Diante da claridade da obra de René Clair, por Jean – Pierre Angremy

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Eu, particularmente, me sinto honrado por estar aqui na Biblioteca Nacional participando do Colóquio sobre René Clair ou, ao pé – da – letra, sobre o cinema. Honrado por poder contribuir na celebração do centenário de nascimento de um dos grandes autores franceses do século XX. René Clair estará no centro da discussão dos diversos assuntos que serão debatidos no decorre destes dois dias de evento. Clair foi compositor de canções, autor de uma obra literária que engloba escritos pertencentes aos gêneros lírico e épico, ressaltando o seu romance Adams que destaca o seu enorme talento como escritor. Escritor, polígrafo deveria eu dizer no bom sentido da palavra, cineasta, e durante as últimas décadas de sua existência, diretor de teatro e de ópera. Para terminar esta enumeração com um toque especial, ele foi também acadêmico: um confrade. Mas um confrade diante do qual daria para se sentir pequeno, tamanha a sua genialidade. Contudo René é o criador de filmes (sua obra majoritária) pelos quais o nome Clair tem sido renomado pelo público em geral.

Vários assuntos e diversos talentos de René Clair dos quais eu gostaria de falar, se assim o relógio permitir. Mas eu me contentarei em abordar o tema proposto. Inicialmente, faremos uma breve observação: a história do cinema é recente. Ela está ainda na escala da vida de um homem. Nesta perspectiva, a história de René Clair parece se confundir com a história do cinema, sua trajetória se enlaça com embates entre as suas posições estética, ética e política de cinema e as posições vigentes ao longo de sua carreira.

Embate estético. No decorrer da década de 20, René Clair contribuiu para ressaltar a autonomia do cinema como arte. Para ele, o cinema não é nem literatura em imagens e muito menos um teatro filmado. Embate ético. No decorrer da década de 30, René Clair pretendeu utilizar coerentemente aquelas tecnologias do espetáculo de massas junto com uma linguagem que fosse apropriada ao público das massas. É desta maneira que o projeto do primeiro filme sonoro de René Clair, SOUS LES TOITS DE PARIS, apresenta, ao cabo de um travelling descendente, (VER TERMO TÉCNICO) um cantor de rua. Provavelmente uma discreta homenagem ao primeiro filme sonorizado LE CHANTEUR DE JAZZ, que René Clair havia visto alguns meses antes em Londres. Sobretudo a imagem manifesta o princípio do cinema colorido, a canção na sua versão mais popular, aquela canção das ruas.

Embate político. Nos anos que se seguem, René Clair estará sempre presente nos movimentos de defesa e propagação da idéia do cinema como sendo um patrimônio cultural. Ele é um daqueles primeiros que irão se importar com a conservação das películas de celulóide que portam a memória desta arte. Outro aspecto de defesa política para com o cinema é que René Clair estará igualmente, muito cedo, engajado na luta pela defesa dos interesses do cinema francês frente ao cinema americano.

A respeito da obra cinematográfica de René Clair, os críticos freqüentemente têm considerado e retomado os aspectos e os conceitos de “Cinema poético” e de “Cinema sociológico”. De um lado, têm-se as variações livres sobre a porosidade dos estados de vigília e de sono que se manifestam em diferentes momentos da carreira de René Clair em filmes como PARIS QUI DORT, LE VOYGE IMAGINAIRE, e sobre tudo LES BELES – DE NUIT. Por outro lado, tem-se o projeto de uma descrição minuciosa dos habitantes dos bairros e das periferias através de filmes como: SOUS LES TOITS DE PARIS, LE SILENCE EST D’OR e À NOUS LA LIBERTÉ.

Eu, de minha parte, gostaria de colocar uma questão sobre o tema principal da filmografia de René Clair. Uma reflexão minha quase que obsessiva sobre o tempo. Em PARIS QUI DORT, descobre-se, através da imagem do professor Ixe, a possibilidade de reter o tempo ou de acelerá-lo. Já TOUT L’OR DU MONDE é colocado em cena uma cidade onde os moradores não envelhecem mais. Em C’EST ARRIVÉ DEMAIN um homem é levado a conhecer, cada dia, os eventos do dia seguinte. Sem esquecer de LA BEAUTÉ DU DIABLE, filme que revisita a figura do Dr. Fausto. Todos estes elementos do trabalho de Clair fazem renascer a tão melancólica discussão “saturniana” sobre o tempo.

Gostaria de escolher, a partir desta reflexão sobre o tempo, dois filmes em particular da filmografia de René Clair: seu primeiro PARIS QUI DORT e um dos seus últimos sucessos LES GRANDES MANOEUVRES. Estes dois filmes representam, ao meu ver, uma parte daquele gênero melancólico presente em toda a obra de René Clair e que se manifesta por constantes retornos ao passado. PARIS QUI DORT é o filme de uma pós – catástrofe: numa manhã, o vigia da Torre Eiffel descobre, justamente no seu turno, uma Paris em estado de catalepsia. As ruas estão vazias, sim, pois elas foram esvaziadas pela grande Ceifadora. LES GRANDES MANOEUVRES é, ao contrário, um filme de pré – catástrofe: todo o drama se concentra na vigília da Primeira Guerra Mundial e na relação entre Armand (Gerard Philipe) e Marie – Louise (Michèle Morgan).

De um filme a outro, do pré e do pós, René Clair dedicou a uma vida ao cinema para remontar o tempo e as origens do embate. Pois o embate, jamais filmado, teria sido a guerra. No dia do armistício Clair completou seus vinte anos. Anos estes bem marcantes que se festejaram sobre o despojo de tantos amigos desaparecidos como Max, com o qual ele identificara seus vinte anos roubados. Este passado que não passa, este ponto obscuro na obra de René Clair é aquele tempo morto, aquele tempo da morte que ele não quis jamais colocar em cena. Sem dúvida, poder-se-ia partir desta visão e reconsiderar toda a filmografia de René Clair. Se todas estas loucuras que populam as ruas, todas aquelas ruas que preenchem os filmes, estariam colocadas à claridade de todas aquelas loucuras ocultadas, de todas aquelas ruas obscuras? É apenas uma hipótese, justamente uma idéia. Uma idéia, sem dúvida, de um poeta que reservava ao cinema um papel “traumatúrgico”, bem no espírito da maravilhosa claridade.


Traduzido do francês e adaptado para o português por Breno Rodrigues de Paula.
Araraquara 27 de abril de 2007

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