O Mito de Orfeu no Cinema

0
No princípio era o Verbo, depois o Logos, em seguida, o Mito. Toda e qualquer cultura possui os seus mitos de criação, de formação e de visão de mundo. O Mito é um elemento crucial e fundamental dentro de qualquer cultura e, no caso da cultura grega, ele tem um papel central de importância e de destaque que ecoa em outras expressões artísticas, como a Pintura, a Música, a Literatura e, também, no Cinema. Uma das atualizações de narrativas míticas gregas mais interessantes é o filme “Orfeu” (Orphée, 1950, França), dirigido pelo romancista, ator, poeta, dramaturgo e cineasta francês Jean Cocteau, que recria, cinematograficamente, o mito de Orfeu, dando-lhe uma roupagem moderna e surrealista. 

A linguagem e o Mito são parentes próximos, pois ambos buscam apreender, compreender e representar o mundo real. Mas, podemos defini-lo como sendo uma narrativa simbólica que se relaciona a uma dada cultura, explicando a realidade, os fenômenos naturais, as origens do mundo e do homem através de narrativas. O interessante é que tanto a Filosofia quanto a Literatura nascem do Mito, tendo a primeira deixado de lado o caráter narrativo em nome de uma pretensa objetividade discursiva, enquanto a segunda manteve-se fiel a sua matriz narrativa. Mas, ambos voltam, com frequência, a se entrelaçar. 

Dentro da grande quantidade de mitos da cultura grega, um dos mais interessantes é o Mito de Orfeu. Na mitologia grega, Orfeu era poeta (tanto que o nome atribuído ao gênero lírico na Literatura remete a sua lira) e médico, filho da musa Calíope (musa da poesia épica) e de Apolo ou Eagro, rei da Trácia. Ele foi um dos integrantes dos Argonautas, que liderados por Jasão e contando com a ajuda de Hércules, viajaram em busca do Velocíno de Ouro. O que se destaca no Mito de Orfeu é o seu amor por Eurídice, que após ser picada por uma serpente falece, deixando seu amado desconsolado. Orfeu ficou transtornado de tristeza. Levando sua lira, foi até o Mundo dos Mortos, para tentar trazer Eurídice de volta. 

A canção pungente e emocionada de sua lira convenceu o barqueiro Caronte a levá-lo vivo pelo rio Estige. A canção da lira adormeceu Cérbero, o cão de três cabeças que vigiava os portões. Finalmente Orfeu chegou ao trono de Hades. O rei dos mortos ficou irritado ao ver que um vivo tinha entrado em seu domínio, mas a agonia na música de Orfeu o comoveu, chorou lágrimas de ferro. Sua esposa, Perséfone, implorou-lhe que atendesse ao pedido. Assim, Hades atendeu seu desejo: Eurídice poderia voltar com Orfeu ao mundo dos vivos. Mas com uma única condição: que ele não olhasse para Eurídice até que ela, outra vez, estivesse à luz do sol. 

Na narrativa do filme “Orfeu”, Jean Cocteau se utiliza do mito de Orfeu, mas modifica alguns elementos narrativos. O arquétipo do mito da relação entre Orfeu e Eurídice é mantido, só que ele acrescenta uma nova e importante personagem ao mito: a Morte, que se apaixona pelo poeta. Orfeu (Jean Marais) é um poeta moderno que vive em Paris e é casado com Eurídice (Marie Déa), estando no Café dos Poetas, ele vê a sua rotina quebrada com o aparecimento de uma estranha mulher, conhecida como “Princesa” (María Casares). A Princesa, que nada mais é do que a Morte, passa a se relacionar com Orfeu em várias esferas, seja da realidade ou do sonho, quebrando o “código de ética do mundo inferior”: de não se relacionar com os vivos. Obrigada a dar explicações perante o tribunal burocrático, ela volta ao mundo inferior. 

A releitura do mito, feita por Jean Cocteau, diz respeito à figura da Morte, pois Orfeu desce ao mundo dos mortos, através de espelhos, que são portas que ligam os dois mundos; não para buscar Eurídice, como no mito, mas atrás da Morte, sua também amada. De volta ao mundo dos vivos, Orfeu não pode olhar para a sua mulher, caso olhe, ela morrerá; no entanto, ele é enganado por um espelho que reflete a imagem de Eurídice, vendo-a através do espelho, ela morre. O jogo com espelhos é um recurso muito utilizado por Cocteau ao longo do filme, o que cria e amplia alguns aspectos surreais da narrativa, além do recurso técnico da câmera reversa, com a projeção das imagens de trás para frente, o que no filme cria cenas não naturalistas.

O homem desceu ao mundo inferior, seja dos mortos na mitologia clássica ou ao inferno na cristã, para buscar algo valioso: como o caminho de volta para Ítaca; o encontro de filho com o pai, e a glória do Lácio; ou ainda no meio do caminho de nossa vida, buscou-se algo; como também a descida de Orfeu, que buscava o seu bem mais valioso: Eurídice. Sempre a descida é algo grandioso, heroico, para poucos, pois não são todos que conseguem descer ao mundo dos mortos e voltar com vida. No filme “Orfeu”, de Jean Cocteau, há a releitura do mito de Orfeu, que ao ser trabalhado pelo Cinema, ganha outra dimensão, mais moderna, típica dos nossos tempos, no qual, infelizmente, a Morte é um fim. Ainda sobre o Mito de Orfeu, ele foi base da narrativa de outros filmes, como “Orfeu Negro” (Orphée Noir, 1959, França) dirigido por Marcel Camus, baseado na peça teatral “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes; e também “Orfeu” (1999, Brasil) dirigido por Cacá Diegues, mas algo mais carnavalesco.

Da Sétima Arte à Linguagem Cinematográfica

0

No início, o homem não percebia a realidade, era apenas um animal irracional movido por estímulos e guiado pelos seus instintos. Veio a linguagem verbal, um sistema semiótico de significação, com ela a compreensão e a apreensão do real. Mas isto não era o bastante, o homem vez Arte, inicialmente nas paredes das cavernas, em pequenas narrativas de caráter mítico de explicação; viu que era bom. Viver não era o bastante, era preciso recriar e criar novas realidades: surge a vontade e a necessidade artística, o seu consequente desenvolvimento e multiplicação. As Artes são, comumente, divididas em: Artes espaciais e Artes temporais. Por seu turno, segundo uma perspectiva estruturalista, elas seriam linguagens. Assim, a Literatura, a Música, a Pintura e o Cinema são linguagens artísticas. 

Dentro da divisão clássica das Artes, há as Artes espaciais e as Artes temporais. As espaciais são aquelas que se desenvolvem no espaço, seja bidimensional, como a Pintura, ou as tridimensionais como a Escultura e a Arquitetura. Não implicam em uma movimentação temporal, possuindo uma posição de atemporalidade, na medida em que, o tempo, quando trabalhado direta ou indiretamente, é estático. As artes temporais são aquelas que possuem o tempo como sua matéria principal, podendo trabalhar elementos como frequência, duração, amplitude, característicos da Música e da Literatura, que são artes temporais por excelência. Nesta concepção, há ainda as Artes modernas, que são consideradas “Artes mistas” por serem a junção dos dois outros grupos, como o Cinema e a História em Quadrinhos, por exemplo. 

Na grande efervescência epistemológica da primeira metade do século XX, diversas teorias, tais como a fenomenologia, o existencialismo e a arquetipologia, surgiram em um contexto que propiciou a reorganização e, até mesmo, a criação de novas sistematizações a partir de um ramo do conhecimento. Com as contribuições do “Curso de Linguística Geral”, de Ferdinand Saussure, a Lingüística passou a ser considerada uma ciência de dados a posteriori. Surge, então, o estruturalismo lingüístico, que veio a influenciar diversas áreas do conhecimento, como a pedagogia com Jean Piaget, a antropologia com Claude Lévi-Strauss, a filosofia com Martin Heidegger, e também a Filosofia da Arte, que passou a estudar as manifestações artísticas como “sistema estrutural de significação” ou linguagens artísticas. 

No contexto linguístico, o Cinema é uma linguagem, por possuir elementos estruturais que produzem significado, podendo ser segmentado, dos elementos mais simples aos mais complexos, que no caso da linguagem cinematográfica vão da unidade mínima, o plano, a mais complexa, o filme. Assim, o filme é formado pela unidade mínima do plano, filmado de um determinado ângulo, que se associa com outros planos para formar sequências, que juntas formam cenas, que associadas constituem o filme. Há ainda recursos técnicos como a movimentação de câmera em zoom-in e zoom-out, além das panorâmicas: horizontais e verticais. 

Aos analisarmos os elementos estruturais da linguagem cinematográfica, tem-se a descrição do sistema e como ele pode produzir significado, como a escolha do ângulo: que pode ser feito a partir de uma câmera alta ou baixa, no qual no filme se eu escolher a primeira para a composição de um plano, a personagem será filmada de cima para baixo, o que daria o significado de inferioridade, a segunda funciona de forma oposta sugerindo uma superioridade, tanto que nos vídeos de propaganda política sempre é utilizada a câmera baixa, filmando o político de baixo para cima. 

Em relação ao plano, que é a distância das personagens e dos objetos da câmera, tem-se o Plano geral no qual se mostra uma paisagem ou um cenário completo; o Plano de conjunto onde há um grupo de personagens; Plano médio: tem-se um trecho de um ambiente, em geral com pelo menos um personagem em quadro; no Plano americano mostra-se um único personagem enquadrado não de corpo inteiro (da cabeça até a cintura, ou até o joelho); já no Primeiro plano há um único personagem em enquadramento mais fechado que o Plano americano (em muitas situações, o Primeiro plano é considerado sinônimo de close-up); no Plano próximo, grande plano ou close-up (ou apenas close) filma-se o rosto de um personagem; por fim, no Plano detalhe mostra-se uma parte do corpo de um personagem ou apenas um objeto. 
Assim, dependendo da terminologia adotada por teóricos, críticos e cineastas, há a filiação a uma concepção de Arte, da clássica, que divide as Artes em Artes espaciais e Artes temporais, numerando-as em: a 1ª Música; 2ª Dança; 3ª Pintura; 4ª Escultura; 5ª Teatro; 6ª Literatura e a 7ª, o Cinema. Já na perspectiva estruturalista, as Artes são linguagens que possuem um sistema estrutural de produção de significado, sendo linguagens. Portanto, se em algum texto estiver escrito Sétima Arte ou Linguagem cinematográfica sabe-se a postura e o posicionamento do autor perante o Cinema.