Lombriga de Bode

0
Algumas poucas horas depois, Marcelino haveria de se arrepender por não ter sido incisivo contra a ordem de sua professora. Várias crianças, colegas seus de classe, gritavam “Lombriga de bode, lombriga de bode!”, enquanto pulavam e rodavam ao seu redor, batendo-lhe as mãos sobre sua cabeça. Quanto mais as crianças rodavam e batiam as mãos na cabeça de Marcelino, mais ele ficava furioso. Recordava-se daquela maldita aula.

A professora chegara e, em seguida, jogou um enorme livro sobre a mesa, fazendo um barulho atuador. O livro era grande, um grosso exemplar de aproximadamente 600 páginas. Ela havia dito que o livro era do maior escrito de língua portuguesa. Mas antes da professora nomeá-lo, Marcelino pensou em meio a tudo o que haveriam de fazer com este livro. Um nome veio aos seus ouvidos, era um nome engraçado. Ele sabia que logo deveria copiar várias frases, nas quais ele não compreenderia. Falavam-no que copiar é preciso.

Copiar não era o que Marcelino mais detestava. Odiava o cheiro do giz. Sempre sentara no fundo da classe. Neste dia, a professora o colocou na primeira carteira, rente ao quadro negro. Ele não compreendeu o porquê da mudança. Estava mais preocupado com o pó produzido pelo giz no interminável eterno retorno das mãos da professora sobre o quadro negro. Este movimento cíclico fazia com que, sempre no ápice destrutivo, Marcelino ficasse com as mãos contra o nariz.

Ao ver Marcelino com as mãos contra a face, a professora se deteve a este fato com um ar de furiosa. Pensava que o menino fazia um gesto de desleixo para com sua aula ou, para a possibilidade que mais a apavorou, que ria do seu novo corte de cabelo. Por isso tampava a face com as mãos, para esconder o riso.

Com os olhos ardendo em ódio e com sede de vingança, a professora apagou tudo o que havia escrito no quadro-negro. Pôs-se a folhear o livro, virando-se novamente rente ao quadro. Escreveu uma estrofe de um poema qualquer. Em seguida, virou-se e perguntou a Marcelino qual era o esquema de rima. A resposta veio em tom fanhoso: “AB AB”. Não satisfeita com o fato dele ainda continuar com as mãos sobre a face, a professora pediu-lhe que fizesse a divisão rítmica no quadro-negro, separando-a por traços.

Marcelino apavorou-se. Odiava o pó de giz. Odiava ainda mais o contato com o giz. O pó fica grudado nas mãos, o que tornaria inviável sua única defesa: colocá-las sobre a face. Apavorado disse que eram decassílabos. A resposta oral não agradou a professora, que o pegou pelo braço esquerdo e colocou o giz em sua mão direita, enquanto o arrastava rente ao quadro-negro. O menino num movimento mecânico, próprio do ato de espirrar, virou-se para o seu lado direito e um pouco para trás, espirrando alto e forte. Um verme saiu de seu nariz ao encontro da blusa da professora.

Após a aula, várias crianças acompanharam Marcelino até o portão de sua casa, entoando gritos de “Lombriga de bode, lombriga de bode!”. Não seria isso que o faria dormir com os olhos lacrimejantes e com uma forte dor na região dorsal. Sua mãe encontrava-se varrendo a calçada e viu toda a cena. Ouviu o apelido que o filho ganhara. Ela sabia o que fazer.

Era noite, quando Dona Dé disse ao próprio filho que iria fazer uma “simpatia” para resolver os problemas de vermes dele. Bastava beber um chá de erva-de-santa-maria com sementes de mamão em noite de lua minguante, enquanto rezava para a santa. No último gole de chá, Apolinário chegou com o licor de cacau para que seu filho tomasse duas colheres. Ele vira que o filho tomava o amargo chá, ficou com pena. Na sua infância a avó de Marcelino, o fazia tomar o mesmo chá e rezar até o amanhecer, em estado de jejum. Ele acreditava em métodos científicos. Deu duas colheres de licor de cacau para o filho.

Na cama, Marcelino relembrou os acontecimentos do dia: a aula, a professora, o espirro, as crianças gritando “Lombriga de bode, lombriga de bode!”, o tratamento da verminose. Estava com dores do dorso e com gosto horrível na boca. Uma mistura de amargo com azedo. Seus olhos começaram a lacrimejar. Cobriu a cabeça com o cobertor. Soluçando, dormiu. Eram seis horas em ponto, quando Dona Dé chegou ao quarto do filho para acordá-lo. A aula começaria às sete horas. Encontrou o filho com a boca transbordando de vermes. Estava morto.

Araraquara, 17 de janeiro de 2008.