Ele está de volta

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Um espectro ronda a Europa e a América Latina - o espectro do conservadorismo da ultradireita partidária e social. Vários países unem-se em uma aliança para apoiá-lo: a França e a Alemanha, François Hollande e Angela Merkel, os neonazistas da Áustria, os neoliberais da Argentina e os adeptos do trumpismo nos Estados Unidos. No Brasil, políticos misóginos, reacionários estão no poder repetindo práticas e políticas conservadoras. 

No filme alemão ‘Ele está de volta’ (Er ist wieder da, 2015), o diretor David Wnendt adapta o romance homônimo de Timur Vermes no qual o ditador nazista Adolf Hitler acorda no dia 23 de outubro de 2014 em um terreno baldio em Berlim. Desnorteado, começa a caminhar por alguns pontos da cidade, vai ao Portão de Brandemburgo, onde turistas tiram selfies acreditando estar na presença de algum ator fantasiado e não na do próprio ditador. 

Se durante a II Guerra Mundial (1939-1945) Hitler movia as suas tropas da Wehrmacht, Luftwaffe e a Schutzstaffel, no filme, carrega estantes de jornais tentando entender a dinâmica da sociedade atual moldada pela era da informação e pela internet. Um jornalista resolve fazer um reality show mostrando a viagem do ditador pela Alemanha atual, passando por diversas regiões e cidades, conversando com cidadãos sobre temas polêmicos, como imigração, crise econômica, etc. 

O filme ‘Ele está de volta’ é uma comédia, uma sátira da sociedade atual influenciável pelo espetáculo midiático e pelas rápidas narrativas das redes sociais viralizadas, compartilhadas, reproduzidas. Os vídeos de Hitler no youtube recebem milhares de acessos, vloguers postam vídeos no canal expressando as suas “mêmicas” opiniões sobre a sociedade, exaltando o ditador que se torna uma “celebridade da internet” com milhares de novos seguidores nas redes sociais. 

O filme é construído através do recurso do “mise en abyme”, ou em uma tradução “narrativa em abismo”, no qual a obra está dentro da própria obra. Um filme sobre o fato de Hitler acordar no século XXI está sendo feito dentro do filme que o espectador acompanha, mostrando que aquilo é uma obra ficcional, mas que pode ser um reflexo do que ocorre atualmente. 

No Brasil, o filme ‘Ele está de volta’ pode ser visto à luz dos recentes acontecimentos políticos e sociais, nos quais uma parcela da sociedade fantasiada com camisas de futebol da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) adoram políticos- personagens conservadores com hashtag: “bolsomito”, “vaipracuba”, “naovoupagaropato” ou “fora alguém”. Aqui, eles nunca precisaram voltar, pois sempre estiveram nos rondando para proteger a ruína da “casa grande”.


O 69º Festival de Cinema de Cannes

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O Festival de Cannes é um dos festivais de Cinema mais importantes do mundo, tem lugar na cidade litorânea francesa de Cannes e, este ano, ocorre entre os dias 11 a 22 de maio. É caracterizado como um festival plural, que privilegia o “cinema de autor”, destacando a produção cinematográfica de diversos países, que concorrem aos dois principais prêmios: o primeiro, A Palma de Ouro (Palme d’Or) dada ao melhor filme do festival; e o segundo, Grand Prix (Grande Prêmio), atualmente considerado o segundo prêmio mais importante do festival, atribuído pelo júri ao filme que melhor contribui para o desenvolvimento dos aspectos da linguagem cinematográfica. O festival está na sua 69ª edição e ocorre desde 1946, com evoluções, retrocessos, polêmicas e cancelamentos, como o seu o seu conflito com o Festival de Veneza, ou ainda ao seu eterno embate com o “Cinema industrial hollywoodiano”, passando pelo seu solidário cancelamento em maio de 68. 

Os Festivais de Cinema são eventos importantes, pois propiciam um excelente ambiente de divulgação fílmica, centrada em produções de determinadas nacionalidades, gêneros cinematográficos, e, principalmente, em diretores. O interessante, e que merece um especial destaque, é que os festivais possuem perfis, com características próprias, sejam elas ideológicas, políticas, mercadológicas ou estéticas. Por exemplo, o Festival de Cinema de Berlim tem como prêmio máximo o Urso de Ouro e segue um perfil de cinema político, voltado para um Cinema engajado. Já o Festival de Veneza tem como símbolo o prêmio Leão de Ouro, dado o filme vencedor da mostra competitiva, que se destaca pela sua alta qualidade cinematográfica. Por sua vez, o Festival de Cinema de Sundance se caracteriza por premiar e divulgar apenas produções independentes, mas que produzam um cinema autoral e de baixo orçamento, ou seja, o oposto da premiação do seu compatriota, representada pelo Oscar, que premia filmes relacionados com a indústria do entretenimento. 

Por seu turno, o Festival de Cinema de Cannes privilegia o Cinema de autor, ou seja, premia filmes que são expressões artísticas de seus respectivos diretores, e que propõem uma abordagem artística e experimental da linguagem cinematográfica. Nota-se que os filmes que ganham destaque no festival são obras de arte e não meros produtos de consumo de massa. Outro fator de destaque é a pluralidade das produções que participam do festival, com diretores de diversas nacionalidades. Assim, o Cinema autoral é o elemento norteador do perfil do Festival de Cannes. 

A história do Festival de Cannes se inicia em setembro de 1939, teria como presidente do júri os cineastas Louis Lumière (1862-1954), com a tentativa do governo francês de criar um festival de Cinema em protesto ao Festival de Veneza, que sofria com a orientação ideológica fascista. No entanto, a Alemanha declararia guerra à Inglaterra e à França em setembro do mesmo ano, adiando, assim, a gênese do festival. Após o término da II Grande Guerra (1939-1945), em 1946, tem-se a primeira edição do Festival de Cannes. Ao longo dos seus 65 anos, apenas em duas ocasiões o festival não foi realizado: a primeira em 1948 e a segunda em 1950, ambas por falta de verba. Já em 1968, o festival foi interrompido por um grupo de cineastas ligados à Nouvelle Vague, liderados por Jean-Luc Godard (1930-) e François Truffaut (1932-1984), que exigia a interrupção do festival em apoio as manifestações estudantis e trabalhistas que aconteciam nas ruas de Paris, em maio de 68. 

As produções brasileiras possuem uma boa receptividade dentro do Festival de Cannes, tendo recebido diversos prêmios, inclusive o principal: a Palma de Ouro com o filme “O pagador de promessas” (1962), do ator, roteirista e diretor Anselmo Duarte (1920-2009). Porém, o primeiro filme nacional premiado no festival foi “O Cangaceiro”, do diretor Lima Barreto, em 1953, na categoria “Melhor filme de aventura”. Ainda na década de 1960, o cineasta representante do Cinema Novo Glauber Rocha ganhou dois prêmios: recebeu o “Prêmio da Crítica Internacional” com “Terra em Transe”, em 1967, e ganhou o prêmio de “Melhor direção” pelo filme “O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade”, em 1969; Glauber receberia ainda o “Prêmio especial do júri” pelo o seu curta-metragem “Di Cavalcanti”, em 1977. Outros destaques ficam por conta da premiação na categoria de melhor curta-metragem de animação para “Meow”, de Marcos Magalhães, em 1982, e pelos prêmios de melhor interpretação feminina para Fernanda Torres no filme “Eu sei que vou te amar”, de Arnaldo Jabor, em 1986; e para Sandra Coverloni pela atuação em “Linha de passe”, de Walter Salles, em 2008. Já no ano de 2016, o curta metragem "A moça que dançou com o diabo", de João Paulo Miranda Maria recebeu o prêmio "Menção especial do júri". 

A 69ª edição do Festival de Cinema de Cannes ocorre em um momento em que o festival se encontra em uma encruzilhada: manter o perfil de cinema autoral e artístico ou ceder às pressões do mercado e da indústria cinematográfica, representada por Hollywood. Hoje, há o meio termo, a organização cede espaço para as produções hollywoodianas. Todavia, a Palma de Ouro ainda é dada para filmes que atendem à característica do festival, premiando, assim, filmes autorais e artísticos.

Filmes Cults

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O termo “clássico” é controverso dentro dos estudos literários e da história da arte. Pode ser atribuído a um período literário considerado o mais elevado e importante dentro de uma dada história literária, como é o caso do Classicismo português do século XVI, que se confunde com a arte renascentista, ou mesmo o período barroco da literatura espanhola, ou ainda do romantismo alemão. A terminologia ainda pode ser atribuída a obras importantes, referenciais, como é o caso de algumas que são consideradas “clássicos da literatura universal”, como “Ilíada”, “Divina Comédia”, “Dom Quixote”, “Cem anos de solidão”, etc. No caso do cinema, há filmes clássicos que são importantes para movimentos e escolas cinematográficas, mas também há os filmes cults. 

O termo “cult” é originário da língua inglesa podendo ser traduzido, de forma literal, como “culto”. Os “Filmes cults”, ou “Cult movies” em inglês, são filmes cultuados por determinados grupos sociais. Não possuem necessariamente o status de “clássico”, mas têm determinadas qualidades ligadas ao roteiro, trilha sonora, tema ou mesmo personagens, fazendo com que surjam cultos. Um filme cult pode não ter qualidades excepcionais, ou mesmo experimentações dentro da linguagem cinematográfica, sendo apenas uma obra que teve uma excelente recepção por parte de um determinado público que se mantém fiel à obra por um certo tempo. 

O filme cult é caracterizado pela sua associação com determinados grupos sociais, de onde surge o culto. O cinema pode ser considerado um culto moderno que propicia a comunhão entre espectadores, tendo o filme como elemento sagrado, como fonte de inspiração, de pensamento e de conduta. Espectadores se identificam, criam empatia por narrativas, personagens, trilhas sonoras, tentam reproduzi-las no seu cotidiano com condutas, roupas, gírias e demais obras de culto, como livros, bonecos, pôsteres, etc. Os filmes cultuados acabam influenciando o comportamento social com um impacto muitas vezes maior do que os filmes clássicos. 

Quadrophenia’ (Inglaterra, 1979) é um filme dirigido por Franc Roddam, é baseado na “Ópera Rock” homônima lançada em 1973 pela banda inglesa The Who. O filme é um retrato do cenário musical, cultural e social londrino nos primeiros anos da década de 1960, com a oposição entre os dois principais grupos conhecidos como Mods e Rockers, como também a arquetipal dualidade entre o velho e o novo em uma sociedade em constantes transformações. O filme se tornou cultuado por ser uma representação de duas formas de conduta e identificação dos jovens ingleses no início da década de 1960, além de expressar dois estilos de vida: o mod e o rocker. 

Na produção “Warriors – Os selvagens da noite” (1979), nove indivíduos de uma gangue de rua da cidade de Nova Iorque resolvem atender ao chamado do líder carismático Cyrus para comparecerem ao bairro do Bronx em uma reunião com representantes de todas as demais gangues da cidade. Cyrus é assassinado e os Warriors são acusados injustamente. Perseguidos pela polícia e pelas demais gangues tentam retornar à distante região de Coney Island. O filme foi cultuado por representar grupos sociais através de gangues que se diferenciavam por roupas, condutas e localidades. Assim, a reprodução do figurino, do sotaque e das expressões mantiveram o aspecto sagrado do filme e o seu culto por parte dos seus adoradores. 

Poucas animações possuem o status de cult, dentre elas a mais impactante é a produção japonesa “Akira” (1988). A animação, dirigida por Katsuhiro Ôtomo, conta a história de Kaneda líder de uma gangue de motoqueiros, no ano de 2019, em Tóquio, chamada de Neo-Tokyo que foi construída após a original ser destruída na terceira guerra mundial. A fonte de culto sobre “Akira” está na sua trilha sonora composta por Geinō Yamashirogumi com influências da música punk, eletrônica e rock. O principal público cultuador do filme são os chamados otakus, ou seja, fã de animes e mangás japoneses que tentam dar vida aos seus personagens prediletos através dos cosplays. 

Cultuar um filme é se tornar fiel, crente e reprodutor daquilo que é expresso na obra cinematográfica. Os cultuadores se identificam com o que veem, projetam no que vivem, criam uma empatia pelos seus iguais que o ajudam a se reconhecer e ao mesmo tempo se diferenciar dos demais grupos sociais. Filmes cults ditam formas de comportamento e de pensamento. Segui-los é estar em comunhão com algo sagrado, superior. Mas, é se projetar, se ver e tentar ser igual à obra, seja usando roupas, reproduzindo gírias, ou mesmo consumindo objetos de culto como livros, pôsteres, bonecos e demais itens. Aquilo o que é cultuado é sagrado.