Gimme Danger: a história dos The Stooges segundo Jim Jarmusch

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Kurt Cobain dizia ser Raw Power (1973) o melhor disco de todos os tempos. Já a capa do álbum The Stooges (1969) foi parodiada por bandas como Fugees, Belle & Sebastian e por Di Melo. The Stooges, é ao lado do grupo MC5, o responsável direto por apontar os caminhos que o estilo musical punk seguiria uma década depois da formação da banda em 1967, na cidade de Detroit, nos Estados Unidos. O documentário Gimme Danger (2016) foi a proposta do cineasta Jim Jarmusch para explorar a história de Iggy Pop e The Stooges nas suas influências, gênese e legado. 

O documentário começa com um prólogo sobre Iggy Pop mostrando o seu início de carreira musical como o baterista dos grupos The Iguanas e The Prime Movers, até que em 1967 decide criar o The Stooges junto com os irmãos Ron e Scott Asheton. Ouve-se os versos “Gimme danger, little stranger/And i'll feel you bleed/Gimme danger, little stranger/And i'll feel your disease”. Nos próximos 108 minutos, Jim e Iggy mostram para o espectador através de imagens, fotos da época, depoimentos a importância do The Stooges para a música dos anos seguinte. 

Jim Jarmusch é um dos expoentes do grupo de cineastas do “cinema independente” estadunidense surgido na década de 1980. Dirigiu filmes como Estranhos no paraíso (1984), Dead Man (1995), Sobre café e cigarros (2003), com a participação de Iggy Pop, Flores partidas (2005), Amantes Eternos (2014) e Paterson (2016). Gimme Danger foi a primeira tentativa do diretor de trabalhar o gênero documental. 

O diretor foca a narrativa nos anos de 1969 a 1973, durante o período de gravação dos três primeiros discos do The Stooges. The Stooges (1969) foi produzido por John Cale (músico da banda The Velvet Underground), com destaque para as músicas I wanna be your dog e No fun, caracterizado por uma sonoridade mais simples, distorcida, experimentalista. No segundo disco, a banda o grava em Los Angeles, eis que surge Fun House (1970) com as canções T.V eye, Dirt e Fun House. Uma produção marcada por experimentações e por uma nova sonoridade influenciada pelo blues, jazz, adaptada àquilo que será conhecido como “som punk”. 

Em 1972, David Bowie deseja conhecer Iggy Pop, do encontro surge o convite para a ida a Londres, onde o músico inglês, no auge do seu prestigio com o disco The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972), produz o álbum Raw Power (1973). Bowie estava produzindo ao mesmo tempo a obra-prima de Lou Reed: Transformer (1972). Do disco Raw Power surgi a canção título do documentário  Gimme Danger, com destaque ainda para as composições Search and Destroy e Penetration

Jarmusch elenca as influências do The Stooges a partir de nomes como The Velvet Underground, Mother of Invention e MC5. No entanto, o destaque fica por conta do legado, em como os músicos de Detroit criaram uma sonoridade, um estilo, uma musicalidade proto-punk com canções com versos simples, com temas grotescos, e riffs poderosos, com uma guitarra repleta de distorção. Bandas como Sex Pistols, Damed, Ramones, Sonic Youth, The Cramps, White Stripes foram influenciadas pelas composições de Iggy e dos irmãos Asheton. 

Gimme Danger termina com a história do convite do festival de Coachela para a reunião de Iggy Pop e os músicos do The Stooges para uma apresentação em 2003, e a inclusão do grupo no Hall da Fama do rock em uma cerimônia em 2010. Jarmusch faz um documentário simples, sem inovações, destacando a música, as estórias de Iggy Pop e dos demais integrantes do The Stooges, além de histórias relacionadas ao campo da música pop, principalmente punk, nas décadas de 1960 e 1970, com os músicos de Detroit como agentes. 

There's nothing in my dreams
 Just some ugly memories 
Kiss me like the ocean breeze

Trailer do filme

As visões da realidade de Shirley

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Eu sou ela, você é ela, Shirley é a expressão da solidão moderna, em uma sociedade que possibilita os indivíduos estarem tão perto, tão longe. No filme “Shirley: visões da realidade” (2013), o diretor austríaco Gustav Deutsch cria uma obra que transpõe a estética do pintor estadunidense Edward Hopper para o cinema. Temas como relacionamento, a melancolia, o tempo, a solidão são trabalhados a partir de uma estreita relação entre pintura e cinema. 
Shirley entra no vagão do trem, há apenas ela e mais três passageiros: dois homens e uma mulher. Escolhe uma poltrona, se senta, abre o livro de Emily Dickinson com o desenho de um quadro de Edward Hopper na capa. Todos estão solitários, viajam sozinhos, não se interagem, o espaço é apenas um lugar para se estar, transitório, passageiro para o corpo, para as relações, para o superficial contato. 

O filme de Gustav Deutsch narra a trajetória de Shirley através de treze quadros, no sentido específico da pintura, sobre os dias e noites do dia 28 de agosto de 1931 passando por anos importantes até 1963, com os principais acontecimentos do período, como a grande depressão nos Estados Unidos, o início da Segunda Guerra Mundial (1939), a Revolução Cubana (1959), entre outros. 

A proposta do diretor é estreitar a relação entre pintura e cinema, é transpor, traduzir os quadros de Edward Hopper para uma linguagem cinematográfica, mas que privilegie a referência, a base pictórica na fotografia do filme. O pintor estadunidense se destacou na pintura, na arte do século XX, por retratar cenas da sociedade moderna, com os seus locais grandes com o homem estático, confinado em espaços pequenos. Em seus quadros há uma paisagem urbana desolada, deserta, melancólica. 

O início da percepção das transformações da sociedade moderna ocorreu com um lírico no auge do capitalismo. O poeta francês Charles Baudelaire foi o primeiro a retratar, em seus poemas, em seus quadros parisienses, a vida, os temas de uma nova sociedade que se configurava. As “flores do mal”, que germinam no espaço urbano, criam sentimentos de tédio, a revolta, a morte, a necessidade da embriaguez pelo vinho. O homem está sozinho em meio à multidão, caminha, flana pelo espaço lotado urbano. Percebe a transitoriedade de passantes, acaricia gatos, admira a beleza transitória. 

Em “Shirley: visões da realidade”, assim como nos quadros de Hopper, há uma dialética entre espaço interior versus espaço exterior. O corpo é a referência do conflito com o espaço, assim como a mente, os pensamentos são o exemplo da dissociação entre o eu e o mundo. Estar no mundo, não é necessariamente fazer parte dele, Shirley está solitária em um quarto, olha para fora, contempla algo que não podemos ver enquanto espectadores, mas que sabemos o que é, enquanto humanos, seres ora menores do que o mundo, ora maiores, de forma que o sentimento no mundo é a melancolia, a solitária existência. 

No filme “Acossado” (1960), do diretor francês Jean-Luc Godard, a personagem Patrícia Franchini (Jean Seberg) pergunta para o seu companheiro, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), quem seria mais bonita, ela ou pintura de um quadro pendurado na parede? A relação entre pintura e cinema é uma relação próxima entre imagem e percepção. O crítico André Bazin, no seu estudo sobre a ontologia da imagem, destaca que a representação através da imagem é a própria luta contra a morte, a preservação do corpo. 

No filme “Shirley”, pintura e cinema se relacionam de forma estreita, direta, o quadro cinematográfico busca reproduzir o quadro da pintura nas texturas, nas cores, na luz, na representação, no significado. A mesma proposta ocorre em filmes como “Silvestre” (1981) do português João César Monteiro; “A Inglesa e o Duque” (2001) do francês Eric Rohmer; e a sequência “Corvos” do filme “Sonhos” (1990) do diretor japonês Akira Kurosawa. 

Por fim, o concreto da vida moderna é a solidão, o espaço exterior é a cidade, servida apenas para se estar. O ser contempla, divaga, volta-se para devaneios da realidade, o presente é tão grande, não pode se afastar, resta-lhe apenas estar, sentir a melancolia. Shirley tenta se afastar um pouco, está só na noite, no quarto, pode ser. Os problemas do ser na solitária modernidade são representados pelos quadros de Baudelaire, de Hopper e de Deutsch.

Trailer do filme