‘Memórias da EFA’: sob memórias e sobre a linha do trem

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Na década de 1920, o cineasta soviético Dziga Vertov (1896-1954) lançou o documentário “Um Homem com uma Câmera” (Tchelovek s kinoapparatom, 1929, U.R.S.S), no qual a câmera é uma forma de olhar (ou mesmo o próprio olho) para a sociedade com as suas constantes e rápidas evoluções. Em umas da sequências mais marcantes há a câmera-olho filmando a passagem de um trem, simbolizando a rapidez dos tempos modernos e a própria modernidade. Por seu turno, o documentário “Memórias da EFA” (2013), dirigido pelo araraquarense Marcelo Machado (1958-), trabalha com a temática da memória relacionada à Estrada de Ferro de Araraquara (EFA) e o seu impacto sobre prédios e pessoas.

Memórias da EFA” é um documentário que se propõe a trabalhar com o tema do espólio, das heranças e das memórias das estradas de ferro no interior do estado de São Paulo, em específico, a linha que pertencia à companhia ferroviária Estrada de Ferro de Araraquara. Para construir uma narrativa, que auxilie na construção do tema, o documentário mostra uma família percorrendo de carro o trecho da estrada de ferro de Araraquara até a cidade de Santa Fé do Sul, nas barrancas do rio Paraná. Assim, Eleonora Ducerisier (34 anos, mãe e grávida) e seus dois filhos: a carismática Nix Montenegro (10 anos) e Pã Montenegro (15 anos), além de Dan Baldassari (24 anos) compõem e fazem a intermediação entre narrativa e documentário; presente e passado, ou seja, entre a memória e a constatação.

Durante o percurso, encontram estações, prédios, linhas, pessoas. A linha não é homogênea, em alguns pontos, as estações cumprem novas funções, em outros são apenas ruínas. Em cada parada, há uma tentativa de interação e resgate da memória por parte de Eleonora e de sua família, buscando compreender o passado, seja com as ruínas do presente e/ou o perene da memória das pessoas encontradas pelo caminho. Em Matão, a estação está abandonada; em outras cidades, ela virou antiquário, secretária de cultura, órgãos burocráticos do governo municipal, bar, ou mesmo, moradia de pessoas. 

A ideia do documentário ‘Memórias da EFA’, segundo o próprio diretor, surgiu após a conclusão do seu documentário ‘Apito do trem’ (2009), que tem como eixo temático a pretensa retirada dos trilhos do trem da região central de Araraquara. As obras de retirada fariam parte do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), um programa lançado pelo então presidente Lula, em 2008. As obras em Araraquara cumpririam uma função histórica e reorganizariam a dinâmica urbana da cidade, separada urbanisticamente entre dois grandes bolsões representados pela região da Vila Xavier e pela região central, deixando, assim, uma área gigantesca no centro da cidade. O espaço deixado pela retirada dos trilhos pode ser, o mais provável, ainda refém da especulação imobiliária, ou de um novo projeto urbanístico para a cidade, que atenderia as demandas da população. 

A estrutura do documentário ‘Memórias da EFA’ é simples, linear e de fácil assimilação. O grande destaque é a viagem de Eleonora e de sua família, juntamente com as paisagens, as ruínas, os lugares e as pessoas. O aspecto pedagógico do tema relacionando à importância histórica e à atual das estradas de ferro, que poderia ser mais explorado, acaba ficando em segundo plano. O filme é feito com duas unidades de câmera, distintas na operação e no estilo entre si: uma é pretensamente narrativa, a outra é poética, buscando planos, ângulos e jogos de luzes mais expressivos, operada por Guilherme Bonini. Outro aspecto interessante é a sonoplastia que contextualiza e dá ritmo ao roteiro e à montagem. 

O tema da memória está presente ao longo de todo o documentário. Há a memória histórica e a memória afetiva. A primeira está presente na memória física expressa pela estrada de ferro com os seus trilhos, com as construções, ora em ruínas e/ou abandonadas e nos poucos resquícios que sobraram da reutilização das estações, seja em azulejos ou pisos, ou ainda no logo da EFA em alguma estação. Já a segunda, é a memória narrada e revivida por pessoas que fizeram parte indiretamente ou diretamente da EFA: um antigo trabalhador, um passageiro assíduo, que expõem as suas saudosas lembranças de labor, de amor, etc. Em ambos os casos, como escreve a poeta mineira Adélia Prado, “aquilo o que a memória amou fica eterno”, nas memórias. 

Uma das primeiras exibições públicas de um filme ocorreu em 1895, em Paris, com a exibição de “Chegada de um Trem à Estação da Ciotat” (L'Arrivée d'un train en gare de la Ciotat) dos Irmãos Lumière, no qual há a chegada de um trem à estação. Em “Memórias da EFA”, ao fim da viagem, depois de histórias e memórias contadas por escombros, por construções, pela estrada de ferro e por pessoas; tudo o que Nix quer é banhar-se no rio, estaria ela buscando a terceira margem, ou simplesmente banhando-se. No documentário há a memória física e afetiva, há novas funções para trilhos, que transportam cargas e não mais pessoas; estações reaproveitadas ou mesmo abandonadas. Complementando Adélia Prado, o que a Arte representou fica, sim, eterno.

A ‘Pietá’ de Kim Ki-Duk

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O cinema sul-coreano vive, atualmente, o seu ápice de prestígio e de qualidade com dois cineastas muito distintos no seu estilo e na sua proposta cinematográfica, são eles: Chan-Wook Park (1963-) e Kim Ki-Duk (1960-). O primeiro é famoso no ocidente pela sua “Trilogia da vingança”, composta pelos filmes “Mr. Vingança” (2002), “Oldboy” (2003) e “Lady Vingança” (2005). O segundo diretor é o mais premiado em festivais internacionais, sendo o seu último “Pietá” (2012) o grande vencedor do Leão de Ouro do Festival de Cinema de Veneza e um de seus filmes que mais repercutiu juntou ao público e à crítica, ao lado de filmes como “Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera” (2003), “Casa Vazia” (2004), “O Arco” (2005) e “Sem Fôlego” (2007). 

“Pietá” é o 18º filme de Kim Ki-Duk. Ele narra a história de Kang-do (Lee Jung-Jin) que trabalha como cobrador de agiotas e usa métodos nada convencionais de cobrança. Quando alguns indivíduos não possuem o dinheiro para pagar a dívida, Kang-do os mutila com os próprios instrumentos de trabalhos, tais como pequenas máquinas industriais ou jogando-os do alto de edifícios para que, assim, fiquem aleijados e recebam o dinheiro do seguro, com o qual poderão quitar a dívida. A rotina de cobrança de Kang-do é quebrada quando, repentinamente, uma mulher passa a segui-lo, revelando-se ser a sua mãe, que o havia abandonado há 30 anos. 

Kang-do é um ser autômato, faz o seu trabalho de forma direta e sem levar em consideração os seus atos de cobrança, que provocam a dor e o sofrimento de outros indivíduos e, principalmente, de outras mães. A proposta de Kim Ki-Duk é mostrar as relações sociais e humanas sendo afetadas pelo capitalismo extremo, no qual a miséria e a situação degradante dos indivíduos os levam a se submeter ao dinheiro de forma cega e a outras situações de forma autômata. O dinheiro, quando questionado o que seria, a resposta é: “Amor, honra, violência, fúria, ódio, inveja, vingança e morte”. 

O filme é, antes de tudo, uma narrativa sobre as relações entre mãe e filho, caracterizada pelo abandono e retorno, como é o caso Kang-do e sua mãe; de incesto, proteção e carinho. O personagem Kang-do passa a ter consciência de seus atos a partir do momento que a sua mãe passa a se relacionar com ele e ser a sua mediadora com a sociedade, fazendo-o ver que as suas ações são negativas. Mas, o seu medo é que usem a sua mãe como forma de vingança, visto que ele é um ser que muito mal já causou a outros indivíduos, o que o leva a revisar e abandonar a profissão de “cobrador”. 

Um aspecto interessante do filme de Kim Ki-Duk é o título (que remete) e o cartaz de divulgação (que reproduz) a obra “Pietá” (1499) do escultor italiano Michelangelo (1475-1564). A escultura se encontra na Basílica de São Pedro, no Vaticano, em Roma, e é uma das mais expressivas obras do Renascimento italiano, possuindo as figuras de Maria e Jesus, estando a mãe segurando o seu filho já morto e ensaguentado no colo, que de acordo com o mito bíblico, havia sido crucificado. No cartaz do filme “Pietá”, tem-se a mesma pose da escultura de Michelangelo, só que Kang-do está no colo de sua mãe.

Por seu turno, ao aludir à escultura de Michelangelo, Kim Ki-Duk inverte a relação entre mãe e filho expressa nas narrativas bíblicas, onde o filho se sacrifica, de modo que, no filme, o sacrifício é da mãe, que se suicida para poder dar uma nova consciência para o seu filho, e, com isso, dá-lhe uma nova vida. Mesmo trabalhando temas da tradição cristã, o diretor sul-coreano coloca elementos que são recorrentes na sua filmografia, representados pela filosofia budista, através de conceitos de perversidade, purgação, sacrifício e ressurreição, que são estágios naturais para a elevação da alma humana, como também expresso no filme “Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera” (2003).

No filme “Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera”, de Kim Ki-Duk, as estações do ano são uma metáfora para os estágios, não só da vida, mas também de desenvolvimento humano: nascimento, crescimento e declínio. Dois monges budistas, um mais velho que exerce a função de mestre; e outro mais novo, jovem aprendiz, convivem em uma casa no meio de um lago entre as montanhas. O filme é dividido em cinco partes de acordo com as estações do ano, como destacado pelo título: há a primavera, o nascimento; o verão, o despertar; o outono, o declínio; o inverno, a queda; e o renascimento com a primavera, novamente. Na obra fica evidente o eterno retorno da situação humana, mas em um plano metafísico, de constituição da essência humana nos seus estágios de desenvolvimento. 

Ao final, em “Pietá”, de Kim Ki-Duk, o diálogo com temas da tradição cristã são amalgamados com temas da filosofia budista, recorrentes em toda a sua filmografia. O diretor insere os dramas de mães e filhos em uma sociedade opressora representada por um sistema capitalista que condiciona as relações humanas e, consequentemente, interfere na relação mais arquetipal de todas: a de mãe e filho. Mas, no filme, a consciência parte do sacrifico da mãe, que ao dar a sua vida, possibilita o renascimento do filho, dando-lhe a luz pela segunda vez.

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Alan Moore no Cinema

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A divisão clássica das Artes estabelece uma numeração para designar as expressões artísticas, destacando as artes espaciais e as artes temporais, ou seja, as que se configuram no espaço e as que se desenvolvem e trabalham o tempo. Assim, a Pintura (1ª Arte), a Escultura (2ª Arte), Arquitetura (3ª Arte), Dança (4ª Arte), Música (5ª Arte) e a Literatura (6ª Arte). No século XX, outras expressões artísticas foram conceituadas como Arte, como o Cinema (7ª Arte), a Fotografia (8ª Arte) e as História em Quadrinhos (9ª Arte). A Nona Arte, também chamadas de Arte sequêncial, teve o seu ápice mercadológico na década de 1980, com artistas como Frank Miller (1957-), Neil Gaiman (1960-) e Alan Moore (1953-), elevando a qualidade das histórias em quadrinhos. 

Frank Miller é um artista completo, roteiriza e desenha as suas obras, possuindo uma forte influência do Cinema. Já Neil Gaiman caminha entre a Literatura e a Nona Arte, trazendo recursos da primeira para a segunda. Por seu turno, o autor mais interessante do três é Alan Moore, roteirista completo que não apenas utiliza recursos do Cinema e da Literatura nas suas narrativa, mas as materializam na linguagem do quadrinhos, dando-lhe especificidade. Em termos narrativos, as obras de Moore como “Watchmen” (1987), “V de Vingança” (1988), “Do Inferno” (1991), “A Liga Extraordinária” (1999) são de grande qualidade e foram adaptadas para o Cinema. Moore ainda foi tema central do documentário “The mindscape of Alan Moore” (Inglaterra, 2003). 

A primeira adaptação de uma obra de Alan Moore para o Cinema foi “Do Inferno” (From Hell, EUA, 2001), dirigida pelos irmãos Hughes (Albert Hughes e Allen Hughes) e possui o ator Johnny Depp como o inspetor de polícia Frederick Abberlineque, que começa a investigar assassinatos que estão ocorrendo contra prostitutas na Londres vitoriana de 1888. A narrativa do filme trabalha a trama do famoso serial killer Jack, o estripador, que seria o responsável pelas mortes e estaria ligado à família real inglesa. A trama possui um tom noir, com um enredo que remete aos contos de Edgar Allan Poe (1809-1849) e Arthur Conan Doyle (1859-1930), com casos e acontecimentos intrigantes, possuindo uma rede complexa de relações e fatos de difícil solução. 

A segunda obra de Alan Moore a ser adaptada para o Cinema não merece nem mais do que algumas poucas linhas de análise, dada a sua péssima qualidade. O filme “A liga extraordinária” (The League of Extraordinary Gentlemen, EUA) foi lançado em 2003, possuindo problemas no roteiro, técnicos, dentre outros. 

No entanto, a sua terceira obra adaptada é a de maior qualidade e impacto cultural. O filme “V de Vingança” (V for Vendetta, EUA, 2006) é a adaptação das obras de Moore que, em termos cinematográficos, possui melhor qualidade. A narrativa pode ser enquadrada nas narrativas distópicas, já que a ação se passa em uma Londres futurista onde a opressão, a repressão e o controle do Estado são enormes. O personagem V usa uma máscara, que foi utilizada por manifestantes do mundo todo com uma forma de criar um símbolo de luta e de resistência, possuindo, assim, a obra um impacto na cultura popular, sendo uma marca de revolta contra a violência e o vandalismo do Estado, seja na Londres da obra, ou ainda na real Istambul, Santiago do Chile, Nova Iorque, Madrid, São Paulo, Araraquara, etc. 

O filme “Watchmen” (EUA, 2009) é uma adaptação feita para o Cinema pelo diretor Zack Snyder (1966-), o mesmo de outras adaptações de histórias em quadrinhos como “300” (EUA, 2006) e “O homem de aço” (Man of Steel, EUA, 2013). O grande feito da narrativa é inserir os super-heróis em um contexto sociológico de existência de indivíduos com super poderes nas relações sociais, sejam elas familiares, amorosas, sócio-políticas. O contexto da narrativa é a Guerra Fria (1945-1991), mais especificamente o ano de 1985, no qual o conflito entre Estados Unidos e União Soviética está a beira de uma guerra nuclear e, misteriosamente, outros vigilantes (super-heróis) começam a ser assassinados. 

Não apenas as obras de Alan Moore foram adaptadas para Cinema, mas o próprio autor foi tema do documentário “The mindscape of Alan Moore” (Inglaterra, 2005), dirigido por DeZ Vylenz. O documentário centra-se na biografia e na obra de Moore, com fatos, narrados pelo próprio quadrinista: da infância, adolescência e início da carreira, bem como da sua ida para o mercado estadunidense de quadrinhos através da DC Comics na década de 1980, com comentários diretos sobre as suas principais obras. No entanto, o que se destaca são as divagações de Moore acerca de temas como: teoria da conspiração, filosofia ocidental, ocultismo, indústria do entretenimento.

Dentro da tríade dos grandes artistas da Nona Arte da década de 1980, Frank Miller, Neil Gaiman e Alan Moore, o último é aquele que elevou o status da histórias em quadrinhos à condição de Arte dentro da indústria do entretenimento. Assim como fez artistas anteriores como Milo Manara (1945-), Hugo Pratt (1927-1995), Moebius (1938-2012), Will Eisner, (1917-2005), Robert Crumb (1943-), Enki Bilal (1951-), etc. Porém, quando o Cinema, mesmo sendo linguagens distintas, adaptou as obras de Alan Moore, não conseguiu manter a qualidade que as obras bases possuem.