O Cisne Branco e Negro

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Dentro da mitologia clássica grega há as Musas, figuras femininas responsáveis pela inspiração artística, sendo ao todo nove, cada uma com a capacidade de inspirar uma Arte. A Musa da Dança é conhecida como Terpsícore, como destaca o poeta grego Hesíodo na sua ‘Teogonia’. O cineasta estadunidense Darren Aronofsky (1969-) possui uma carreira cinematográfica que coloca as musas sob assédio da indústria cultural com filmes como ‘Noé’ (EUA, 2014), ‘O Lutador’ (EUA, 2008), ‘Fonte da Vida’ (EUA, 2006); mas também coloca em destaque Terpsícore com o filme ‘Cisne Negro’ (Black Swan, EUA, 2010). 

Cisne Negro’ narra a história de Nina Sayers (Natalie Portman), uma bailarina de uma companhia nova-iorquina de balé que fará uma montagem do ‘Lago dos Cisnes’ (1877), do compositor russo Tchaikovsky (1840-1893). Para receber o papel de rainha dos cisnes, Nina terá que interpretar ambos os cisnes: o Cisne Branco e o Cisne Negro, algo difícil, pois representam uma dualidade arquetipal humana entre bem e mal, o primeiro com inocência, graça, pureza e leveza; enquanto o segundo com malícia, sexualidade e robustez. 

Com a tentativa de incorporar o Cisne Negro, Nina cria um conflito psicológico, que questiona o estatuto do real e projeta o seu duplo, expressando uma dualidade e os seus conflitos internos. O que se tem é o conflito psíquico de Nina que cria um reconhecimento em relação à personagem Lily e uma projeção em relação a uma outra personalidade, mais livre, também representada pelo Cisne Negro. Para expressar a questão do duplo, Aronofsky coloca em diversas cenas jogos com espelhos, sendo a forma mais arcaica de duplicação do ser, o que também gera um duplo movimento em Nina de reconhecimento e estranhamento, pois se coloca através dos espelhos uma fronteira entre o real e o insólito, quebrada com frequência. 

O tema do duplo faz parte de uma tradição mitológica e literária, sendo o arquétipo básico da dualidade humana representada pela questão ética do bem e do mal, materializada em personagens dentro da mitologia judaica-cristã como Caim e Abel, Esaú e Jacó, ou mesmo na mitologia grega com a figura do sósia na narrativa de Anfitrião e Alcmena, ou mesmo no mito de Narciso. Na literatura, se expressa no conto ‘William Wilson’, do escritor estadunidense Edgar Allan Poe, ou mesmo no romance ‘O Homem Duplicado’ do escritor português José Saramago; e no conto ‘O Sósia’ do escritor russo Fiódor Dostoiévski

No cinema, o tema do duplo segue uma tradição de projeção de conflitos internos das personagens, como nos filmes ‘O Clube da Luta’ (Fight Club, EUA, 1999), de David Fincher; ou mesmo em ‘A Dupla Vida de Verônica’ (Polônia, 1991), de Krzysztof Kieslowski; como também o filme alemão ‘O Estudante de Praga’ (Student von Prag, 1913), de Paul Wegener; ou ainda em ‘Partner’ (França, 1968) de Bernardo Bertolucci. O filme ‘Cisne Negro’ segue a tradição do duplo, mas sem maniqueísmo, já que o lado obscuro de Nina ficou reprimido pela sua mãe, profissão, sendo ele a libertação. 

Para se libertar, Nina tem que deixar aquilo que a reprime sexualmente, artisticamente e socialmente. Ela como bailarina sempre buscou a perfeição, o que a credencia como interprete perfeita do Cisne Branco. No entanto, quanto maior for a repressão dos impulsos psíquicos humanos, mais degradantes são suas formas de libertação, como também demonstrado no filme ‘A Professora de Piano’ (La Pianiste, França, 2002) do diretor austríaco Michael Haneke. Nina se autoflagela, se coça, se corta, a dor é constante, criando uma estética da dor, pois tudo aquilo que tem uma aparência bela no seu estágio final, tem um processo doloroso e uma essência destruidora. 

A liberdade de Nina segue um percurso, sendo guiada por Thomas (Vincent Cassel), o diretor da companhia e um provocador, e pela personagem Lily que se mostra como antagonista, já que ela possui todas as características que são reprimidas por Nina. Lily é a guia, mostra a Nina a liberdade e se projeta como desejo de assimilação, principalmente sexual. A transformação de Nina fica clara nas suas roupas e na decoração do seu quarto, antes ela usavas apenas roupas claras e possuía bichinhos de pelúcia, depois suas roupas passam a possuir tons de escuro, o que expressa a sua transformação. 

Certa noite, ao fugir da sua realidade opressora, Nina se metamorfoseia em um cisne negro. Há um estado de ecstase, pois a liberdade é um estado de graça, a beleza, a libertação, a revolta, contra a mãe, contra uma personalidade opressora. No balé, a dança, a luz, o ritmo, os passos, o plié, a graça, a delicadeza são uma ode à Terpsícore. Com o filme ‘Cisne Negro’, o cineasta Darren Aronofsky protege as Musas do assédio com uma obra de qualidade dentro da indústria cultural.


Trailer do filme 'Cisne Negro':

A ‘Melancolia’ de Lars von Trier

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O diretor dinamarquês Lars von Trier (1956-) é o principal cineasta da atualidade, junto com o austríaco Michael Haneke (1942-). A filmografia do cineasta dinamarquês é uma busca constante de experimentação da linguagem cinematográfica e o incessante anseio da expressão artística individual através do cinema, seja nos tempos do movimento Dogma 95, na década de 1990, ou ainda com o seu filme ‘Melancolia’ (Melancholia, Dinamarca, 2011). Com ele, Lars conseguiu o status de persona non grata no Festival de Cinema de Cannes, mas fez um filme genial, dialogando com a psicologia, pintura e com a música. 

Melancolia é um estado, uma relação conflituosa com o meio, gerado por um antagonismo. Ela é um sentimento psicossocial, já que o estado psicológico influencia as relações sociais e vice-versa. O termo e o conceito de melancolia foram cunhados e desenvolvidos pelos gregos, sendo discutidos pelo “pai da medicina” Hipócrates no século V a.C. O indivíduo melancólico perde o entusiasmo e a vontade de se relacionar socialmente, tornando-se um ser socialmente inativo. 

No filme ‘Melancolia’, tem-se a melancólica história de Justine (Kirsten Dunst), seu casamento e a relação familiar com mãe, pai, o cunhado e irmã (Charlotte Gainsbourg). Ela oscila entre pequenos e curtos momentos de euforia com estados constantes de melancolia. Vivendo em um mundo de aparências e obrigações, seja para criar um slogan para uma campanha publicitária, Justine ainda tem que lidar com as suas emoções, conseguindo tranquilidade apenas em contato com a água, seja na banheira ou, como coloca Lars (em cenas metafóricas) no cartaz, em um riacho. Mas, o planeta Melancolia está em rota de colisão com a Terra, o que gerará a destruição do planeta. 

O filme se inicia com um prelúdio de aproximadamente dez minutos com a introdução do tema da obra com cenas em câmera lenta, mostrando a colisão do planeta Melancolia, que estava escondido atrás do sol, com o planeta Terra. Justine caminha, um cavalo cai, o espaço sideral é mostrado. Os planos são belos, plasticamente perfeitos, com cores que dialogam com a obra do pintor austríaco Gustav Klimt (1862-1918), o amarelo se contrasta com o verde. Há ainda um diálogo com o filme ‘2001: uma odisseia no espaço’ (1968) do diretor Stanley Kubrick (1928-1999) ou ainda com o seu contraponto soviético ‘Solaris’ (1972), do diretor Andrei Tarkovski (1932-1986). 

Em ‘2001: uma odisséia no espaço’, há a utilização da música clássica no “prólogo dos macacos” com a música ‘Assim falou Zaratustra’, de Richard Strauss, baseada na obra homônima do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, mostrando a evolução humana de um estágio primitivo para um mais evoluído: do osso à estação espacial. Em ‘Melancolia’, o uso da ópera ‘Tristão e Isolda’, do compositor alemão Richard Wagner, cria um ritmo lento e apresenta o tom do filme: o trágico. O fim é inevitável, Melancolia está em rota de colisão, mas não há uma histeria coletiva, há cenas belas, calmas, como a música de Wagner. 

Lars von Trier é um cineasta inquieto, sempre busca utilizar o cinema como uma forma de expressão artística tendo a linguagem cinematográfica como elemento e o filme como produto. Em ‘Melancolia’, ele funde gêneros cinematográficos, em específico a ficção científica com o drama, pois, no filme, o planeta Melancolia está preste a colidir com a Terra. No entanto, o drama particular e a melancolia das personagens são o mais importante. O diretor também funde gêneros em ‘Dançando no escuro’ (2000), mais especificamente o musical com o drama, neste caso um drama social devido às contradições do “american way of life”. 
O filme ‘Melancolia’ é dividido em duas partes: na primeira “Justine” tem-se a melancolia do ser humano e as relações sociais em espaços fechados, no caso em um casamento, o que evidencia os conflitos familiares e sociais pré-existentes. A primeira parte se assemelha a proposta do filme ‘Festa em família’ (1998) do também diretor dinamarquês e membro do Dogma 95 Thomas Vinterberg, no qual os conflitos familiares são expostos em um jantar familiar. Na segunda parte “Claire”, a melancolia é causada pela iminência da colisão do planeta Melancolia com a Terra. Claire é a irmã de Justine. 

Os filmes de Lars von Trier são antes de tudo teses e expressões artísticas de seu criador. Tese porque uma ideia e um ponto de vista são defendidos e obras de arte são feitas. Em ‘Os Idiotas’ (1998), Trier busca demonstrar como se livrar da sociedade capitalista e dos dogmas burgueses com “atos idiotas”. Já em ‘Dançando no escuro’ (2000) e ‘Dogville’ (2003) busca demonstrar e analisar as contradições do pensamento psicossocial estadunidense. Em “Melancolia”, o diretor coloca a discussão da melancolia provocada por estados internos ou por forças externas. O que se tem é a oposição de um estado momentâneo de alegria com a essência melancólica do ser, como também demonstrada pela poesia do poeta francês Charles Baudelaire nos seus quadros parisienses, que deram início à modernidade artística no auge do capitalismo.

Trailer do filme 'Melancolia'