O “Fausto” cinematográfico de Sokurov

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"O diabo na rua, no meio do redemoinho". O homem é demasiado humano, ora sem consciência e paciente frente aos infortúnios e aos “joguetes” das entidades “superiores”, como na narrativa mítica de matriz judaica do “Livro de Jó”; ou mesmo quando toma consciência da sua impotência e, almejando superá-la, se volta para com o pacto com o “pai dos revoltosos”: o Diabo. Neste contexto, uma das figuras mais emblemáticas e fascinantes é a de Fausto, possuindo sua gênese nas narrativas histórico-míticas germânicas do final século XV, teve sua sedimentação nos séculos seguintes na tradição literária com os escritores Marlowe, Lessing e na versão mais conhecida feita por Goethe. No cinema, a história de Fausto foi trabalhada pelo cineasta russo Alexandr Sokurov, em 2011. 
 
Há uma linha tênue entre a construção do Fausto mítico e do suposto personagem histórico que possa ter existido no final do século XV. O que se tem é que um certo Johann Georg Faust foi um personagem famoso, na região onde hoje é a Alemanha, por suas habilidades enquanto alquimista, astrólogo, mago, médico e vidente. Um homem com uma gama gigantesca de conhecimento para os padrões da época, o que lhe rendinha a acusação de ter feito um pacto com o Diabo. Deste modo, a sabedoria, o acúmulo, ou mesmo a busca pelo conhecimento era algo considerado “estranho” perante à sociedade predominantemente teocentrista da época, na qual o mundo e os fenômenos não careciam de explicações racionais para além das explicações religiosas. 
A passagem do Fausto histórico-mítico para o literário ocorreu com o escritor inglês Christopher Marlowe (1564-1593) através da peça de teatro “A Trágica História do Doutor Fausto” (1592), na qual vários elementos são sedimentados e outros são criados. Fausto se torna um homem obcecado pelo conhecimento e por uma pretensa busca de onipotência para além dos limites humanos ou mesmo um inconformismo com os limites de conhecimento da sua época, objetivando ir além das “leis da natureza”. Para concretizar o seu objetivo, Fausto evoca o demônio Mefistófeles para realizar o pacto e vender a sua alma para o Diabo. 

A peça de Marlowe influenciou o escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) na sua peça “Dr. Fausto” (1760). No entanto, a obra de Lessing ganha importância pois pode ter sido a fonte de influência para a peça “Fausto, uma tragédia” (1808) escrita pelo também alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). A peça, também designada de “Fausto I”, é a obra literária mais famosa e influente sobre a figura de Fausto. Na narrativa de Goethe há vários elementos recorrentes de outras obras, tais como: a busca pelo conhecimento, o pacto, a figura humana ansiando por ir além das suas limitações. O elemento que ganha destaque é a figura de Margarida (Gretchen), que passa a ser responsável pela salvação da alma de Fausto. 

No filme “Fausto” (2011), de Sokurov, tem-se a figura de Fausto, um médico e estudioso que busca o conhecimento. Nas cenas iniciais, a personagem disseca um cadáver em busca do local de onde estaria armazenada a alma humana; sem êxito, sem dinheiro ou resposta, acabar por ir penhorar um anel. O dono da casa de penhores, a versão do cineasta russo para Mefistófeles, recusa-se a comprá-lo. Em seguida, ambos partem pela cidade, ora divagando sobre temas filosóficos em relação à essência da alma humana, o tempo, etc; ora em relação a um jogo de interesses e desejos. Ao encontrar a bela jovem Gretchen, Fausto se apaixona e na ânsia de amá-la, resolve fazer um pacto com o demônio (“Teufel” em alemão), assinando-o com o próprio sangue. 

Sokurov faz um filme esteticamente interessante, o formato da projeção não são os comuns “widescreen” 16:9 ou 4:3, nem mesmo o cinemascope; mas, sim, um formato de tela quadrada com as bordas arredondas. As lentes utilizadas distorcem a imagem, deixando a bordas desfocadas, o que cria um efeito de estranhamento no espectador acostumados com formatos e fotografias naturalistas. O cineasta trabalha ainda com o diretor de fotografia Bruno Delbonnel, o mesmo do filme francês “O fabuloso destino de Amélie Poulain” (2001). 

Nas narrativas míticas e literárias, o Diabo é mais próximo do homem do que o seu criador. O pacto, na rua, no meio do redemoinho, ou mesmo na encruzilhada, é uma forma de ir além das capacidades demasiadas humanas, é uma forma de elevação. No filme de Sokurov, Fausto é um intelectual, um doutor, domina a filosofia, teologia, astrologia e a anatomia humana; mas, mesmo em meio a uma miséria social e econômica, o motivo para o seu pacto é o desejo de “passar uma noite” com sua recente amada. Por fim, “o motivo faustiano” serve de base para artistas como os escritores Marlowe, Lessing, Goethe, e o mais contemporâneo Thomas Mann, e para os cineastas como F.W. Murnau e o mais recente Alexandr Sokurov.


Trailer do filme