O Cinema Curdo

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A década de 1990 foi o período de ouro do Cinema produzido no oriente-médio, merecendo especial destaque as produções iranianas. Diretores como Abbas Kiarostami (1940-) e Jafar Panahi (1960-), ambos estudaram Cinema na Universidade Teerã, abriram caminho para uma gama de outros diretores da região como Mohsen Makhmalbaf (1957-) e Majid Majidi (1959-). Na onda da New wave cinematográfica pela qual passava o Cinema iraniano, o cineasta curdo Bahman Ghobadi (1969-) acabou ganahando projeção internacional junto à crítica cinematográfica com diversos prêmios em festivais conceituados, como os de Cannes (França), Chicago (EUA), Berlin (Alemanha) e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ao longo de uma década, Bahman Ghobadi se consolidou como um dos principais diretores da região através da direção dos filmes “Tempo de embebedar cavalos” (Demek jibo hespên serxweş, Irã, 2000), “Exílio no Iraque” (Gomgashtei dar Aragh, Irã, 2002) e “Tartarugas podem voar” (Kûsî Jî Dikarin Bifirin, Irã, 2004).

O Curdistão é uma região que fica entre a Turquia, Irã e Iraque, habitada pela etnia curda. No entanto, assim como os bascos que vivem na fronteira da Espanha com a França, os curdos não possuem um Estado nacional, tendo o
seu território extendido por outros países. A complexa situação geopolítica da região, historicamente, dificulta a criação do Estado curdo. Mesmo sem um Estado, a etnia curda possui uma identidade cultural rica, que sobrevive ao longo dos séculos principalmente através da música e da literatura. Atualmente, ela ganha destaque através dos filmes de Bahman Ghobadi. No caso do diretor, ele nasceu na parte iraniana do Curdistão, por isso as produções de seu filme saem como sendo do Irã, o mesmo ocorre com diretores, por exemplo, palestinos que devem colocar a origem de suas produções cinematográficas como sendo israelense, devido à falta de um Estado palestino.

O primeiro filme de destaque de Bahman Ghobadi foi “Tempo de embebedar cavalos” (2000). Na obra, o diretor apresenta a situação do cotidiano de vilas curdas que sofrem o descaso e a opressão dos Estados nacionais iraniano e, principalmente, iraquiano. A solução dos problemas das personagens, nesse caso a órfã Ayoub, que deve cuidar dos seus outros irmãos, incluso um mais novo que sofre de uma doença rara, é atravessar a fronteira do Irã para o Iraque. Para piorar a situação, Ayoub perde uma mula de um comerciante e tem que trabalhar para pagar a dívida.

No seu segundo filme de destaque, “Exílio no Iraque” (2002), o diretor novamente trabalha, a partir de uma perspectiva neo-realista, a situação dos curdos. Por seu turno, a narrativa centra-se na busca de três músicos curdos (um pai e dois filhos), do lado iraniano, por uma famosa cantora que teve que se mudar para o Iraque, anos antes durante a “revolução islâmica”. O contexto da busca desenvolve-se no decorrer do conflito entre Irã e Iraque, no final da década de 1980. No entanto, o que se destaca no filme é a música curda, ainda modal. Quando a busca chega ao final, o que é encontrado não é o que se buscava anteriormente, mas sim outros elementos essenciais para vida. Já que a cantora se esconde, por ter o rosto desfigurado por armas químicas lançadas por Saddam Hussein. Restam-lhes somente atravessar a fronteira, que atrapalha a volta para casa.

Sem dúvida, a grande obra prima de Bahman Ghobadi é o filme “Tartarugas podem voar” (2004), exibido em Araraquara na saudosa Sessão Zoom, em 2006. Novamente, a narativa do filme faz alusão à difícil situação curda, só que desta vez durante a invasão do Iraque pelo governo estadunidense, em 2003. Em um vilarejo ao norte do país, diversas crianças mutiladas vivem em um acampamento de refugiados, onde o cotidiano lúdico infantil se contrasta com os horrores de diversas guerras, sejam as anteriores, ou a que está se configurando. A situação, e a invasão, é expressa a partir da óptica das crianças, que têm o menino apelidado de “Satélite” como mentor e principal protetor. O drama centra-se, no entanto, na situação de três pequenos órfãos refugiados (uma menina e dois meninos mais novos) que chegam ao acampamento. Os três vivem em um abismo de angústia, pois o menino mais novo (3 anos) é fruto de um estupro sofrido pela menina, que fora provocado por soldados iraquianos durante o massacre de sua antiga vila.

Bahman Ghobadi é um arauto da cultura curda, em seus filmes o que se vê é a expressão de uma cultura em suas diversas modalidades, sejam elas musicais, literárias e, a grande novidade e mérito do diretor, a cinematográfica. Nota-se que, mesmo em situações trágicas, a comédia dá um tom ameno para a tragédia. Ela é auxiliada pela música, responsável pela desautomatização do cotidiano de caos. A fronteira do Iraque com o Irã, por dividir e separar o território curdo, se apresenta como um empecilho ao desenvolvimento natural do cotidiano das relações sociais, familiares, e no caso do músico Mirza, em “Exílio no Iraque”, a amorosa. Mas, o humano é demasiado humano, consegue manter a sua identidade, pois a sua pátria é a sua língua, sua música, sua cultura, seus filmes.

Para ver: Em segredo (Direção: Jasmila Zbanic, Bósnia-Herzegóvina, 2006)
Para ler: Lendo as Imagens do Cinema (Michel Marie, Editora Senac, 2009)

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