo a lucidez, faz parte deste momento apolíneo. Filmes de terror são para serem ”vividos” à noite, no escuro, na confusão de sentidos, no “frio do estômago”. Sentimos mais à noite, dionisíaco período. Por fim, tem-se o abraço de conforto e a segurança com a companhia, pois também não se assiste a filmes de terror sozinho. Queremos sentir medo para depois sermos abraçados, acalentados, afagados. Com Pazuzu possuindo uma garotinha, ou mesmo um grupo de pessoas passando um final de semana em uma cabana em uma região deserta, buscamos participar do congresso internacional do medo. 

Camões espera ter “engenho e arte”, ou seja, técnica e inspiração para escrever “Os lusíadas”. Os críticos e estudiosos, paradoxalmente, esgotam e desertificam a obra de arte com discursos e estruturas acadêmicas pretensiosamente científicas com um líquido método. Pode-se ter gozo com o intelecto, com jogos, falácia, verborragia; mas a sinestesia é o que cria a marca, a cicatriz no ser. Selma Jezková é a síntese, protagonista da obra que pode criar labirintos retóricos de análise e/ou mesmo catarses coletivas em indivíduos que comungavam, antes do espaço virar profano, no cinema. Selma caminha os 107 passos até o silêncio que é quebrando pela expressão serena e pelo canto, depois volta-se ao silêncio, em seguida ruídos, e, por fim, soluços, choros, nossos prantos. 

O Cinema é uma fonte e, por vezes, responsável pela nossa associação com sentimentos, emoções. Podemos assistir a filmes não para fugir da realidade, da vida ordinária cotidiana, mas, sim, para senti-la de forma extraordinária, senão apenas comeríamos, excretaríamos e respiraríamos. Viver não é o suficiente, sentir é preciso: ‘Frances Ha” nos faz sentir alegria e melancolia na sua vida de bailarina desengonçada; Olive dança, une a família para empurrar a van que a levará a um concurso de miss mirim; o medo é a única certeza daqueles que “leem o livro dos mortos”; e Selma nos mostra a apoteose do humano, na nossa briga entre a razão e a emoção, o apolíneo e o dionisíaco, vencendo o último, nos deixando com uma imensa tristeza, o que contraria o versos do “Samba da benção” e concordando com os de Fernando Pessoa: “E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão,/Esse comboio de corda/Que se chama coração.”

Sinta:

Euforia e melancolia


Ria


Medo


Angústia demasiada humana

Exposição "Sessão Zoom meio século de cinema alternativo"

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Link do evento no facebook: https://www.facebook.com/events/689704511165553/




O Cinema segundo o Dogma 95

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O Cinema é uma Arte que depende de elementos tecnológicos para existir e para o desenvolvimento da sua linguagem, equipamentos para captação de imagens (câmeras) e projeções (projetores) são fundamentais para a sua existência. Conforme a linguagem do cinema se desenvolve e ganha significação social, surgem movimentos e teorias ditando como deve ser a criação cinematográfica, destacando quais são as características permitidas e/ou quais seriam os recursos negados. O conjunto de regras forma preceitos estéticos que vão caracterizar a criação artística, assim destacados por movimentos artísticos como o Expressionismo alemão, o Surrealismo, o Neorrealismo italiano, a Nouvelle vague francesa, o Cinema novo brasileiro e, o mais recente, o Dogma 95. 

O movimento cinematográfico conhecido como Dogma 95 surgiu em Copenhague, capital da Dinamarca, no ano de 1995, sendo apresentado ao mundo na capital francesa em um evento que comemorava os cem anos do “nascimento do cinema”. O movimento teve os cineastas Lars von Trier (1956-) e Thomas Vinterberg (1969-) como idealizadores, sendo os responsáveis por criar os preceitos estéticos, baseados em dez regras, ou “voto de castidade”, lançadas em forma de manifesto:

1) As filmagens devem ser feitas no local. Não podem ser usados acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre). 

2) O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena). 

3) A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos - ou a imobilidade - devidos aos movimentos do corpo. (O filme não deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar). 

4) O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial. (Se há muito pouca luz, a cena deve ser cortada, ou então, pode-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera). 

5) São proibidos os truques fotográficos e filtros. 

6) O filme não deve conter nenhuma ação "superficial". (Homicídios, Armas, Sexo, etc. não podem ocorrer). 

7) São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (O filme ocorre na época atual). 

8) São inaceitáveis os filmes de gênero.

9) O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm, padrão, com formato de tela 4:3. Originalmente, o regulamento exigia que o filme deveria ser filmado em 35 mm, mas a regra foi abrandada para permitir a realização de produções de baixo orçamento. 

10) O nome do diretor não deve figurar nos créditos. Para que um filme fosse considerado pertencente ao movimento, uma cópia deveria ser enviada para ser analisada em Copenhague e somente assim a obra ganharia o “selo dogma”. 


É interessante notar o contexto que o movimento surgiu: na década de 1990, as produções eram dominadas pelas superproduções da indústria cinematográfica, com filmes repletos de efeitos especiais e não naturalista, que mais se afastavam do real do que representavam-o. Segundos os teóricos do Dogma 95, o cinema estava se esvaziando de significado e a sua linguagem “estava pobre”. Portanto, era preciso revitalizar a linguagem cinematográfica, começando por destituir tudo aquilo que fosse prejudicial para o cinema enquanto arte. 

Os dois primeiros filmes do movimento foram: “Festa de família” (Dogma #1, 1998), de Thomas Vinterberg; e “Os idiotas” (Dogma #2, 1998), de Lars von Trier. No primeiro, Vintemberg segue todos os preceitos do dogma, câmera na mão, luz natural, as locações das filmagens não são alteradas, são utilizadas como se apresentam. O destaque é o roteiro, mostrando um patriarca de uma família tendo que lidar com um conjunto de revelações que questionam o status e a moral do grupo. Já no filme de Lars von Trier, um grupo de indivíduos tenta “idiotizar” a sociedade burguesa com práticas que fogem do comportamento social padrão. 

Os adeptos do Dogma 95 criaram um conjunto de regras que justificavam uma determinada prática cinematográfica com o objetivo de obter um “cinema puro”, que voltasse as suas origens no tratamento da imagem. Mas, ao mesmo tempo que buscavam se libertar do cinema comercial, criaram um conjunto de “votos de castidade” que condicionavam a criação cinematográfica, eliminando inclusive a figura do autor do filme. Depois, Vinterberg e Lars von Trier abandonaram o movimento seguindo carreiras dentro de um cinema autoral, com extrema qualidade.

Trailer do filme "Festa em família" / Dogma #1:

Trailer do filme "Os idiotas" /Dogma #2:


'Eles Voltam'

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Com o fim da Guerra de Troia, Odisseu tenta voltar para casa; no entanto, vaga por anos na tentativa de conseguir retornar a Ítaca, para os braços da sua esposa Penélope e para junto ao filho Telémaco. No percurso encontra um ciclope, ouve o canto das sereias, conhece Circe, vive aventuras e presencia situações diversas, até conseguir reencontrar os seus entes queridos. No filme brasileiro ‘Eles voltam’ (2012), do diretor Marcelo Lordello, o arquétipo tema do regresso à casa é trabalhado a partir de uma narrativa simples, o que cria um filme belo, cheio de qualidades, demonstrando o que de melhor há na produção nacional dos últimos anos, principalmente aquela advinda da capital pernambucana, Recife. 
Um carro para, uma garota de doze anos e o irmão adolescente descem. O veículo segue viagem. Não sabem o que está acontecendo, foram abandonados à beira de uma rodovia. Por um tempo esperam, acreditam que os pais voltarão para buscá-los, o que não acontece, o irmão resolve buscar ajuda sozinho. Cris permanece no lugar. As horas passam, tem fome, sede, deve ficar estática ou caminhar e buscar o caminho de volta para casa? Com a ajuda de um jovem que passa de bicicleta resolve começar a odisseia de regresso ao lar. Tem-se o início de uma jornada de volta para casa, uma travessia de autoconhecimento e descobrimento de um mundo mais vasto, com pessoas e realidades diferentes daquela vivida outrora. 

“Sei um segredo você tem medo/Só pensa agora em voltar”, com o versos da canção gravada pelo Clube da Esquina na voz de Milton Nascimento, Cris inicia a sua jornada. Na garupa de uma bicicleta vai em direção a um acampamento de Trabalhadores Rurais Sem Terra. A garota é alimentada, recebe ajuda, entra em contato com a terra, a natureza, a vida coletiva. Depois, ela prossegue a jornada, recebe ajuda de uma humilde família, agora está em uma região urbana periférica, carente, mas cheia de convívio social e afeto. Recebe alimento, ajuda nas ações e obrigações do cotidiano, como limpar uma casa, agora está do outro lado, sem comodidades. Por fim, adentra em uma casa de veraneio, que um dia fora de sua família, a atual moradora a reconhece, decide levá-la para Recife. 

Ao chegar na sua casa em Recife, a jovem já não é mais a mesma que foi abandonada à beira da rodovia. O mundo lhe parece diferente, a realidade antes familiar agora é analisada com outros olhos. A travessia foi aprendizado, voltar para casa foi sair do casulo, ver e viver novas experiências, entrou em contato com pessoas e com histórias diversas, no diálogo e no visto ampliou um pouco mais a visão de mundo. Todavia, a volta significa a rotina, uma situação de desconforto. Seus pais estão acidentados, o convívio ordinário com a família, escola, não preenche mais uma simples existência. A travessia modifica Cris, ela resolve explorar outros cantos da cidade, vai de táxi com uma amiga ao centro velho, onde nunca estivera. 

'Eles voltam' se inicia com um plano geral com uma longa duração. Sob o céu há uma rodovia, passam carros em ambas as direções, o plano se estende, a câmera está distante. Uma característica do filme é a recorrência do plano-sequência que estende a duração da imagem e da ação, sem fragmentá-la em diversos planos mais dinâmicos e cheio de cortes. A luz natural e a movimentação lenta da câmera cria uma contemplação do prosaico, da própria imagem. O ritmo é lento, pois o tempo é relativo, pode-se acelerá-lo ou simplesmente contemplá-lo na sua duração. A lentidão não é algo ruim, pois graças a ela que é possível contemplar a imagem e ter o “prazer dos olhos”, por isso é preciso paciência e olhar aguçado com o filme. 

A imagem fascina a mente humana. A figura humana, os objetos e a própria paisagem ganham um contorno e uma existência mágica devido à luz. Fotografia e Cinema são as “artes da luz”. No caso do filme, os plano-detalhes na personagem Cris mostram uma beleza plástica da atriz Maria Luíza Tavares, que mesmo com poucas variações de expressões possui uma beleza simples, singela, encantadora. A cena do início da odisseia, quando pega uma carona na garupa de uma bicicleta, no qual ouve-se a canção “Tudo que você podia ser”, é a mais bela, há uma dança entre o movimento da bicicleta e o da câmera que a acompanha. O sotaque do recifense é outro ponto encantador, a prosódia com um ritmo, uma entonação ajuda não apenas na verossimilhança como também é agradável aos ouvidos. 

Como em toda e qualquer viagem, nunca se é o mesmo do início da jornada. Em uma travessia o mais importante, como diria o escritor Guimarães Rosa, não são os pontos de partida ou mesmo de chegada, mas, sim, o percurso. No filme “Eles voltam”, a personagem Cris volta para casa, no caminho se transforma, não é mais a mesma, vê e compreende o mundo de outra forma, ele é mais vasto do que era, de modo que a difícil odisseia é a viagem do retorno para casa. Assim, seja a partir de uma travessia, de uma odisseia, de uma jornada, viagem, voltar é o movimento.

Trailer do filme:

Cinema: Um Culto Moderno

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O Cinema é uma Arte recente, possui como marco de seu surgimento o ano de 1895, quando os irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (864-948) fizeram a primeira projeção pública de um filme que apresentava imagens em movimento, o que criou um extremo “efeito de realidade” no público presente, pois muitos que estavam no recinto abandonaram a exibição acreditando que o trem que estava chegando na estação era verdadeiro. A Sétima Arte é um culto moderno, se entrelaçou com a modernidade, com a sociedade que se configurou no século XX e caminha pelo XXI. Fonte de fascínio, conflitos, produtos e alienações. Muitas vezes, assistem-se filmes por assistir, como evento social, como projeção e compreensão de algo ou mesmo como culto. 

A imagem é fascinante, o ser humano quando tem a sua aurora, busca criar imagens. Nas paredes das cavernas, nas primeiras habitações, há desenhos tentando reproduzir aquilo que foi visto de forma efêmera pelos olhos: um animal, outras figuras humanas, formas geométricas, paisagens, etc. A tomada de consciência cria o fascínio pela imagem. Foca-se no criador da imagens, no porque ele as pintou, tentou reproduzir o que viu? Mas, há aqueles que a viram, que a contemplaram. O que sentiram quando viram o artista fazendo-a, a tinta ainda fresca? Se voltaram outros dias, ou se convidaram outras pessoas para ver aquela imagem? Ou ainda se alguém de outra região ficou sabendo que poderia ver um animal que lhe provocava medo ou fascínio sempre que quisesse? 

Algumas religiões proíbem a representação do sagrado, não sendo permitida a criação de imagens de seus elementos sacros por acreditarem que seria idolatria. Há uma lógica nisso, pois quando o homem cria uma imagem, ele passa a ser o criador, não mais criatura. Se ele cria uma imagem do sagrado, de algo que lhe seria supostamente superior, a ordem é invertida. Com a diferença que o artista-criador contempla a sua Obra, sabendo que Ela lhe é superior. A criação artística seria o caminho para a sua imortalidade, já que fisicamente é ele efêmero. Com a Arte, a Criação se eleva, se iguala aos deuses, sendo, ainda, a única coisa superior aos homens. 

O Cinema é um culto organizado. Há horários, chamados de exibições semanais, na maioria das vezes, são três por dia, começando ao final da tarde. No Brasil, eles são modificados toda quinta-feira. Em cada sala, há a exibição de um filme. Os espectadores chegam e descobrem as exibições do dia, ou podem obter a informação pela internet, jornais ou mesmo com outros que já viram algum filme durante a semana. Chegando no local, há uma fila para comprar a entrada, a maioria dos cultos modernos são pagos, depois há outra para alimentos, que são sagrados, em toda e qualquer ida deve-se consumi-los. Há uma extrema organização, tudo em perfeita ordem, feita pelos organizadores. 

Assim como em todo e qualquer culto, há os doutos, ou seja, pessoas iniciadas que acreditam dominar um pouco mais o processo de compressão dos filmes. Fazem comentários sobre as obras, atores, fofocas. Comentam que gostaram do penúltimo filme, mas não do último, que pelo trailer, um dos modos de propagar a obra, estaria com uma expectativa baixa. Seus comentários se estendem durante a sessão, quer ser o tradutor para um acompanhante não iniciado do que supostamente seria o complexo sistema das imagens vistas ou da história narrada. Os comentários não se restringem às questões interpretativas, passam pelas referências intertextuais, ou seja, por uma informação que apenas eles possuem. 

Para a maioria das pessoas, o objeto de idolatria não é a obra em si, mas os atores. Está certo que é através deles que a criação ganha forma, pois dão vida ao enredo. A idolatria chega ao ponto de haver revistas, sites ou mesmo publicações especializadas nas vidas dos atores, destacando não o aspecto artístico, mas, sim, o da vida pessoal. Onde comeram, ou estacionaram o carro, com quem estavam, ou mesmo com quem estariam flertando são os motes dos textos. As revistas trazem ainda fotos, perfis e, o mais sagrado de todos, pôsteres de vários tamanhos, quanto maior, mais valorizada a publicação. Eles enfeitam paredes/altares de quartos isolados, ou estão em pastas com outras tantas fotos. 

No princípio é a luz. A sala ora escura se ilumina. Todos olham na mesma direção, estão em comunhão, fazem parte de um corpo único, orgânico, são espectadores. Comem, bebem, alguns se beijam, outros dormem, alguns poucos conversam. Os que se sentem fascinados pela imagem, entram em comunhão, seus olhos brilham, dependendo da obra podem ter epifanias, mas na maioria das vezes, devido ao local do culto: o moderno shopping, o templo maior do consumo, ele apenas cede o seu dinheiro, o seu tempo. Volta para casa da mesma forma que estava nos créditos iniciais.

A montagem da vida de Kurt Cobain no Cinema

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Kurt Cobain (1967-1994) é o vocalista e guitarrista da banda grunge conhecida como Nirvana e um dos músicos mais emblemáticos e importantes da história da música popular massiva, ou seja, aquela ligada à indústria cultural e voltada ao entretenimento. Sua vida e carreira musical são mostradas no documentário “Cobain: Montage of Heck” (EUA, 2014) através de um rico material, composto por filmes em Super 8, além de fotos e diários, gravações de áudio a partir de fitas cassetes e de rolo, fornecido pela família, esposa e amigos do cantor. O material serviu para montar uma visão privilegiada de Kurt Cobain, desde a sua infância em uma pequena cidade dos Estados Unidos, passando pela adolescência, o início da fase adulta e O surgimento do Nirvana, até o seu suicídio aos vinte e sete anos de idade. 

O documentário “Cobain: Montage of Heck” começa com depoimentos da mãe de Kurt narrando como conheceu o marido e engravidou. Ela destaca que a infância do filho foi calma e pacata na pequena cidade interiorana de Aberdeen, nos Estados Unidos. Há fotografias dos aniversários de três e quatro anos, além de imagens em Super 8 do jovem Kurt então com quatro anos tocando uma guitarra de brinquedo. Da infância tranquila, passa-se para a pré-adolescência e adolescência, ambas problemática, repleta de conflitos com os pais, escola e amigos. O destaque fica por conta da personalidade desenvolvida pelo músico a partir do sentimento de rejeição em relação aos pais, já que ele migrava com frequência para casa de diversos parentes devido aos conflitos familiares. 

O filme destaca que a fonte da criatividade Kurt era a sua personalidade: inquieta, obscura e cheia de angústias. A estreita relação com a música surge na adolescência como uma forma de fuga, tendo o gênero Punk como ponto de partida, já que a música além de expressar e dar um significado para os anseios de Kurt, poderia ser executada por ele. Assim, decide montar uma banda, convida, inicialmente, o amigo Krist Novoselic para o baixo, em seguida, entram em contato com diversas gravadoras de pequeno porte, até que são aceitos pela Sub Pop da cidade de Seatle, em 1988. No ano início do ano seguinte, lançam o primeiro álbum de estúdio denominado “Bleach”, partem para shows em pequenos lugares. 

O documentário destaca o lançamento, em 1991, do álbum “Nevermind”, um dos mais impactantes de todos os tempos, com destaque para as músicas "Smells Like Teen Spirit", "In Bloom" e "Come as You Are". Com o lançamento do disco, os músicos foram alçados à fama instantânea, mesmo não estando preparados emocionalmente e psicologicamente para o estrelato dentro da indústria do entretenimento, repleta de obrigações e cordialidade com compromissos, entrevistas, contratos, etc. O impacto da fama sobre Kurt é imediato, sua inabilidade é evidente, explícita. Passa a ter comportamentos depressivos e a se relacionar com a cantora Courtney Love, momento em que seu vício em heroína se intensifica. Da união com Love, nasce a filha do casal: Frances Bean Cobain. 

A gestação e o nascimento de Frances é polêmica, como o casal Kurt e Love consumiam heroína com frequência, a mídia da época destacava o possível impacto que o consumo da droga poderia ter sobre a criança, que ao nascer teve a guarda retirada dos pais por um curto período de tempo. Cenas dos shows do Nirvana no Brasil dentro do Festival Hollywood Rock são mostradas, o destaque é a apresentação do dia 23 de janeiro de 1993 no Rio de Janeiro, na qual um insano Kurt em estado de transe cospe na câmera de filmagem e depois passa a se masturbar. As apresentações no Brasil já eram um indício da instabilidade de Kurt, que usava as palavras "I hate myself and I want to die" (“Eu me odeio e quero morrer”) como forma de expressar o seu estado emocional. Elas se concretizariam pouco tempo depois. 

No final do documentário, não há o destaque para os últimos dias de Kurt ou o seu suicídio, o diretor prefere destacar a gravação do último projeto do Nirvana, o “MTV Unplugged in New York”. A produção ganha qualidade quando os áudios de Kurt ganham corpo a partir de animações. Assim, a palavra se materializa e ganha forma. As passagens dos diários particulares e os desenhos do músico recebem um tratamento especial com efeitos visuais, o que possibilita não apenas entrar na intimidade, mas também na mente de Kurt. 

A história da música popular massiva é circular, partindo de formas mais simples para formas mais complexas, em um eterno retorno. Assim, do gênero Rock, parte-se para o Folk rock, para o Art rock, depois para o Heavy metal, até o Rock Progressivo, ponto mais complexo, para depois voltar-se à simplificação com o Punk rock. Dentro desta lógica, o Grunge surge no final da década de 1980, tendo o seu ápice no início da década de 90 como uma forma de simplificar a música pop. O documentário “Cobain: Montage of Heck” não se baseia apenas em depoimentos de familiares e amigos, há um rico material, o diretor Brett Morgen teve acesso privilegiado ao vasto material da família do cantor, o que possibilitou não apenas contar a história de Kurt Cobain, mas também do Grunge.

Trailer

Os Anjos de Wim Wenders

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Continuação... Um Anjo paira sobre os céus de Berlim, não o vemos, mas compartilhamos a sua visão, em preto-e-branco, mostrada pela câmera subjetiva. Seus movimentos são livres, voa rente ao parque Tiergarten, circunda a estátua da Coluna da Vitória (Siegessäule), em seguida, pousa sobre os ombros do monumento. No filme “Tão longe, tão perto” (In weiter Ferne, so nah!, Alemanha, 1993) tem-se a continuação da produção “Asas do desejo” (Der Himmel über Berlin, 1987), nos quais o diretor alemão Wim Wenders (1945-) apresenta a história de anjos que observam a humanidade, ora acompanhando a história individual de alguns, ora escutando os pensamentos humanos cheios de dúvidas, angústias; mas também repletos de experiências, vivacidade, paixões, etc. 

Em “Asas do desejo” (1987), Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) são dois anjos que acompanham a humanidade desde os primórdios. Pairam sobre Berlim, ainda dividida pelo Muro, que foi construído em 1961 para separar a parte soviética, conhecida como DDR (Deutsche Demokratische Republik), da parte capitalista, a BRD (Bundesrepublik Deutschland). São seres elevados que olham de cima para baixo, observando os que ganharam consciência e livre-arbítrio, com uma vida humana demasiada humana com sentimentos, angústias, prazeres e uma existência, mesmo que efêmera, colorida e cheia de experiências. No filme, Damiel se apaixona pela trapezista Marion (Solveig Dommartin). Deseja sentir, não quer mais apenas observar. A queda é a sua humanização. 

No filme “Tão longe, tão perto” (1993), o diretor Wim Wenders retorna ao universo criado em “Asas do desejo” (1987). Enquanto no filme de 1987, a ação se concentra no anjo Damiel e na sua paixão por Marion; na produção de 1993, Cassiel é o protagonista. Na tentativa de intervir nas ações humanos, ao tentar salvar uma criança que cai da sacada de um prédio, ele “cai”, se torna humano, para salvá-la. Ao se tornar humano, Cassiel tem que lidar com o que caracteriza o peso da humanidade: seus sentimentos, angústias, prazeres, dores. Após a queda, se rende à jogatina, experimenta sensações, sabores, tira documentos, para ter uma “existência social”, arruma um emprego, no qual conhece e compreende a dificuldade do maniqueísmo para os humanos, por ser seres complexos. 

Tanto “Asas do desejo” quanto “Tão longe, tão perto” são obras cinematograficamente belas, mas também com um roteiro repleto de diálogos que aludem à questões de cunho filosófico, principalmente questões metafísicas humanas. Pois, ao observar o seres humanos, os anjos acabam divagando sobre aspectos humanos, tais como a efemeridade da existência e as suas angústias, sobre a vida, “um momento tão curto comparado à eternidade”. Neste contexto, o tempo é o principal elemento, de modo que “ele já existia, não sabiam que ele os faria observadores”, ressaltando que o tempo se relaciona conosco de forma subjetiva. Por isso, há as histórias de uma criança e de um idoso se entrelaçando com a de Cassiel, cada um representando os “três tempos” da vida humana, já colocados como pergunta alegórica pela Esfinge para Édipo. 

Os anjos, no contexto dos filmes, são mensageiros, trazem a mensagem de luz. São alegorias de quem apenas observa e vê a existência humana de fora. Eles não interferem nas ações dos seres humanos. Acompanhamos os seus fluxos de consciência, sua divagações mais racionais do que sensitivas. Se em “Asas do desejo”, o anjo Damiel representava a postura dionisíaca, voltada para as paixões, prazeres, sentimentos e sensações; Cassiel se portava como apolíneo, racionalizando os processos humanos. No entanto, a partir da “queda” de Cassiel, em “Tão longe, tão perto”, ele se torna dionisíaco, pois terá que aprender a lidar com as sensações e sentimentos humanos, algo difícil, doloroso e necessário para a evolução e para a existência plena humana. Ele se perde, mendiga; mas, ao final, compreende na prática o que é ser humano. 

Em “Tão longe, tão perto”, dois novos seres são incorporados ao universo narrativo criado por Wim Wenders: o primeiro é o anjo chamada de Raphaela, interpretada pela atriz alemã Nastassja Kinski (1961-), filha do ator Klaus Kinski (1926-1991). Ela já havia trabalho com Wenders no filme “Paris, Texas’ (1984). Além de Raphaela, que é a interlocutora de Cassiel, há a figura do misterioso e enigmático personagem Emit Flesti, interpretado por Willem Dafoe (1955), que pode transitar e se relacionar com os anjos e com os homens. Ele pode ser entendido como sendo a personificação do tempo, no final ele é mostrado como parte integrante das engrenagens de um relógio, símbolo máximo do tempo e da tentativa de dividi-lo, compreendê-lo e, por fim, domá-lo. 

Em um eterno retorno ou em um alfa e ômega, o que se tem é que “Tempo é Arte”. Mas, o tempo não está dissociado do espaço, da noção de distância como pode-se ver no filme “Tão longe, perto”, título que alude à coordenadas espaciais. Assim, na curta e efêmera vida humana, o tempo é supremo, senhor pelo qual a existência humana se curva. Se na tradição das narrativas de matriz judaico-cristã o anjo Lúcifer “caiu” por não querer se curvar aos humanos, nos filmes de Wim Wenders, “Asas do desejo” e “Tão longe, tão perto”, os anjos “caem ” para se tornarem humanos, por um desejo de sentirem e ter a vida humana, fazendo com que a “queda” seja uma forma de elevação, que trará uma plenitude, mesmo que efêmera, pois não se pode ganhar do tempo. Logo, resta aos homens compartilharem das indagações de Cassiel sobre os versos de Lou Reed: “Why can't I be good/Why can't I act like a man”.

Trailer do filme "Tão longe, tão perto"

Annie Hall por Woody Allen e Nossos Amores

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O que restou de nossos amores. Uma pessoal tem noventa anos, olha para trás, vê a sua vida, suas cicatrizes, recorda suas alegrias, se lembra dos nomes de todos os seus amores (felizmente são muitos), mesmo com a morte rente a sua face, há serenidade. Amores, dores, memórias, recordações da infância e de outras partes da vida são os temas do filme “Annie Hall” (EUA, 1977), do cineastas estadunidense Woody Allen (1935-). No Brasil, no ano de seu lançamento, o filme recebeu o péssimo título “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, o que destoa do propósito da obra que é fazer uma reflexão, uma análise, sobre as relações amorosas e, principalmente, sobre os percursos amorosos que toda e qualquer pessoa se depara ao longo da vida. 
O filme “Annie Hall” é sobre Annie, interpretada por Diane Keaton (1946-), uma jovem cantora que passa a se relacionar com o comediante nova-iorquino Alvy Singer, um alter ego do próprio Allen. A rotina dos dois no início do relacionamento, as maravilhas e o encantamento do convívio inicial são mostrados, todas as ações são novas, cheias de descobertas. Cozinhar uma lagosta se torna algo lúdico, prazeroso. Os dois aprendem juntos, Alvy lhe compra livros, incentiva que ela evolua e melhore. Depois, a rotina, a vida cotidiana, ordinária, com o peso do comum. Alvy conhece os pais de Annie, ela se muda para o apartamento dele, passam a morar juntos. Vão ao cinema ver filmes do cineasta sueco Ingmar Bergman. 

O interessante no filme é que Annie evolui, está em constante aprendizado, enquanto Alvy é um ser problemático, até mesmo neurótico, que fica revivendo o seu passado, tentando superar os seus traumas: com terapia, com humor, com sarcasmo. Em uma cena, voltamos para a infância do jovem Alvy, vemos como era a sua relação com os colegas da escola, professores, antigas namoradas, com a família, etc. Ele era um ser deslocado, com dificuldades de se relacionar, mas com uma grande capacidade intelectual e crítica, por isso se torna comediante, para dar um tom de comédia ao drama da vida. Ao final escreve uma peça, com final feliz, a mesma representada pelo filme. 

O filme é repleto de digressões. O próprio Woody Allen, que interpreta Alvy, com frequência comenta o enredo, como se estivesse tentando compreender o que havia se passado. Com isso, a ação é interrompida, Alvy olha para a câmera, quebrando o efeito de realidade do cinema naturalista, se dirigindo ao espectador. Em outros momentos, ele analisa ações do seu passado, que ocorrem no plano da narrativa cinematográfica. Há inclusive um trecho de uma animação na qual Alvy fala da sua atração não pela Branca de Neve dos contos de fadas, mas pela Bruxa. O filme se coloca como uma forma de “terapia”. 

Em outra cena, na fila do cinema para ver um filme do cineasta sueco Ingmar Bergman, o efeito de realidade é quebrado quando alguém passa a analisar os filmes do cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993) de forma acadêmica, caricata, com conceitos repletos de falácia. Alvy interrompe o homem, passam a discutir, até que o nome do filósofo e teórico da comunicação Marshall McLuhan (1911-1980) é citado como argumento de autoridade. Para mostrar que o interlocutor estaria equivocado, Alvy coloca em cena o próprio Marshall McLuhan. Assim, tem-se uma narrativa não linear, com digressões e diálogos com o espectador. 

O filme é repleto de intertextualidades com referência explícitas e implícitas à cineastas e filmes importantes da história do cinema. No quarto de seu apartamento, Alvy e Annie estão deitados na cama, o enquadramento e a direção de arte são similares a de uma cena do filme “Domicílio Conjugal” (França, 1970) do cineasta francês François Truffaut (1932-1984). Na fila do cinema, Annie e Alvy vão ver filmes do cineasta sueco Ingmar Bergman, acabam ouvindo comentários sobre a obra do cineasta italiano Federico Fellini, como a “A Estrada” (1954), “Julieta dos espíritos” (1965) e sobre “Satyricon” (1969). 

Por fim, o que se tem no filme “Annie Hall”, nas relações amorosas são: encantamento, convívio, alteridade, conflito, identificação, término. No percurso, a passagem, intimidade, um ciclo. A separação é o fim de um ciclo, natural da vida, restando as lembranças. No epílogo do filme, tem-se que o que a memória amou, fica eterno. Annie era uma pessoa fantástica, Alvy ficou muito feliz em tê-la conhecido, e mais, ter convivido com ela. Após um encontro depois da separação, ao acaso em uma café, conversam, depois, cada um segue a vida, mas, agora, na terceira margem do rio. Por fim, as relações entre as pessoas são: irracionais, loucas e absurdas, como diz o próprio Alvy, dando um tom de comédia ao drama da vida demasiada humana.


Fotografia com Cinema com Sebastião Salgado

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No início era a luz, a Fotografia retendo uma cena que era efêmera para as retinas humanas tão fatigadas pelo olhar automatizado do cotidiano. Depois, o Cinema com os seus vinte e quatro fotogramas por minuto, criando a ilusão de movimento. A Fotografia e o Cinema são expressões artísticas que guardam semelhanças: em ambas a luz é um dos elementos mais importantes. No documentário “O Sal da Terra” (Brasil/França, 2015), a vida e a obra do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado (1944-) são mostradas a partir de depoimentos e fotografias que se mesclam com imagens de expedições nos quatro cantos do Planeta Terra captadas ao longo de alguns anos pelo seu filho Juliano Ribeiro Salgado, que assina a direção juntamente com o cineasta alemão Wim Wenders (1945-). 

Daguerreotipo de 1838
O nascimento (e a história da Fotografia) é marcado pelo duplo movimento de desenvolvimento de tecnologias e mecanismos capazes de reter a luz, propiciando o surgimento e aprimoramento das técnicas que fundamentam a linguagem fotográfica. Como marco cronológico, mesmo sendo um processo, ela nasce em 1826, quando o francês Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) criou o processo de "heliografia", ou seja, uma “gravura a partir da luz do sol”. Somente em 1837, o também francês Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851) criou um processo de retenção da luz em uma câmara escura com uma placa com componentes químicos sensíveis à luz. A vantagem do Daguerreótipo era a sua economia de tempo e facilitação do processo. 

Sala de exibição do cinematógrafo
O Cinema segue a linha de desenvolvimento da Fotografia, dependendo de uma evolução tecnológica que propicia a captação e reprodução de imagens em uma dada sequência criando a ilusão de movimento. Para efeito de marco cronológico, o Cinema nasce em 1895 com a invenção do cinematógrafo dos irmãos franceses Auguste Marie Louis Nicholas Lumière (1862-1954) e Louis Jean Lumière (1864-1948). A diferença inicial do Cinema para a Fotografia era que, agora, a imagem não era mais estática, com a projeção em sequência de fotogramas, separados por uma pequena faixa preta, cria-se a ilusão de movimento, surgindo um efeito de realidade, pois, além de reproduzir o real de forma efetiva, o Cinema deu movimento para a reprodução. 

Sebastião Salgado
No universo da Fotografia, o brasileiro Sebastião Salgado é uma referência, sendo considerado um dos maiores de todos os tempos ao lado de nomes como Robert Capa (1913-1954), Henry Cartier Bresson (1908-2004), Robert Doisneau (1912-1994), etc. Sebastião Salgado passou a se dedicar a fotografia na década de 1970. Seus projetos fotográficos são conhecidos por retratar a figura humana em uma situação social adversa em meio à pobreza, à miséria e ao caos econômico, político e humanitário como visto nos seus livros de fotografias “Outras Américas” (1986), ou ainda em "Trabalhadores rurais" (1992). Em 2000, lançou a sua mais aclamada obra “Êxodo” e em 2013 foi lançado o seu projeto mais singular “Gênesis”, mostrando o homem e o Planeta Terra no seu estado inicial de harmonia e beleza. 

Wim Wenders e Sebastião Salgado
O filme “O Sal da Terra” é um documentário que mostra a vida e a carreira de Sebastião Salgado: da sua infância no interior de Minas Gerais, passando por sua estadia em Vitória, Espírito Santo, no início da fase adulta, até o seu exílio em Paris, na década de 1970, onde desenvolveu a sua aptidão e habilidades iniciais para a fotografia, finalizando no século XXI, com toda aclamação e reconhecimento por parte da crítica e do público. O filme é co-dirigido por Wim Wenders, um dos maiores e mais importantes cineastas vivos, que além de admirador da obra de Sebastião Salgado, também dá o seu depoimento sobre o fotógrafo brasileiro. O documentário centra-se na figura do homem, do fotógrafo que com a sua sensibilidade com “câmera olho” percorreu o planeta retratando, de forma poética e artística, o homem com fotos tiradas ao longo de mais de trinta anos de carreira. 

Juliano Ribeiro Salgado,
Sebastião Salgado e Wim Wenders
Wim Wenders cria uma narrativa para o material captado e pré-selecionado por parte de Juliano Ribeiro Salgado, que acompanhou o seu pai nas expedições fotográficas mais recentes. A escolha do cineasta alemão é sobrepor o artista com a sua obra, sobrepondo, assim, criador e criatura. Algumas fotos de Sebastião Salgado são analisadas com comentários nos quais o fotógrafo olha para a fotografia, criando um efeito de “marca d’água”, tentando recordar o contexto, a proposta, etc. A formação de Sebastião Salgado na área de economia é destacada, pois seria ela a base da sua visão crítica sobre a sociedade e a relação do homem com o universo do trabalho, bem como a compreensão das dinâmicas sociais, que são a base dos seus projetos artísticos. 

Cena de "Asas do desejo"
Poucos cineastas conseguem criar um diálogo interessante com a fotografia, conseguindo “desenhar com a luz”, como é o caso de Wim Wenders. Seus filmes possuem belas fotografias, como “Paris, Texas” (1984) e, uma das obras máximas do Cinema, “Asas do desejo” (“Der Himmel über Berlin”, 1987). Assim, o cineasta alemão faz um diálogo entre Fotografia e Cinema de forma perfeita. Da união no documentário “O Sal da Terra” entre Sebastião Salgado e Wim Wenders tem-se que, filosoficamente e artisticamente, a fotografia retém o real em uma fração de tempo, já o cinema dá movimento para o tempo retido. Portanto, na busca do tempo perdido ou da passante do poema de Charles Baudelaire, a imagem desenhada pela luz eterniza o efêmero.

Trailer do filme "O Sal da Terra"