"Ida", de Pawel Pawlikowski

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Na língua portuguesa, a palavra “ida” é um substantivo feminino, dando a noção no seu significado de locomoção espacial. No filme “Ida” (2014), do diretor polonês Pawel Pawlikowski (1957-), a palavra é gravada em maiúsculo por ser um substantivo próprio. Ida é uma jovem  órfã que quer se tornar freira na Polônia do início da década de 1960; no entanto, antes de fazer os seus votos, ela deve se encontrar com a sua única parenta viva: sua tia. Do encontro entre sobrinha e tia, a narrativa se desenvolve com ambas tentando descobrir e/ou reviver a história dos seus entes queridos, que foram exterminados durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), devido à ocupação nazista. 

Ao completar dezoito anos, Anna deixa a rotina austera do convento, a madre superior ordena-lhe que se encontre com sua tia, chamada Wanda Cruz que vive em Varsóvia, capital polonesa. Chegando à capital, a jovem noviça se depara com uma mulher livre, libertina, autônoma, que defende o regime soviético, sendo juíza e tendo lutado pela relação da Polônia com a União Soviética após o fim da grande guerra. Através da tia, Anna descobre que o seu verdadeiro nome é Ida Lebenstein, de origem judaica, e que seus pais foram exterminados pelos nazistas durante a ocupação da Polônia. Ida pede para visitar o túmulo e a antiga morada de seus parentes. 

Wanda e Ida partem pelo interior da Polônia em busca do passado, de modo que para retroceder no tempo é preciso percorrer o espaço, revisitar a memória, seja pessoal, ou mesmo coletiva. No percurso, Ida descobre onde os seus pais moravam e como foi a agonia de tentar sobreviver à ocupação alemã, sendo judeus, eram alvos dos nazistas. Encontram a cova rasa dos seus antepassados em um bosque, Wanda quer enterrá-los em um cemitério judaico. O interessante é que o filme intercala a história particular com a história coletiva, pois os dramas da família de Ida são os mesmos de diversos outros indivíduos durante os anos de conflito e ocupação, deixando marcas na própria sociedade polonesa. 

O filme “Ida” se destaca pela sua fotografia em preto e branco. A base da fotografia é a luz, no contraste entre luz e sombra, claro e escuro, tem-se não apenas o retorno aos primórdios do Cinema, mas também uma estética de valorização da imagem, dos elementos que a compõe na sua pureza, simplicidade. No contraste entre a fusão de todas as cores e a ausência delas, o plano cinematográfico se mostra belo, perfeito, aguçando o prazer dos olhos, criando um cinema de valorização da imagem, de contemplação, e não de ação, no qual o plano tem uma mínima duração em nome da proposta de cortes rápidos para gerar agilidade, como ocorre nos filmes de ação. Assim, o plano tem a sua duração, transcorrendo pelo tempo. 

O diretor Pawel, em “Ida”, desautomatiza a posição padrão dos objetos no plano cinematográfico. Em um plano, recorrentemente, coloca-se o elemento principal próximo ao centro, ou nas extremidades, se dividirmos a imagem em três partes horizontalmente da esquerda para a direita, a personagem ficaria na extremidade oposta à direção do seu olhar; todavia, o diretor coloca as personagens no lado oposto, ficando um espaço livre atrás. Verticalmente, há diversos planos com divisão em três partes, a personagem fica na primeira de baixo para cima, criando um plano com um espaço acima da cabeça da personagem que ocupa 2/3 da imagem. A nova disposição das personagens no plano causa estranhamento no espectador, desautomatizando o olhar. 

No início do filme, no mosteiro, a rotina das freiras e das noviças é simples com pequenos trabalhos: como o restauro de uma estátua, o preparo do alimento, o banho. Cada ação é ressaltada pelo seu som, não há comunicação entre as personagens, por isso, seja o som dos talheres sobre os pratos, ou do passar da mão na conta do terço, é ressaltado. Na cidade, Ida se encanta com uma jazz band, a música é libertação. O trítono, abolido pela igreja católica e domado pela escala cromática da música tonal, é a base da “música profana”, é a liberdade ecoando pela tensão com o sagrado. Ida conhece o sexo, a bebida, o cigarro, a música, mas não perde a sua fé, assim como o personagem Andrei Rublev, do cineasta soviético Andrei Tarkovski

Uma obra artística possui qualidades não apenas pelo que ela expressa, mas também pelo que suscita, ao exigir um espectador ativo, que dialogue com ela, vendo-a como uma “obra aberta”. O filme “Ida”, de Pawel Pawlikowski, trata da história particular de Ida e Wanda, como também da história coletiva polonesa pós Segunda Guerra Mundial. Ambas as personagens passam a descobrir e a reviver o passado, a primeira como conhecimento e libertação; enquanto a segunda como dor e angústia. No filme há níveis de significação e, ao irmos mais além, nas camadas mais profundas de interpretação, abre-se, como diria o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), o “Aleph”, a obra se abre para um “infinito de possibilidades”.

Trailer do filme "Ida":