O Tempo Cíclico no Cinema

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O tempo sempre foi uma das maiores preocupações e desafios para o pensamento humano. Diferentemente da percepção do espaço, que se dá a partir de um ponto instaurado pelo ego, onde há a percepção de todo um raio espacial que é exterior ao Ser, a percepção do tempo se dá tanto no Ser quanto no espaço. O envelhecimento do corpo, a morte, as estações do ano são marcas temporais perceptíveis direta ou indiretamente, de modo que a percepção é o primeiro contato com o tempo, o que gera duas concepções perceptuais: o tempo finito e o tempo cíclico. No Cinema, estas duas concepções são trabalhadas de formas distintas, enquanto a primeira concepção de tempo finito sustenta narrativas apocalípticas, a segunda cria narrativas cíclicas baseadas no eterno retorno, como é o caso dos filmes “Vidas Secas” (Brasil, 1963), de Nelson Pereira dos Santos (1928-); e “Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera” (Bom yeoreum gaeul gyeoul geurigo bom, Coréia do Sul, 2003), de Kim Ki-duk (1960-). 

No tempo finito, há um alfa e um ômega, um início e um fim. Aqui, o tempo é tido como algo que tem uma extensão linear finita em ordem “crescente”. Ele sempre aponta para um devir, que se diferencia do presente, mas que nunca se repetirá, de modo que o presente nunca será o mesmo, e o futuro nunca será passado. Um dos fatores de sustentabilidade da concepção finita de tempo é a morte, um dos maiores arquétipos, para a cultura ocidental judaico-cristã, de finitude. Nesta concepção de tempo, ele não se repete; nenhum tempo é idêntico ao outro, o que sustenta as narrativas de gênese e de apocalipse, e, no caso do Cinema, as narrativas apocalípticas, como visto no último artigo (21/12/2012)

No conceito do tempo cíclico, há o caráter de repetição: tudo o que foi, será, e tudo que é já se deu. Um dos fenômenos que melhor expressa esta concepção são as estações do ano. Elas se repetem e, assim, traduzem a percepção de que depois do inverno vem a primavera, depois o verão, o outono, para depois iniciar um novo ciclo com as mesmas estações, como no mito grego de Perséfone que sempre passa seis meses no Hades e seis meses com a sua mãe, Deméter. A morte, no caso, não é um fim e, sim, um constituinte fundamental do ciclo da vida. Assim, o tempo cíclico gera um tempo infinito, marcado pela circularidade, pelo eterno retorno. 

O filme “Vidas Secas” (1963), dirigido por Nelson Pereira dos Santos, é uma adaptação do romance homônimo do escritor brasileiro Graciliano Ramos (1892-1953), sendo considerado um dos principais filmes de toda a história do Cinema brasileiro. A narrativa do livro, como também a trabalhada pelo filme, remetem às características neo-realistas, demonstrando as contradições sociais que reduz a família composta pelo Pai (Fabiano), a Mãe (Sinhá-Vitória), o Menino mais velho e o Menino mais novo à condição de animais. Ela se inicia com a família migrando, tentando conseguir uma situação de vida melhor, sem privações e sem as adversidades da seca. Acabam trabalhando em uma fazenda, onde são explorados e, na cidade, maltratados pelas forças políticas, representadas pelo Soldado Amarelo. Ao final, a narrativa volta para o início com a família migrando novamente em busca de uma melhor qualidade de vida, sendo, deste modo, circular a situação miserável do nordestino. 

No filme “Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera”, de Kim Ki-duk, as estações do ano são uma metáfora para os estágios, não só da vida, mas também de desenvolvimento humano: nascimento, crescimento e declínio. Dois monges budistas, um mais velho que exerce a função de mestre; e outro mais novo, jovem aprendiz, convivem em uma casa no meio de um lago entre as montanhas. O filme é dividido em cinco partes de acordo com as estações do ano, como destacado pelo título: há a primavera, o nascimento; o verão, o despertar; o outono, o declínio; o inverno, a queda; e o renascimento com a primavera, novamente. Na obra fica evidente o eterno retorno da situação humana, mas em um plano metafísico, de constituição da essência humana nos seus estágios de desenvolvimento. 

Logo, as duas concepções primeiras de tempo advêm da percepção humana e do modo de como ela é sentida, bem como os elementos perceptuais: estações do ano, vida, morte, etc. As concepções de tempo finito e tempo cíclico geram as duas primeiras formas em que o ser percebe o tempo, surgido através “das portas da percepção”. As duas concepções geram narrativas diferentes que foram trabalhadas pelo Cinema de forma distinta, sendo a mais famosa as narrativas apocalípticas, mas as há as narrativas cíclicas também ganham destaque, como visto nos filmes “Vidas Secas” e “Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera”. No primeiro, a “estética da seca” se vale do tempo cíclico para expor a situação material e social de uma família e, no segundo, o tempo cíclico é uma metáfora da condição espiritual humana nas suas diversas e eternas fases.

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