A ‘Pietá’ de Kim Ki-Duk

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O cinema sul-coreano vive, atualmente, o seu ápice de prestígio e de qualidade com dois cineastas muito distintos no seu estilo e na sua proposta cinematográfica, são eles: Chan-Wook Park (1963-) e Kim Ki-Duk (1960-). O primeiro é famoso no ocidente pela sua “Trilogia da vingança”, composta pelos filmes “Mr. Vingança” (2002), “Oldboy” (2003) e “Lady Vingança” (2005). O segundo diretor é o mais premiado em festivais internacionais, sendo o seu último “Pietá” (2012) o grande vencedor do Leão de Ouro do Festival de Cinema de Veneza e um de seus filmes que mais repercutiu juntou ao público e à crítica, ao lado de filmes como “Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera” (2003), “Casa Vazia” (2004), “O Arco” (2005) e “Sem Fôlego” (2007). 

“Pietá” é o 18º filme de Kim Ki-Duk. Ele narra a história de Kang-do (Lee Jung-Jin) que trabalha como cobrador de agiotas e usa métodos nada convencionais de cobrança. Quando alguns indivíduos não possuem o dinheiro para pagar a dívida, Kang-do os mutila com os próprios instrumentos de trabalhos, tais como pequenas máquinas industriais ou jogando-os do alto de edifícios para que, assim, fiquem aleijados e recebam o dinheiro do seguro, com o qual poderão quitar a dívida. A rotina de cobrança de Kang-do é quebrada quando, repentinamente, uma mulher passa a segui-lo, revelando-se ser a sua mãe, que o havia abandonado há 30 anos. 

Kang-do é um ser autômato, faz o seu trabalho de forma direta e sem levar em consideração os seus atos de cobrança, que provocam a dor e o sofrimento de outros indivíduos e, principalmente, de outras mães. A proposta de Kim Ki-Duk é mostrar as relações sociais e humanas sendo afetadas pelo capitalismo extremo, no qual a miséria e a situação degradante dos indivíduos os levam a se submeter ao dinheiro de forma cega e a outras situações de forma autômata. O dinheiro, quando questionado o que seria, a resposta é: “Amor, honra, violência, fúria, ódio, inveja, vingança e morte”. 

O filme é, antes de tudo, uma narrativa sobre as relações entre mãe e filho, caracterizada pelo abandono e retorno, como é o caso Kang-do e sua mãe; de incesto, proteção e carinho. O personagem Kang-do passa a ter consciência de seus atos a partir do momento que a sua mãe passa a se relacionar com ele e ser a sua mediadora com a sociedade, fazendo-o ver que as suas ações são negativas. Mas, o seu medo é que usem a sua mãe como forma de vingança, visto que ele é um ser que muito mal já causou a outros indivíduos, o que o leva a revisar e abandonar a profissão de “cobrador”. 

Um aspecto interessante do filme de Kim Ki-Duk é o título (que remete) e o cartaz de divulgação (que reproduz) a obra “Pietá” (1499) do escultor italiano Michelangelo (1475-1564). A escultura se encontra na Basílica de São Pedro, no Vaticano, em Roma, e é uma das mais expressivas obras do Renascimento italiano, possuindo as figuras de Maria e Jesus, estando a mãe segurando o seu filho já morto e ensaguentado no colo, que de acordo com o mito bíblico, havia sido crucificado. No cartaz do filme “Pietá”, tem-se a mesma pose da escultura de Michelangelo, só que Kang-do está no colo de sua mãe.

Por seu turno, ao aludir à escultura de Michelangelo, Kim Ki-Duk inverte a relação entre mãe e filho expressa nas narrativas bíblicas, onde o filho se sacrifica, de modo que, no filme, o sacrifício é da mãe, que se suicida para poder dar uma nova consciência para o seu filho, e, com isso, dá-lhe uma nova vida. Mesmo trabalhando temas da tradição cristã, o diretor sul-coreano coloca elementos que são recorrentes na sua filmografia, representados pela filosofia budista, através de conceitos de perversidade, purgação, sacrifício e ressurreição, que são estágios naturais para a elevação da alma humana, como também expresso no filme “Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera” (2003).

No filme “Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera”, de Kim Ki-Duk, as estações do ano são uma metáfora para os estágios, não só da vida, mas também de desenvolvimento humano: nascimento, crescimento e declínio. Dois monges budistas, um mais velho que exerce a função de mestre; e outro mais novo, jovem aprendiz, convivem em uma casa no meio de um lago entre as montanhas. O filme é dividido em cinco partes de acordo com as estações do ano, como destacado pelo título: há a primavera, o nascimento; o verão, o despertar; o outono, o declínio; o inverno, a queda; e o renascimento com a primavera, novamente. Na obra fica evidente o eterno retorno da situação humana, mas em um plano metafísico, de constituição da essência humana nos seus estágios de desenvolvimento. 

Ao final, em “Pietá”, de Kim Ki-Duk, o diálogo com temas da tradição cristã são amalgamados com temas da filosofia budista, recorrentes em toda a sua filmografia. O diretor insere os dramas de mães e filhos em uma sociedade opressora representada por um sistema capitalista que condiciona as relações humanas e, consequentemente, interfere na relação mais arquetipal de todas: a de mãe e filho. Mas, no filme, a consciência parte do sacrifico da mãe, que ao dar a sua vida, possibilita o renascimento do filho, dando-lhe a luz pela segunda vez.

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