A Dualidade do Cinema Soviético da Década de 1960

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O Cinema soviético possui dois grandes períodos: o primeiro período foi representado por cineastas tais 
como Sergei Eisenstein (1898-1948), Vsevolod Pudovkin (1893-1953) e Dziga Vertov (1896-1954), tendo o seu auge na década de 1920. Durante 1960, o cinema soviético ficou polarizado por dois cineastas: Mikhail Kalatozov (1903-1973) e Andrei Tarkovski (1932-1986) que dirigiram, respectivamente, os filmes “Sou Cuba” (Soy Cuba/Ya Kuba, Cuba-U.R.S.S, 1964) e “Andrei Rublev” (U.R.S.S, 1966), que expessam a dualidade entre as correntes do Realismo-socialista e do Cinema poético-puro, e, ao mesmo tempo, o segundo período mais importante da história do cinema soviético.

"Sou Cuba” (1964), de Mikhail Kalatozov, é um dos filmes mais importantes da década de 1960. O filme é considerado uma das expressões máximas do Realismo-socialista, ou seja, da corrente estética marxista ortodoxa que imperava nas artes soviéticas, e que possuia uma concepção de Arte pautada na sua relação com a sociedade e, principalmente, como expressão da luta de classes. Toda a arte soviete, incluindo o Cinema, deveria ser uma expressão ideológica do regime soviete. No caso de Kalatozov, ele havia ganhado grande destaque internacional com o filme “Quando voam as cegonhas” (Letyat Zhuravli, U.R.S.S, 1957), que foi laureado com a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1958.

Deste modo, no contexto da Guerra Fria (1945-1991), pós Revolução cubana (1959) e pós “Crise dos mísseis” (1962), o filme ”Sou Cuba” de Kalatozov serviu como um elemento panfletário e antí-imperialista-capitalista, na medida em que narra a vida da população cubana antes e depois da Revolução, ou seja, da passagem de Cuba como “protetorado”, “casa de praia”, e “prostíbulo” estadunidense para a revolução socialista. Todo um grande aparato de produção, financiado pelo governo soviético, contando com o mais famoso diretor da época (Kalatozov) e com profissionais da área, foi levado para a ilha caribenha na tentativa de rodar um filme que mostrasse, a partir de quatro pequenas histórias exemplares, o processo de transformação pelo qual passou a sociedade cubana na passagem do regime ditatorial de Fulgencio Batista para a revolução de 1º de janeiro.

Por seu turno, em oposição ao filmes realistas-socialistas, ainda na década de 1960, o filme “Andre Rublev” (1966), de Andrei Tarkovski, é uma biografia não linear do homônimo grande pintor russo, que viveu entre os anos de 1360 e 1430. Um período extremamente conturbado da história da Rússia, que sofria com invasões de tribos Tártaras e estava no auge da baixa Idade-Média. Acompanhamos, ao longo de mais de três horas e meia, a trajetória de Rublev e o surgimento e desenvolvimento de seus anseios e de suas dúvidas sobre a fé (Deus), a sociedade russa e sobre a Arte. Vê-se a tentativa do Artista de compreender o mundo a sua volta, seja nos seus aspectos históricos e sociais como também artísticos e estéticos, em uma incessante busca pelo conhecimento e pela verdade.

A inovação de Tarkovski, na estrutura narrativa de “Andrei Rublev”, foi extremamente mal recebida pelo público, pela crítica e pelos políticos soviéticos. Eles alegavam que a narrativa do filme subvertia os dados históricos e a biografia do grande pintor russo. Bradavam ainda que o cineasta desconsiderou a conjuntura materialista histórica dialética e que ainda não se utilizou dos preceitos da estética “Realista-socialista”, que vinha no seu auge criativo com o cineasta Mikhail Kalatazov através do filme “Sou Cuba” (1964). Devido a este conjunto de fatores, Tarkovski foi censurado e execrado pela crítica cinematográfica soviética. No entanto, fora da Rússia, “Andrei Rublev” recebeu diversos prêmios, dentre eles o “Prêmio da Crítica” do Festival de Cannes de 1966. O filme é ainda considerado um dos mais importantes da história do cinema.

Andrei Tarkovski possui uma posição inusitada na história do cinema soviético. Sem dúvida, ele é o mais expressivo e importante cineasta da Rússia desde a tríade de grandes cineastas (Eisenstein, Pudóvkin, Vertov) da escola soviética da década de 20 do século passado. Estudado, amado e laureado fora União Soviética, no entanto, em seu país, Tarkovski foi incompreendido e extremamente censurado. As características do seu filme “Andrei Rublev” não se enquadravam nos preceitos da estética do “Realismo-socialista, então pregada como obrigatória na União Soviética, e bem representada por Mikhail Kalatozov através do filme “Sou Cuba”. O embate das concepções estéticas de Andei Tarkovski e Mikhail Kalatozov expressam não só a dualidade pelo qual passou o cinema soviético na década de 1960, mas também as duas principais polarizações da história da Arte: a primeira diz que a obra de Arte deve ter uma autonômia frente à sociedade e ao real; e a segunda afirma ser a Arte uma expressão direta do real e que esta estabelece uma relação dialética com as forças materias que regem a sociedade.

Para ver: Z (Costa-Gavras, França-Grécia, 1969)
Para ler: A forma do filme. (Sergei Eisenstein, Editora Zahar, 2002)

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