Um Filme Sob o Céu de Berlim

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Win Wenders
No céu sobre Berlim há nuvens cinza, o frio, o vento gélido e anjos, que pairam no ar, descansam em monumentos e caminham entre os homens. “Asas do Desejo” (Der Himmel über Berlin, 1987, RDA) foi dirigido pelo cineasta Wim Wenders (1945-), um dos representantes do Novo Cinema Alemão (Neuer Deutscher Film), surgido nas décadas de 1960 e 1970, tendo a Nouvelle Vague Francesa com o seu Cinema de Autor como influência e a tentativa de revigorar a produção cinematográfica alemã como objetivo. O filme é um dos mais expressivos da carreira do cineasta, sendo ainda laureado com a Palma de Ouro no festival de Cinema de Cannes e uma das obras mais importantes e expressivas da história do cinema. 

Sobre o céu de Berlim há anjos que observam a humanidade dentre as cinzas nuvens ou mesmo nas ruas de uma cidade dividida. Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) são anjos que acompanham os pensamentos e as ações dos berlinenses e seus visitantes, seja na parte socialista oriental (DDR) ou, predominantemente, na parte capitalista ocidental (BRD). O muro divide a cidade; no tempo, são cinquenta anos dos jogos olímpicos e duzentos do vôo de balão de Blanchard. Damiel se apaixona por uma trapezista chamada Marion (Solveig Dommartin), o que realça o seu fascínio pela humanidade, acompanhando-a desde os seus estágios mais pretéritos. Seu mundo é preto e branco, a queda o seu desejo, Marion suas asas. 

O filme possui dois títulos: o primeiro “Asas do Desejo” (Wings of Desire, Les Ailes du Désir, Las Alas del Deseo) divulgado e destinado à distribuição fora da Alemanha; o segundo, “O Céu sobre Berlim” (Der Himmel über Berlin), o mais interessante, pois o filme é uma ode à capital alemã. A cidade é um dos pontos mais importantes do filme, mesmo sendo dividida, os anjos pairam acima das questões históricas e políticas. Monumentos como a Coluna da Vitória (Siegessäule) no centro do Parque Tiergarten, a Avenida Unter den Linden para o leste da cidade e, em sentido oposto, a Torre de Rádio de Berlim (Berliner Funkturm) são mostrados. Um velho procura, rente ao muro, a Postdamer Platz, acha as suas reminiscências e um sofá. 

Damiel e Cassiel são dois anjos que acompanham a humanidade. Os anjos são seres míticos de diversas narrativas, sejam elas de matriz judaica (conhecidos como Malach), cristã, ou ainda zoroatrista, hindu e budista (chamados de Devas). Olham de cima para baixo, observando seres que adquiriram consciência e livre-arbítrio, tentando se elevar. No filme, Damiel é passional, dionisíaco, tem fascínio pela humanidade, se apaixona por uma mulher, quer sentir o gosto do café, de cigarro, sentir frio e poder se aquecer. Cassiel é apolíneo, poderia ser analisado como a metáfora do “Anjo da história”, utilizada pelo filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) no seu ensaio “Sobre o conceito de história” (1940) para analisar o conceito de progresso da história. 

Asas do Desejo” se destaca pela fotografia, inicialmente, em preto e branco. Em alguns planos e na parte final do filme, ela passa a ter cores. O mundo das cores é o da visão do homem, da condição humana, sendo elas quentes ou frias. Aos anjos restam-lhes apenas ver o mundo e os homens em preto e branco. Como a visão de Damiel e Cassiel é a compartilhada pela câmera subjetiva, mostrando o que os anjos veem, o espectador também. Ao final, com a queda de Damiel, e com a recorrência do seu olhar, a fotografia passa a ser em cores, pois, o outrora anjo é, agora, humano demasiado humano. A primeira coisa que ele aprende é diferenciar as cores, vendo o significado de significantes, reproduzindo os seus nomes, apontando-as no muro. 

O filme é a materialização da Arte cinematográfica; a poesia e a narrativa são a da Literatura. A relação entre o Cinema e a Literatura com frequência é associada entre narrativa literária e filme. No entanto, em “Asas do desejo”, o filme se assemelha à poesia. Ele se utiliza dela na abertura, no prólogo, com o poema do escritor austríaco Peter Handke (1943-): “Quando a criança era criança” (Als das Kind Kind war), sendo escrito sobre uma folha de papel. Cada plano tem a sua duração, é polido com luz, sombra, arte e se assemelha às palavras lavradas, trabalhadas pelo poeta ourives, tentando extrair, criar, destacar, atribuir o máximo de significado e de expressão poética da palavra bruta. 

O mais famoso dos anjos é o portador da luz, Lúcifer, denominado pela tradição judaica como “Estrela da manhã”, foi representado como orgulhoso no poema épico “Paraíso perdido” do escritor inglês John Milton, ou mesmo como o “Pai dos revoltosos” nas “litanias de Satã” do poeta francês Charles Baudelaire, como também nas narrativas poéticas e nos quadros de William Blake. Em “Asas do desejo”, Damiel e Cassiel são anjos, mas sem o aspecto religioso, e, sim, com uma moldagem filosófica, crítica, ou seja, Apolínea e Dionisíaca. O primeiro, cansado de admirar a humanidade sobre o céu de Berlim, se torna um anjo caído; já o segundo tem toda a eternidade para observar a efêmera história dos homens. Continua...



Programação Sessão Zoom de Setembro

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O HOMEM DAS MULTIDÕES
Data: 09/09
Hora: 20h
Local: SESC Araraquara
Valor: Grátis

7 DIAS EM HAVANA
Data: 15/09
Hora: 21h30
Local: Cine Lupo
Valor: 2,00

PINA
Data: 22/09
Hora: 20h
Local: Praça das Bandeiras
Valor: Grátis

O GAROTO DA BICICLETA
Data: 29/09
Hora: 21h30
Local: Cine Lupo
Valor: 2,00

Página do facebook: https://www.facebook.com/SessaoZoom?ref=hl


‘Norwegian Wood’: Música, Livro e Filme

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O mercado fonográfico de alta-fidelidade (hi-fi) japonês é o mais rico e de maior qualidade para audiófilos, seja nos equipamentos como Sanyo, Sansui, Sony, Technics; ou mesmo em lançamentos de discos de vinil ou cd com boxes e projetos gráficos excepcionais e de luxo. Em relação aos Beatles, os melhores lançamentos são nipônicos, devido ao fato do país ser o segundo maior admirador do quarteto de Liverpool, ganhando inclusive inserção cultural na Literatura e no Cinema japonês com o romance ‘Norwegian Wood’ (1987), título inspirado em uma célebre música dos Beatles. O romance foi adaptado para o cinema com o filme ‘Como na Canção dos Beatles: Norwegian Wood’ (2013). 

Em 1965, os Beatles lançam o disco ‘Rubber Soul’, sem o nome da banda na capa, apenas com uma foto com uma leve distorção de George Harrison, John Lennon, Ringo Starr e Paul McCartney na capa. As sete músicas do lado A e as sete do lado B representaram um avanço no processo de ruptura temática e estrutural da música serial pop com músicas com uma temática mais poéticas como ‘In my life’ e ‘Girl’. Um dos grandes destaques está por conta da segunda canção do lado A, a inovadora "Norwegian Wood (This Bird Has Flown)", composta pela dupla Lennon-McCartney, que dialoga com a música modal hindu com a utilização do instrumento musical de cordas conhecido como Sitar indiano. 

Os versos da música ‘Norwegian Wood (This Bird Has Flown)’ narram a história do encontro de um rapaz com uma garota em um chalé (I once had a girl, or should I say / she once had me.../ She showed me her room, isn't it good/Norwegian wood?), passam uma noite juntos (She asked me to stay / and she told me to sit anywhere / So I looked around / and I noticed there wasn't a chair), ao amanhecer ela desaparece (And when I awoke, I was alone, this bird had flown / So I lit a fire, isn't it good, Norwegian wood...). O que se tem nos versos é uma cena de encontro e desencontro em um espaço fechado e em um tempo curto, narrando um jogo de sedução cheio de símbolos, metáforas e sugestões de dupla interpretação. 

Em 1987, foi lançado o romance ‘Norwegian Wood’ do escritor Haruki Murakami (1949-), um dos mais populares escritores japoneses contemporâneos. O título do romance alude à composição dos Beatles, já que a música serve como mote para a narrativa cheia de referências implícitas e explícitas ao universo pop e intelectual da década de 1960, tais como ao Rock com referências as bandas como The Beatles, The Doors, Cream, ou mesmo ao jazz com Milles Davis. O livro se constrói a partir da narração de um personagem homodiegético (narrador-personagem em primeira pessoa) que coloca e reflete sobre as suas questões existenciais e afetivas na Tóquio da década de 1960, fazendo, assim, um retrato de sua geração. 

O romance ‘Norwegian Wood’ é uma obra que conseguiu causar impacto na cultura japonesa, sendo adaptado para o cinema em 2013 com o filme ‘Norwegian Wood’ (traduzido no Brasil como ‘Como na Canção dos Beatles: Norwegian Wood’), a tradução, para ser mais vendável e direta, alude à canção homônima dos Beatles. A música é a preferida do protagonista Watanabe, que a associa ao seu grande amor da adolescência para a fase adulta: a bela Naoko. Após o suicídio de Kizuki, seu melhor amigo e namorado de Naoko, Watanabe vai estudar em Tóquio. No entanto, o filme não se constrói a partir de um triângulo amoroso, mantendo-se, assim, fiel à proposta temática do romance adaptado de ser uma narrativa de memória e de reflexão. 

Dois elementos se destacam no filme: a fotografia e a música. O primeiro segue uma tradição de planos artisticamente bem trabalhados com uma bela direção de arte, com uma fotografia que se assemelha à tradição estética e plástica de cineastas como Akira Kurosawa (1910-1998), na sua obra ‘Sonhos’ (1990); ou mesmo Kim Ki-duk (1960-) com ‘Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera’ (2003). O segundo ganha força aludindo e tendo como tema a canção dos Beatles, como também pela direção e composição da trilha sonora feita pelo guitarrista da banda inglesa Radiohead Jonny Greenwood (1971-). O músico ainda compôs as trilhas de filmes como ‘Precisamos Falar Sobre o Kevin’ (2011), ‘Sangue Negro’ (2007) e ‘O Mestre’ (2012). 

No filme ‘Como na Canção dos Beatles: Norwegian Wood’, Watanabe tinha uma garota ou ela o teve? O filme é uma adaptação do diretor franco-vietnamita Tran Anh Hung (1962-) de um romance de Haruki Murakami, que alude à canção dos BeatlesNorwegian Wood (This Bird Has Flown)’. Assim, há o filme que adapta o romance que alude à música; ou seja, uma “quadrilha" drummoniana de relações, para os apreciadores dos Beatles, da literatura japonesa e do cinema oriental, tendo a madeira norueguesa como combustível.

Trailer do filme:

Amantes Eternos e Constantes

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Seres pálidos, sensíveis à luz do dia, com os dentes caninos sobressalentes, que se alimentam de sangue; são as descrições mais comuns de seres mítico-folclóricos conhecidos como Vampiros. Sujeitos de inúmeras narrativas, sejam elas populares, literárias, musicais, ou mesmo, cinematográficas, tiveram a sua representação modificada dependendo não apenas do contexto histórico, mas também da linguagem utilizada. No cinema, se metamorfosearam em seres horripilantes dentro do expressionismo alemão até personagens superficiais do universo adolescente. O último filme do cineasta estadunidense Jim Jarmusch (1953-), “Amantes eternos” (Only Lovers Left Alive, EUA, 2014), faz uma abordagem interessante da figura do vampiro. 

Mesmo sendo estadunidense, Jim Jarmusch está associado ao cinema independente, não se rendendo ao canto da sereia da indústria do entretenimento cinematográfico representada por Hollywood. Dirigiu “Dead man” (1995) no qual desconstrói o gênero western (faroeste), filmando em preto e branco com trilha sonora de Neil Young. Em 2003, lança a produção “Sobre Café e Cigarros” com uma série de 11 curtas-metragens com músicos e personalidades do cinema, tais como Jack e Meg White, da banda The White Stripes, Iggy Pop, Tom Waits, Roberto Benigni, Bill Murray, tendo café e cigarros como combustíveis de diálogos. Já em “Flores partidas” (2005), tem-se a busca de um pai por um filho desconhecido. 

Amantes eternos” (2014) foi lançado no festival de Cinema de Cannes, tendo como personagens figuras não muito recorrentes em filmes pretensamente autorais e artísticos lançados nos últimos anos, devido às produções para adolescentes que criaram uma figura do vampiro passiva e vendável. No filme, um casal de vampiros sociofóbicos divaga sobre música, literatura e arte em geral. Adam é músico, byroniano, depressivo, com tendências suicidas. Eva é uma vampira que tem predileção pela literatura. Observam a humanidade há séculos, tendo inclusive ajudado-a a criar obras artísticas como um adágio para uma composição de Schubert (1797-1828), ou ainda uma peça de Shakespeare (1564-1616), tendo convivido com escritores como Lord Byron (1788-1824) e Mary Shelley (1797-1851). 

O vampiro, ao longo da história do cinema, foi retratado em filmes de comédia, suspense, terror, ficção científica, drama. Um dos primeiros e mais expressivos filmes sobre vampiros é a produção “Nosferatu” (1922), de F. W. Murnau, que figura entre uma das principais obras do expressionismo alemão. Em 1979, o diretor alemão Werner Herzog refilma o clássico de Murnau com o nome de “Nosferatu: O Vampiro da Noite”, tendo o ator Klaus Kinski como o vampiro. O filme “Drácula” (1931), estrelado por Béla Lugosi, ajudou a sedimentar as principais características do personagem vampiresca dentro do gênero terror. Já no filme ‘A dança dos vampiros” (1967), o diretor Roman Polanski faz uma comédia mesclando com o terror. 

Na década de 1980, os vampiros fizeram parte de produções tais como “A Hora do Espanto” (1985) e “Garotos perdidos” (1987), este último trabalha alguns elementos recorrentes, tais como o vampiro só pode entrar na casa de alguém se for convidado, ou ainda a questão da água benta. Os filmes figuram entre o terror e a comédia. Durante a década de 1990, a produção “Um drink no inferno” (1995) foi o filme mais significativo, tendo a direção Robert Rodriguez e o roteiro escritor por Quentin Tarantino, o aclamado diretor de filmes como “Pulp Fiction” (1994), com o qual ganhou a Palma de Ouro em Cannes, “Bastardos Inglórios” (2009) e “Django livre’ (2012). Nos anos 2.000, o único filme digno de nota é a produção sueca “Deixa ela entrar” (2009). 

No filme “Amantes eternos”, Jim Jarmusch subverte a representação da figura do vampiro, fazendo um filme pretensamente autoral. Logo no início, tem-se uma cena interessante, enquanto um disco de 45 rpm toca a música “Funnel of Love”, da cantora de rockabilly Wanda Jackson, a câmera gira acompanhando a rotação do disco. A música recebe destaque no filme, seja citando e visitando a casa do músico Jack White, em Detroit, ou mesmo aludindo ao hobby de Adam: compor músicas, colecionar instrumentos musicais, além de aparelhos de reprodução como receivers, amplificadores, deck de rolos, da Marantz, Telefunken, Sansui, Marshal. 

Amantes eternos” dialoga com uma tradição, mas também a subverte, é um filme repleto de intertextualidade com a literatura, música e cinema. Mesmo com uma grande quantidade de produtos representados por filmes e seriados, a figura do vampiro durante os últimos anos ficou apagada, apática, passiva. Jim Jarmusch revive o personagem dando-lhe aspectos interessantes, inovadores, tendo a sua direção como norte e o cinema independente como bandeira. Ele é um dos arautos do cinema independente estadunidense, ou seja, aquele sem influência da indústria cinematográfica e sem as “mãos nefastas” dos produtores hollywoodianos.

Trailer do filme:


Música "Funnel of love", de Wanda Jackson

Luz, Câmera e Som - Festa da SEDA

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Exibição dos documentários “Aliens 69” e “One plus One - Sympathy For The Devil”

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Exibição dos documentários “Aliens 69” e “One plus One - Sympathy For The Devil” Sessão Zoom | SEDA | Araraquara Rock



11/08 - Segunda-feira: Sessão Zoom especial Araraquara Rock/SEDA – “One plus One - Sympathy for the Devil”, de Jean-Luc Godard,  + “Alin 69, o ano que os Rolling Stones invadiram Matão”. Bate-papo com Breno Rodrigues e com os realizadores de “Alien 69” .
Horário: 19h | Local: Praça das Bandeiras, Araraquara-SP
Gratuito

Link do evento no facebook: https://www.facebook.com/events/1460249784225959/


“Simpatia pelo Diabo” e por Godard

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Uma música mereceria um filme? Algumas poucas dentro da história da música popular massiva da segunda metade do século XX, sim, tais como ‘Like A Rolling Stone’ (1965) do Bob Dylan, ou mesmo ‘A Day in The Life’ (1967) dos Beatles, ou ainda ‘Johnny B. Goode’ (1955) do Chuck Berry, como também ‘White Light/White Heat’ (1968) do Velvet Underground. A música ‘Sympathy For The Devil’ (1968), da banda inglesa The Rolling Stones, teve o seu processo de gravação em estúdio filmado pelo cineasta francês Jean-Luc Godard (1930-), sendo lançado com o título de ‘Sympathy For The Devil - One Plus One’ (Inglaterra, 1968) em um filme cheio de referências ao contexto musical, histórico, cultural e político de 1968. 

Por gentileza, permita-me que apresente ‘‘Sympathy For The Devil’, uma música de fortuna e requinte gravada em junho e lançada como abertura do lado A no disco ‘Beggars Banquet’ em 06 de dezembro de 1968 pelos Rolling Stones. A canção foi composta por Mick Jagger tendo como inspiração para a letra o romance ‘O Mestre e Margarida’ (1940) do escritor soviético Mikhail Bulgakov e uma tradição ocultista que remete às ‘Litanias de Satã’ do poeta francês Charles Baudelaire, ou ainda às ‘fáusticas histórias’ do escritor alemão Goethe. Os arranjos são de Keith Richards e Brian Jones. O ritmo foi influenciado pela música modal africana a partir do Candomblé, que os músicos entraram em contato em uma visita à Bahia meses antes. 

Prazer em lhe conhecer, quando o cineasta Jean-Luc Godard vai a Londres, em junho de 1968, para realizar um filme com produtores britânicos, sua ideia inicial é modificada, sendo sugerido que faça uma produção com/sobre os Beatles ou mesmo os Rolling Stones. Os primeiros recusam por questões contratuais, já os segundos aceitam a proposta de realizar um filme com o grande nome da nouvelle vague francesa. Da parceria surge o filme ‘Sympathy For The Devil - One Plus One’. 

O filme se inicia com o ensaio da música, Brian Jones e Mick Jagger estão com instrumentos de cordas decorando os primeiros versos da canção. Em seguida, chega Keith Richards e, a partir de uma panorâmica horizontal, têm-se os outros músicos como o baterista Charlie Watts e o baixista Bill Wyman; Jagger entoa o refrão “Pleased to meet you/Hope you guess my name”. A câmera é documental, mostra o processo de gravação no estúdio Olympic em Londres. 

Godard entende a natureza do jogo, faz um filme que documenta o processo de gravação de ‘Sympathy For The Devil” entre os dias 04 a 10 de junho de 1968, mas, não apenas. Poucos dias antes, o cineasta estava no Festival de Cinema de Cannes na França, sendo um dos arautos (juntamente com os cineastas Carlos Saura, François Truffaut, Louis Malle, Terence Young e Roman Polanski) para o seu cancelamento em solidariedade às manifestações que estavam ocorrendo em Paris, em “Maio de 68”. 

Mas, o que intriga é o filme de Godard. O cineasta já havia abandonado as propostas estéticas da nouvelle vague para fazer filmes de caráter político através do grupo cinematográfico Dziga Vertov, que fundara no início de 1968. No filme, o cineasta vai além da música, coloca a sua nova diretriz política marxista segundo várias esquetes narrativas, discutindo o contexto social e político da época, dando vozes para os Panteras Negras, com a discussão racial; para as formas de manifestações sociais e a posição do intelectual; ou ainda a Guerra do Vietnã. As esquetes são surrealistas, quebram com o efeito de realidade e com o discurso cinematográfico padrão. 

Paris era o centro das manifestações políticas a partir de maio de 1968, Londres era a capital cultural. O termo “Swinging London” foi usado para descrever a efervescência cultural da cidade que estava na vanguarda da música com a “invasão britânica’, das artes e do cinema com os diretores Tony Richardson, Richard Lester e Lindsay Anderson. Assim, vários cineastas de outras nacionalidades foram filmar na cidade, tais como o francês François Truffaut com ‘Fahrenheit 451’ (1966), ou mesmo o italiano Michelangelo Antonioni com o filme ‘Blow-up’ (1967), e também Jean-Luc Godard com ‘Sympathy For The Devil - One Plus One’ (1968). 

Com o filme ‘Sympathy For The Devil - One Plus One’, Godard cria uma polifonia, um conjunto de vozes, de discursos: do musical com o processo de gravação da canção ‘Sympathy For The Devil’ centrado em uma banda de rock, os Rolling Stones; como também político com os Panteras Negras; ou ainda histórico, com a discussão sobre a Guerra do Vietnã. As vozes são musicais, trechos de obras literárias, sociológicas ou mesmo filosóficas. Há a voz em off, que destoa da imagem, pichações em muros, carros com os dizeres: “Cinemarxism”, “Freudemocracy”, “sovietcongs”. Jean-Luc Godard cria uma obra que presenciará muitos acontecimentos.

Trailer do filme:

Exilados e Estrangeiros

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"Minha pátria é minha língua", famoso verso da canção ‘Língua’, lançada no disco ‘Velô’ (1984) do compositor Caetano Veloso (1942-), coloca uma questão importante: a da identidade individual projetada em uma identidade coletiva. O mesmo tema é tratado pelo filme ‘Exílios’ (Exils, França, 2003) do diretor franco-argelino de etnia cigana Tony Gatlif (1948-), que possui como pátria, a Argélia; como língua, a francesa; e como identidade, a cigana. 

Em ‘Exílios’, o jovem músico Zano e sua namora Naïma decidem partir de seu apartamento em Paris em caminho à Argélia para rever o “lar” de seus avôs. Deixam a cidade luz europeia e partem em direção à região do Magreb africano, tendo como destino Argel. No caminho, passam por regiões rurais francesas, pela Espanha, se destacando a cidade de Sevilha e a região da Andaluzia, passando pelo Mar Mediterrâneo, por Marrocos e, por fim, Argélia. 

A viagem de Zano e Naïma é uma tentativa de busca de identidade, de autoconhecimento. Se sentem estrangeiros em Paris, mesmo sendo criados dentro da cultura e do pensamento cartesiano francês, sentem um vazio existencial. A identidade individual parte também da identificação coletiva, de uma alteridade com o outro, neste caso identificada apenas entre o casal e não com o coletivo. Eles não se identificam com o meio em que vivem. O caos urbano contrasta com a calmaria do apartamento e com a inquietação interna que possuem. 

Zano é descendente de colonos franceses que passaram gerações na Argélia, sendo pejorativamente chamados de “Pieds noirs” (“pés pretos”) quando retornaram à França após as “guerras coloniais” no final da década de 1950 e início de 1960, nas quais as colônias africanas, surgidas durantes a “Era dos Impérios: 1875-1914”, conseguiram a sua independência. Por seu turno, Naïma é descendente de árabes que migraram para a Europa. Portanto, na França, se sentem exilados e estrangeiros. 

O filme é um road-movie (‘filme de estrada’), um gênero cinematográfico no qual a narrativa dos filmes se desenrolam a partir de uma viagem e do consequente deslocamento espacial. No caso de ‘Exílios’, ele segue a estrutura básica do gênero, já que o filme é sobre a viagem de Zano e Naïma de Paris à Argélia. No entanto, pela Europa unificada, acabam caminhando em um contra fluxo, já que fazem a rota oposta de milhares de imigrantes clandestinos que saem do continente africano rumo ao continente europeu. 

O casal caminha como clandestinos, à margem, o fluxo segue em caminho contrário, pelo caminho encontram personagens que estão migrando, como um casal de jovens irmãos árabes, ou mesmo trabalhadores ilegais em uma plantação de pêssegos. Confraternizam com ciganos na Andaluzia, com as suas paisagens e arquiteturas moçárabes. Região historicamente de difícil categorização, pois foi local de convívio entre europeus e árabes durante séculos e, mesmo com a expulsão dos muçulmanos da península ibérica em 1492, houve uma geração que não era nem europeu e muito menos árabe. 

Na Andaluzia cantada pelo poeta Federico García Lorca (1898-1936) nos seus romanceros gitanos, Zano e Naïma se encontram com um grupo de ciganos, indivíduos que não pertencem a nenhuma pátria e não possuem uma língua que os representem juntamente com um estado, é uma etnia historicamente nômade. O interessante é que o diretor mostra apenas indivíduos ou grupos que estão à margem da sociedade europeia: imigrantes, clandestinos, ciganos, mulçumanos, trabalhadores rurais. No entanto, a cultura cigana e árabe ganham destaque, seja na música flamenca ou na arquitetura moçárabe. 

A busca pela identidade passa pelo reconhecimento do corpo como intermediador do eu com o meio. Naïma tem o corpo livre, não gosta de prendê-lo com roupas, está se movendo, dançando, enfim, movimentando-o. Quando chega à região do Magreb africano, se estranha com as vestimentas das mulheres mulçumanas, com o corpo todo coberto. Em Argel, capital da Argélia, é interpelada por uma mulher se não sentia vergonha de mostrar o corpo, pois estava usando um vestido. Não compreende a repressão do corpo. Ainda sobre o corpo, o filme se inícia com um close nas costas nus de Zano, o plano vai se abrindo, mostrando o conjunto do espaço. Partindo, assim, do corpo para o espaço. 

O escritor argelino Albert Camus (1913-1960), de descendência francesa e de língua francesa, também trabalha a questão de identidade no seu romance ‘O Estrangeiro’ (L'Étranger, 1942) através da personagem Meursault, que não se sente nem francês ou árabe, e que, ao matar um árabe na praia (também citado pela música ‘Killing an arab’ da banda inglesa The Cure), é julgado e condenado, não pelo crime, mas por não mostrar sentimentos no velório da própria mãe. Zano e Naïma são estrangeiros, vivem exílios em um mundo sem identidade e de constantes mutações, de modo que a busca da identidade vai além da língua, da pátria, volta-se para as entranhas do próprio ser. E ao final, a identidade não está na saída nem na chegada, ela se dispõe no meio da travessia, na própria viagem.

Trailer do filme "Exílios":

‘Quadrophenia’ Musical e Cinematográfica

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Quadrophenia’ (Inglaterra, 1979) é um filme dirigido por Franc Roddam, é baseado na “Ópera Rock” homônima lançada em 1973 da banda inglesa The Who, formada pelos músicos Roger Daltrey (1944-), Pete Townshend (1945-), John Entwistle (1944-2002) e pelo lendário baterista Keith Moon (1946-1978). O filme é um retrato do cenário musical e cultural londrino nos primeiros anos da década de 1960, com a oposição entre os dois principais grupos conhecidos como Mods e Rockers, como também a arquetipal dualidade entre o velho e o novo em uma sociedade em constantes transformações.

No filme, tem-se a história do jovem Jimmy, um mod que vive no subúrbio de Londres. Sua vida é influenciada pelo seu contexto social e cultural, sofre com o vazio da sua geração, sem perspectiva de futuro, a não ser em um emprego burocrático e alienante. O seu cotidiano é modificado quando se encontra com outros indivíduos adeptos do estilo mod, identificados pelos seus ternos e pelo consumo de anfetaminas, além de todos possuírem uma Lambreta decorada e cheia de espelhos. 

Os mods cultuavam a Lambreta não apenas como meio de transporte, mas como também estilo de vida e de diferenciador social. Eram adeptos da música pesada e moderna produzida por bandas inglesas como The Who, Small Faces, The Kinks e pelo importante grupo The Yardbirds, de onde saíram músicos como Eric Clapton, Jeff Beck, Jimi Page, sendo o embrião de bandas como Cream, The Jeff Beck Group e Led Zeppelin.

No contexto social britânico, os mods tinham como inimigos o rockers, que possuíam motos e se caracterizavam pelo uso de jaquetas de couros e um estilo mais despojado, se identificando com o estilo musical dos anos de 1950 conhecido como Rockabilly, com músicos como Gene Vincent, Jerry Lee Lewis, Carl Perkins, Buddy Holly, Bill Halley e Eddie Cochran, ou seja, a maioria músicos da gravadora Sun Records, fundada por Sam Phillips em 1952 em Memphis, Tennessee, nos Estados Unidos. 

Em ‘Quadrophenia’, Jimmy é um mod que sempre está em confronto com os rockers, o que representa um embate não apenas musical, mas também de ocupação do espaço urbano, tomada por jovens que se auto-afirmam a partir da identificação com um grupo de indivíduos com as mesmas características e se diferencia em relação a outros grupos sociais, o que gera conflitos. Em Londres, os mods não convivem nos mesmos espaços que os rockers e ao irem para o feriado na região litorânea de Brighton, na Inglaterra entram em conflito, causando transtorno com as constantes brigas generalizadas.

O filme mostra o conflito entre os mods e os rockes, como também o conflito entre gerações na sociedade inglesa. O conflito entre o velho e o novo representado pelo embate da música Rockabilly da década de 1950 e do R&B britânico da década de 1960. Ao tomar banho, Jimmy ouve alguém cantando ‘Be Bop a Lula’, de Gene Vincent, logo responde cantando em tom alto a música ‘You Really Got Me’, da banda The Kinks. “Os velhos valores” da sociedade e da cultura inglesa são representados pelos pais e pelo mercado de trabalho, que condicionam e limitam as possibilidades de desenvolvimento do indivíduo fora destas esferas, o que gera o conflito de gerações. 

O interessante do filme é a sua estreita relação com a música, sendo baseado em um disco da banda inglesa The Who, e produzido pelos integrantes dela. O filme coloca em destaque as músicas do disco homônimo. O que se tem no filme e no contexto social da segunda metade do século XX, é a musica popular massiva como identidade etnografia urbana entre grupos, aqueles que ouvem a música de um determinado gênero e se vestem como seus representantes possuindo uma identidade individual projetada em uma identidade coletiva. Como grupo, perdem a sua fraqueza individual e sentem a força coletiva, é o que acontece com Jimmy e seus amigos. 

Com ‘Quadrophenia’ do The Who, o gênero musical Rock se expande, o disco ganha uma pretensa unidade e as músicas uma narratividade, opondo-se, assim, ao Rock and roll, que surgiu como produto para adolescentes liberarem a sua libido através da música e da dança com a sua estrutura melódica simples. Quando o gênero Rock and roll evoluiu, tornando-se Rock, eleva-se a música popular massiva artisticamente, ganhando relevância cultural, ampliando os seus temas, a sua estrutura melódica, as harmonias, e as faixas etárias. 

Quando perguntado, no aeroporto JFK de Nova Iorque no dia 07 de fevereiro de 1964, logo no desembarque da “Invasão Britânica”, se os Beatles eram mods ou rockers (“Are you a mod or a rocker?”), o baterista Ringo responde serem “mockers” (“I'm a mocker”). O conflito real existiu, mods e rockers dividiram os jovens britânicos, mas os inimigos eram outros, que se somam com os dias dos anos. Do conflito surgiu o disco e o filme, de modo que sempre o atrito gera algo, sempre “Talkin' bout' my generation”.

Trailer do filme:


The Who - My Generation

O Cisne Branco e Negro

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Dentro da mitologia clássica grega há as Musas, figuras femininas responsáveis pela inspiração artística, sendo ao todo nove, cada uma com a capacidade de inspirar uma Arte. A Musa da Dança é conhecida como Terpsícore, como destaca o poeta grego Hesíodo na sua ‘Teogonia’. O cineasta estadunidense Darren Aronofsky (1969-) possui uma carreira cinematográfica que coloca as musas sob assédio da indústria cultural com filmes como ‘Noé’ (EUA, 2014), ‘O Lutador’ (EUA, 2008), ‘Fonte da Vida’ (EUA, 2006); mas também coloca em destaque Terpsícore com o filme ‘Cisne Negro’ (Black Swan, EUA, 2010). 

Cisne Negro’ narra a história de Nina Sayers (Natalie Portman), uma bailarina de uma companhia nova-iorquina de balé que fará uma montagem do ‘Lago dos Cisnes’ (1877), do compositor russo Tchaikovsky (1840-1893). Para receber o papel de rainha dos cisnes, Nina terá que interpretar ambos os cisnes: o Cisne Branco e o Cisne Negro, algo difícil, pois representam uma dualidade arquetipal humana entre bem e mal, o primeiro com inocência, graça, pureza e leveza; enquanto o segundo com malícia, sexualidade e robustez. 

Com a tentativa de incorporar o Cisne Negro, Nina cria um conflito psicológico, que questiona o estatuto do real e projeta o seu duplo, expressando uma dualidade e os seus conflitos internos. O que se tem é o conflito psíquico de Nina que cria um reconhecimento em relação à personagem Lily e uma projeção em relação a uma outra personalidade, mais livre, também representada pelo Cisne Negro. Para expressar a questão do duplo, Aronofsky coloca em diversas cenas jogos com espelhos, sendo a forma mais arcaica de duplicação do ser, o que também gera um duplo movimento em Nina de reconhecimento e estranhamento, pois se coloca através dos espelhos uma fronteira entre o real e o insólito, quebrada com frequência. 

O tema do duplo faz parte de uma tradição mitológica e literária, sendo o arquétipo básico da dualidade humana representada pela questão ética do bem e do mal, materializada em personagens dentro da mitologia judaica-cristã como Caim e Abel, Esaú e Jacó, ou mesmo na mitologia grega com a figura do sósia na narrativa de Anfitrião e Alcmena, ou mesmo no mito de Narciso. Na literatura, se expressa no conto ‘William Wilson’, do escritor estadunidense Edgar Allan Poe, ou mesmo no romance ‘O Homem Duplicado’ do escritor português José Saramago; e no conto ‘O Sósia’ do escritor russo Fiódor Dostoiévski

No cinema, o tema do duplo segue uma tradição de projeção de conflitos internos das personagens, como nos filmes ‘O Clube da Luta’ (Fight Club, EUA, 1999), de David Fincher; ou mesmo em ‘A Dupla Vida de Verônica’ (Polônia, 1991), de Krzysztof Kieslowski; como também o filme alemão ‘O Estudante de Praga’ (Student von Prag, 1913), de Paul Wegener; ou ainda em ‘Partner’ (França, 1968) de Bernardo Bertolucci. O filme ‘Cisne Negro’ segue a tradição do duplo, mas sem maniqueísmo, já que o lado obscuro de Nina ficou reprimido pela sua mãe, profissão, sendo ele a libertação. 

Para se libertar, Nina tem que deixar aquilo que a reprime sexualmente, artisticamente e socialmente. Ela como bailarina sempre buscou a perfeição, o que a credencia como interprete perfeita do Cisne Branco. No entanto, quanto maior for a repressão dos impulsos psíquicos humanos, mais degradantes são suas formas de libertação, como também demonstrado no filme ‘A Professora de Piano’ (La Pianiste, França, 2002) do diretor austríaco Michael Haneke. Nina se autoflagela, se coça, se corta, a dor é constante, criando uma estética da dor, pois tudo aquilo que tem uma aparência bela no seu estágio final, tem um processo doloroso e uma essência destruidora. 

A liberdade de Nina segue um percurso, sendo guiada por Thomas (Vincent Cassel), o diretor da companhia e um provocador, e pela personagem Lily que se mostra como antagonista, já que ela possui todas as características que são reprimidas por Nina. Lily é a guia, mostra a Nina a liberdade e se projeta como desejo de assimilação, principalmente sexual. A transformação de Nina fica clara nas suas roupas e na decoração do seu quarto, antes ela usavas apenas roupas claras e possuía bichinhos de pelúcia, depois suas roupas passam a possuir tons de escuro, o que expressa a sua transformação. 

Certa noite, ao fugir da sua realidade opressora, Nina se metamorfoseia em um cisne negro. Há um estado de ecstase, pois a liberdade é um estado de graça, a beleza, a libertação, a revolta, contra a mãe, contra uma personalidade opressora. No balé, a dança, a luz, o ritmo, os passos, o plié, a graça, a delicadeza são uma ode à Terpsícore. Com o filme ‘Cisne Negro’, o cineasta Darren Aronofsky protege as Musas do assédio com uma obra de qualidade dentro da indústria cultural.


Trailer do filme 'Cisne Negro':