Vamos Comer Atala, Vamos Devorá-lo, Degluti-lo, Mastigá-lo.

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Por Jéssica Giovanini Silva

A cidade que me gerou foi a mesma que nesse último fim de semana me jogou do abismo. Passei esses últimos dias, eu e a Virada Cultural paulistana, a Gastronomia, e o maior nome de toda a América Latina, o aclamado Alex Atala. Ai, como eu quis estar naquele lugar (Minhocão), naquele horário, com aquelas pessoas, naquele ambiente, e participar desse evento. Como esse dia foi crucial para a minha vida! A verdade é que eu já conheço muito bem essa galinhada, e tanto outros pratos do Dalva e Dito ou do D.O.M, quis estar lá me sentido menos suja entre a multidão (minha consciência boba e eu), de pé em uma fila quilométrica. Preferi, naquele momento, estar lá do que entre as grandiosas paredes e panelas do Dalva e Dito, sentada no conforto e no luxo do certo. Preferi me silenciar entre a multidão e deixar com que elas falassem entre si e falassem comigo mesma em um processo interno entre mim e meus anseios, do que estar entre as cadeiras, bem servida, paparicada pelo serviço inigualável de um chef com rigor e precisão 100%. O fato é que cada vez que vou aos restaurantes do Atala, sou levada à loucura, sou feliz em cada instante, sou feliz lendo e rindo com o cardápio, sou feliz olhando o mise-en-scène da cozinha, sou envolvida por cada apresentação e emocionada com cada prato, sou admiradora passiva, contemplativa do Belo que vivencio com tanta entrega na minha curta estrada Gastronômica. Mas, como toda antiestética ou vanguarda, dessa vez fui ativa, representante, componente físico do grotesco, ainda que também muda e deslumbrada. O Minhocão me acolheu, naquele momento que eu tanto precisava vivenciar alguma experiência forte, muito melhor do que os restaurantes pudessem naquele estágio da minha vida, o Minhocão me abraçou a alma, o corpo e cutucou o meu âmago.
Todos sabem que a Gastronomia virou palco de adoração, chefs viraram ídolos, e restaurantes objetos de desejos, uma boa parcela de culpa da mídia pretensiosa, outra maior ainda foi da necessidade de suprir uma função social que veio com o Atala (explicarei melhor esse ponto). Quem me conhece, sabe que tenho esta figura com muito respeito e reverencio sua importância, tenho Alex (perdoe a intimidade) como meu maior professor, e suas palestras e entrevistas como minhas melhores aulas (obrigada youtube por me fazer passar mais horas do dia com ele do que com qualquer outra pessoa). No Cinema, a Nouvelle Vague estreou o chamado Cinema de autor, a Gastronomia passou pelo mesmo processo com a Cozinha de Chef, assim, como é hoje, os frequentadores não vão mais aos restaurantes, mas sim vão até os chefs.
Aprendemos com a Literatura, que foi – principalmente - no Modernismo que buscamos nossa brasilidade, e demos o grande grito de nossa identidade nacional. Pois bem, esse grito dado na Literatura pelos Modernistas, no Cinema pelo Cinema Novo, na Gastronomia está sendo dado por Alex Atala e seus seguidores, sim, sua função social (a qual me referia anteriormente) dentro da História da Gastronomia é fundamental, fazendo dele o grande teorizador da nossa Gastronomia nacional. Creio que Alex Atala cumpre uma falta social e veste uma figura necessária, e até então, inexistente no nosso país, daí vem seu mérito, daí vem seu reconhecimento. Entretanto, assim como na Literatura e no Cinema, essas escolas que falavam sobre o brasileiro não eram accessíveis ao brasileiro retratado e, por isso, são vistas, por uma parcela da crítica, como elitistas. A cozinha genuinamente brasileira, que cresce em torno da bandeira da nossa própria brasilidade, da fama e da curiosidade da Amazônia (graças a uma pesquisa séria feita por Atala que descobre novos ingredientes de nossa floresta), essa cozinha conversa com quem? Com que brasileiro? Certamente não é com o amazonense que trabalha extraindo as raízes de priprioca, e nem estou dizendo que essa cozinha deveria ser para ele ou não. Há críticos, como Safatle, que defendem que a arte pressupõe um distanciamento necessário das massas. O grande problema da Gastronomia, ao contrário da Literatura e do Cinema, é que a Gastronomia se faz inacessível não só pelo viés cultural, mas também pelo viés econômico. As outras artes excluem públicos pelo viés cultura, e assim, por acarretamento, excluem classes. Já a Gastronomia exclui contundentemente classes. Talvez ela seja mais criticada por essa realidade ser pontual e escancarada, enquanto nas outras artes se vende a ideia de que estas são um bem social e, o mais irônico, de que a arte é pra todos.
Coloquemos em suspenso essa discussão fundamental e seguimos nos acontecimentos da “Virada Gastronômica”. A mídia, que nos referíamos anteriormente, ainda que funcione como divulgadora (no caso desses eventos, por exemplo), funciona ainda mais como um elemento de desejo e fetiche. Eu, diante de uma fila com milhares de entusiastas (estima-se que estiveram presentes na espera da galinhada mais ou menos 5 mil pessoas), havia no discurso das pessoas que pude acompanhar durante essas horas de espera, uma fala fetichista de necessidade de ascensão social, de necessidade de afirmação de algumas classes. Com a mobilidade socioeconômica dos últimos anos no Brasil, classes ascenderam e puderam comprar o status de estar no ambiente de desejados e disputados restaurantes, entretanto, muitos não puderam, e diante da organização socioeconômica do país, não poderão, não poderão comprar uma galinhada do Alex Atala. Ele, um chef com alma Punk, talvez como um alívio de consciência, ou com a melhor das intenções - entusiasmado e agradecido por poucos dias antes ter ascendido na classificação da maior premiação mundial da Gastronomia como o quarto melhor restaurante do mundo - quis excluir a taxa simbólica que seria cobrada pela galinhada servida na Virada Cultural e decidiu servi-la de graça.
Ainda não tenho uma opinião muito bem formada sobre o que aconteceu, estive em choque nesses últimos dias depois do que vive, gostaria de passar dias conversando com quem quer que seja sobre o assunto e me debruçar em novas opiniões, mas o que vi (com meu olhar cheio de parcialidades) foi um povo brasileiro precisando comer, no seu sentido mais antropofágico, as classes ascendentes, comer com um prazer marxista de luta de classes aquela galinhada e falar de boca cheia que sim, eles também comeram a galinhada, que sim, eles também conhecem o quarto melhor sabor do mundo, que sim eles também podem. Como seria bom se essa multidão estivesse lá com um grito consciente de luta de classe, mas estavam lá pela necessidade da tão obvio (e brega) sociedade do espetáculo, sociedade da exibição no qual o mostrar torna-se mais importante do que o fazer e vivenciar em si. Onde o sabor da galinhada torna-se irrelevante diante do fato de ter-se a comido, já que se ela estava quente ou fria (e como estava fria), não importasse, pois a foto não tem temperatura, a marcação do facebook não tem sabor.
A comida que estava lá era comida, e não experiência, como é a proposta genuína da cozinha de Atala. A experiência foi promovida pela ocasião, pelo tumulto e não pela Gastronomia em si. Aquele arroz requentado, aquele mirrado frango branco frio, com uma farofa descuidadamente jogada sobre ele, em um caixinha de chine in box, estava longe, mas muito longe de ser a galinhada que eu havia comido em seu restaurante, estava longe de sua conhecida precisão de temperatura, ponto do alimento, preocupação com a textura, com o estado dos ingredientes em seu melhor momento, muito longe de suas apresentação de pratos estonteantes, na delicadeza de seus talheres e louças, longe do aroma de sua cozinha, ou do aconchego de seu restaurante. Aquilo não era Gastronomia! A fraqueza da linha tênue entre cultura (a alta Gastronomia) e a natureza (necessidade primaria e básica), mostravam-se como antíteses em um retrato social decadente de São Paulo.
Cenas que me chocaram, uma delas, foi - quando presenciei um mendigo, tratado diariamente nessa mesma cidade como sub-humano, conseguindo pegar a tal desejada caixinha branca com a seleta galinhada. Saberia este da genialidade de Atala, ou de sua importância para a escola da Gastronomia? (Poderia até saber!) Cenas como essa é o que me fascina como pesquisadora é o que me angústia como cidadã dessa cidade. Este mendigo estava cumprindo uma de suas necessidades mais primeiras e urgentes, peleando na multidão por sua subsistência. Outra cena logo em seguida, no qual desavisada nem peguei fôlego do fato que então acabava de presenciar, foi quando uma jovem, que espremida pela multidão bem ao meu lado, dizia que não queria a galinhada, e em um tom de fã, uma fã nitidamente construída pela mídia que dizia a ela que Atala era o quarto melhor do mundo, suplicava em vê-lo, convencida de que sua imagem fosse realmente mais necessária do que comer sua galinhada. Ainda, nesse mesmo momento, haviam outros, mais revoltosos (aqueles que bem sabemos que estão por todas as partes) os que dizem: “Ai, estamos no Brasil, isso é Brasil.” Assumindo uma postura de vergonha, e de não pertencimento a esse Brasil “que não sabe fazer nada tão bem quanto a Europa”, incrível que esses seres estavam ali querendo comer da comida do Chef que justamente, em atitude bruscamente oposta, reverencia esse Brasil que eles debochavam. Outros, enfurecidos diziam: “cansei dessa fila, vou trabalhar seis meses para ir nesse restaurante e comer essa galinha em paz.”.
Um dos pré-requisitos da Gastronomia é a referência, é o arcabouço gastronômico, a enciclopédia de sabores que adquirimos ao longo da vida, para assim podermos fazer um julgamento embasado. É claro que um repertório de sabores pode ser, e na maior parte das vezes é, condicionado pelo que a crítica ressalta como o bom, o fino e o elegante. Um ótimo exemplo é o polêmico azeite de trufas. Ele era (e ainda é para alguns) considerado um ingrediente supremo da cozinha e uma vez afirmado pela crítica era aceito pelos condicionáveis apreciadores da Gastronomia. Roberta Sudbrack, uma chef renomadíssima, escreveu em seu blog (http://robertasudbrack.com.br/blog/tag/azeite-de-trufas/) que achava o azeite de trufas “falso, forte, grosseiro, indigesto” e se referia a ele como “gás poluente”, “substancia toxica”. Após o relato da chef, quase dois mil comentários foram postados por pessoas se confessando e assumindo jamais ter gostado do tal azeite alterado.
É verdade também que nossa arbitrária pré-disposição a gostar ou não gostar de alguns sabores é ativada na infância. Afirma-se que qualquer pessoa é absolutamente apta a gostar de qualquer sabor, desde que seja exposta a esse desde sua infância, sendo assim as preferências de sabores são um fator socialmente construído. E o que condiciona a essa sociedade gostar de tal sabor? Normalmente fatores ambientais, o alimento que é propício a certos climas, solos e regiões. Certamente uma cerveja em temperatura ambiente me parece muito mais apetitosa ao paladar alemão do que ao brasileiro, simplesmente por fatores climáticos, por exemplo. Entretanto, a sociedade globalizada não dispõe mais apenas dos alimentos produzidos em suas regiões, e assim, como possuem mais acesso a novos sabores, julgam mais os sabores que ainda não foram incorporados pelo global.
Como passar do regional para o global sem resquícios de verde-amarelismos? O que supera o Pau-Brasil na Literatura Modernista é justamente a Antropofagia, que segundo Benedito Nunes em Antropofagia ao alcance de todos, seria a bandeira de uma autonomia intelectual, já no contexto da Virada Cultural seria a superação do trauma de uma sociedade classista. Uma forma de transgredir os mecanismos de repressão econômica seria a “deglutição” de tais mecanismos que os reprimissem, justamente o devorar das classes exploradas pelas classes que as exploram, em uma metáfora aos ritos de guerreiros indígenas que devoravam seus inimigos, lhes arrancavam as forças e as qualidades, os digeriam até a geração do produto final da deglutição. Assim, como produto de uma “devoração sociocultural e econômica”, o pós-produto seria a satisfação e o grito (ou se quiserem, o arroto) das classes rebaixadas que estavam a espera da galinhada no minhocão. Assim, se Alex Atala é colocado como Modernista na História da Gastronomia, ressaltando a brasilidade dos ingredientes nacionais, devemos dizer a ele que: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” Já dizia Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago. Não crítico Atala, digo a ele que ele faz parte de um processo fundamental, mas não eterno.
O ocorrido, da Virada Gastronômica, em si só já era motivo de inquietações inestimáveis, mas ao pesquisar sobre o ocorrido na manhã seguinte, ainda tive que ler o depoimento do nosso queridíssimo secretaria municipal da cultura, Carlos Augusto Calil, na entrevista de Balanço da Virada: “Alta gastronomia é coisa para poucas pessoas. Não era para ser uma atração e virou uma grande atração. A imprensa deu uma superdimensão de evento de massa para um evento que não é de massa. Não dá para repetir essa incompatibilidade no ano que vem, teremos de rever." Este em outra vida estaria ao lado de Maria Antonieta, sentados, ambos em meio ao grandioso jardim de Versalhes comendo um delicioso brioche, enquanto o seu povo suplicava por pão! Mas, logo perderiam a cabeça.
giovaninijessica@gmail.com

1 comentários:

Amanda disse...

"A novidade veio dar à praia
Na qualidade rara de sereia
Metade um busto de uma deusa maia
Metade um grande rabo de baleia
A novidade era o máximo
Do paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia
Oh mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
De um lado esse carnaval
Do outro a fome total
E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia
A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando sonhos pra cada lado"

Você é porreta, Jessiquíssima!
beijos, pequena
Amanda