A Última Sessão

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Caminhando pelo interior da Espanha montado em seu cavalo, chamado Rocinante, e com a companhia do fiel escudeiro, Sancho; o cavaleiro Dom Quixote de la Mancha se depara com inimigos grandiosos, imponentes. O cavaleiro da triste figura para, olha, diz que há gigantes a frente que devem ser confrontados. O escudeiro retruca, alega que são apenas moinhos de ventos. O Cinema é, enquanto Arte, quixotesco; já como produto, é sanchista. A Sessão Zoom é bravamente nos seus cinquenta anos mantida por quixotes.

Em algum lugar, cujo nome é fácil de se lembrar, entre São Carlos e Ribeirão Preto, surgiu a Sessão Zoom, um projeto de exibição cinematográfica que desde 1978 exibe filmes considerados expressões artísticas, caminhantes fora do circuito comercial. Ela percorreu, inicialmente, diversos espaços na cidade: Cine Capri, Cine Veneza, algumas poucas sessões na Casa da Cultura (na sala Jean-Paul Sartre) e na Biblioteca Municipal, tendo o campus da Unesp como base. Depois, se descentralizou, caminhou por outros espaços, mais periféricos, abertos e públicos. 

Exibir filmes é uma relação entre espaços adequados e formatos. Predominantemente, a Sessão Zoom exibiu, historicamente, filmes nos chamados “cinemas de rua” que se confundiam com o formato, sendo exibidos em película de 35mm contendo o movimento de um segundo sob a luz a cada vinte e quatro fotogramas. No entanto, os locais fecharam em 1999, viraram loja comercial de mercadorias e de fé. No templo do consumo se converteram em formato digital, alguns se enlataram. 

Com o fim dos “cinemas de rua” era preciso caminhar para outros lugares, enfrentar outros “inimigos”. A Sessão Zoom vai para o “Espaço Cultural Paratodos”, depois ao shopping. Por fim, perde a batalha, mas retorna, para o mesmo lugar; depois sai para as praças, para os espaços públicos exibindo filmes independentes de qualidade, de resistência à margem. O filme em 35mm é o símbolo da resistência, do saudosismo, mesmo estando no espaço dos “gigantes”. 

A Sessão Zoom é resistência, militância para a difusão do cinema enquanto arte. Luta contra o formato, a falta de incentivo, a chuva, as adversidades, gigantes; mas tem o prazer dos olhos dos produtores e espectadores que veem na luz do cinema uma realidade mais que perfeita, mostrada de forma crítica, artística. 

Não me lembro da primeira vez que fui ao cinema, mas tenho em mim que os melhores filmes que vi foram em 35mm na Sessão Zoom. A primeira sessão, a chegada do cinematógrafo, do filme analógico, o barulho do projetor, a música, a bomboniere, não vivi, mas ouvi e li relatos. Vivo, presenciei a última exibição de um filme em 35mm em Araraquara. Assisti junto ao projetor, sentado no canto da apertada sala do cinema, uma pequena faixa do filme. Não precisava de mais, tinha o fabuloso destino da jovem moradora do bairro de Montmartre que trabalhava no café “dois moinhos” na memória. 

Exibir filmes artísticos, como o faz a Sessão Zoom, é ser idealista, é lutar contra gigantes fantasiados de moinhos. Chegou-se à última sessão, outras virão em outros formatos com Sancho mascando chiclete e Quixote à cavalo.

O preço do Nobel de Literatura de Dylan

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Robert Allen Zimmerman (1941-), mais conhecido como Bob Dylan, foi laureado com o Nobel de Literatura em 2016. O compositor e cantor estadunidense é um dos maiores gênios artísticos dos nossos tempos. Sua obra musical caminha entre a música e a composição poética, possuindo impacto cultural e relevância em outras linguagens artísticas desde a década de 1960. 

O prêmio Nobel de Literatura foi criado em 1901, sendo concedido anualmente pela Academia Sueca para os escritores que se destacam no campo literário. O Nobel não deveria servir para se colocar em discussão a qualidade artística de Dylan, mas, sim, as diretrizes do prêmio. O filósofo francês Jean-Paul Sartre recusou a premiação, poucos outros bons escritores a receberam como Thomas Mann, Luigi Pirandello, Ernest Hemingway, Albert Camus, Pablo Neruda, Gabriel García Márquez e José Saramago

Prêmios literários são arbitrários, destinados a laurear escritores que possuem qualidades segundo as diretrizes de determinados grupos. Com as “musas sob assédio” por parte da indústria cultural, há a tentativa de conciliar mercado editorial e qualidade literária, sendo, no atual contexto, o primeiro predominante sobre o segundo. Bob Dylan está inserido no contexto da cultura de massas, da “arte para o consumo”, mas ele vai além, possui qualidades singulares como Artista que consegue dar relevância social para a sua arte possuindo impacto dentro da sua linguagem, a música. 

Segundo a tradição literária ocidental, a poesia e a música nascem juntas, como uma só linguagem. O termo “gênero lírico” remete à lira, um instrumento musical usado pelos aedos na Grécia antiga. No entanto, os gêneros literários não são estáticos e perenes, ou seja, eles nascem, vivem, morrem e evoluem. Uma das características da arte contemporânea e da modernidade artística é a fusão de gêneros e a interseção de linguagens artísticas. 

A discussão se a composição musical é literatura ou não, não deve caminhar para posicionamentos estáticos de gosto e desejos de imutabilidade dos gêneros literários ou mesmo no sentido restrito do que é literatura, como ocorre com parte de setores da teoria literária e com o senso comum. Pelo contrário, deve caminhar para um entendimento dos fatores que regem a criação artística, possuindo a percepção do dinamismo e da interseção das múltiplas linguagens no contexto atual. 

O bardo Dylan, ou aedo para os gregos, retorna aos primórdios da literatura com a sua Arte, sem distinção entre poesia e música, na própria gênese do gênero lírico. Os tempos estão mudando, como sempre e com frequência, Dylan percebe a mudança, nós a ouvimos, quem tiver ouvidos, ouça-a. Zimmerman está entre os bons, é um dos melhores transitando entre linguagens, é um dos maiores bardos, aedos, compositores e tudo o mais de todos os tempos. O nobel é apenas um prêmio de 8 milhões de coroas suecas. Contrariando John Lennon: I believe in Zimmerman.