Viver É Fácil Com Os Olhos Fechados

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Em janeiro de 1969, a pequena cidade de Matão, no interior de São Paulo, hospedou por alguns dias os músicos Mick Jagger e Keith Richards da banda inglesa de Rock The Rolling Stones. Durante o período que permaneceram na cidadezinha, há quem diga que o guitarrista da banda teve como influência a viola caipira para compor a célebre música “Honky Tonk Women”. A passagem de um grande músico por uma pequena cidade é o mote do filme espanhol “Viver é fácil com os olhos fechados” (Vivir es fácil con los ojos cerrados, 2013), dirigido pelo cineasta David Trueba, que destaca a estadia de John Lennon (1949-1980) em um pequeno vilarejo na província de Almeria na região espanhola da Andaluzia. 

O ano é 1966, Antonio (Javier Cámara) é um professor em uma pequena cidade do interior da Espanha que utiliza as músicas dos Beatles para ensinar o idioma inglês. Sua rotina de ensino é quebrada quando recebe a notícia que John Lennon está na província de Almeria para gravar um filme. Resolve ir ao encontro do seu grande ídolo e inspirador. No caminho, oferece carona para a jovem Belén, de 21 anos, que está fugindo de um lar para jovens grávidas, e para Juanjo, um adolescente que foge da autoritária casa paterna por não concordar com o conservadorismo, não apenas do pai, mas também da sociedade espanhola franquista. Antonio chega à cidade base da produção do filme e tenta de todas as maneiras se encontrar com Lennon. 

Viver é fácil com os olhos fechados” é um Road Movie, ou em uma tradução literal “filme de estrada”, um gênero cinematográfico no qual a ação se desenvolve a partir de uma viagem. As personagens se deparam com situações-problemas que são expostas e trabalhadas no decorrer do deslocamento, como ocorre também com os filmes “Easy Rider” (1969), “A Encruzilhada” (1982), “Telma e Louise” (1991), “E sua mãe também” (2001.), “Diários de motocicleta” (2004) e “Pequena Miss Sunshine” (2006). No gênero, a paisagem ganha importância por apresentar locais belos, exóticos. Na produção espanhola, Antonio se desloca pela região de Andaluzia (a mesma do poeta Federico García Lorca) e pela exuberante e árida costa da província de Almeria. 

Filmes que tratam diretamente ou indiretamente sobre os Beatles possuem uma carga enorme de intertextualidade com referências explícitas e/ou implícitas ao universo do quarteto de Liverpool. Na cena inicial de “Viver é fácil com os olhos fechados”, Antonio está discutindo com a sua classe de jovens alunos o que a palavra em inglês “help”, “ayuda” em espanhol, significa no contexto da música composta por John Lennon e em um outro mais profundo, filosófico. Em Almeria, o professor fica hospedado em um hotel próximo a uma plantação de morangos, aludindo, assim, aos versos da música “Strawberry Fields Forever”, que John Lennon compôs durante a sua estadia na província espanhola. 

John Lennon foi à Espanha no outono de 1966 para filmar a produção “How I Won the War” (“Como ganhei a Guerra”) com a direção de Richard Lester, diretor dos filmes dos Beatles “A Hard Day's Night” (1964) e “Help” (1965). Da sua estadia, originou-se a famosa foto da capa da primeira edição da revista Rolling Stone lançada em novembro de 1967, como também alguns versos da música “Strawberry Fields Forever”, que foi lançada no dia 13 de fevereiro de 1967 em um compacto juntamente com a composição "Penny Lane". No filme de David Trueba, a personagem Antonio se encontra com Lennon, e em diálogo particular ouve a fita demo da composição, sendo, deste modo, o primeiro a ouvir a música. 

As músicas dos Beatles estão presentes ao longo da produção, Antonio as analisa em sala de aula, cita em diálogos informais. No encontro com Lennon, o professor pede para que o músico visite a humilde escola e mande uma mensagem para os alunos, acaba não recebendo a visita, mas, algo melhor, ouve alguns versos de “Strawberry Fields Forever” que são gravados em um gravador portátil. O encontro não é mostrado, sendo destacado pela fala de Antonio. John Lennon não aparece, não se vê a figura do músico, sabe-se que ele está lá: na casa alugada na vila de Santa Isabel, onde se vê o pequeno Julian e a sua mãe Cynthia Lennon, no set de filmagens, no seu trailer, por fim, com Antonio. 

Strawberry Field” foi um orfanato, onde há o famoso portão vermelho, que fica na rua Beaconsfield Road no subúrbio de Woolton em Liverpool. Mas, também remete aos campos de morangos da província de Almeria, onde Lennon permaneceu por alguns meses para filmar “How I Won the War”. "Strawberry Fields Forever” é uma música excepcional, de seus versos “Living is easy with eyes closed” origina-se a inspiração para o filme de David Trueba. Em “Viver é fácil com os olhos fechados”, Antonio é movido pela música, ela faz parte do seu cotidiano pessoal e profissional, recebendo o apelido na escola de “quinto Beatles”. Por fim, o filme não é sobre os Beatles, ou sobre John Lennon, é sobre Antonio e sua paixão pela música.

Trailer do filme

O Incrível Exército de Brancaleone

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O Incrível Exército de Brancaleone” (L'Armata Brancaleone, 1966) é uma produção italiana dirigida pelo cineasta Mario Monicelli (1915-2010). No filme, há a história do cavaleiro medieval Brancaleone da Norcia (Vittorio Gassman) e do seu exército de plebeus e moribundos que vagam pela Itália na baixa Idade-Média, deparando-se com cavaleiros desastrados, fanáticos religiosos, cidades desertas devido à peste negra, donzelas e invasores sarracenos. O filme satiriza os costumes da sociedade feudal, como também o código de cavalaria e a religiosidade da época, sendo, ainda, uma paródia do romance “Dom Quixote de La Mancha” (1605), do escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616). 

No filme, com a invasão de uma vila por nórdicos, um cavaleiro acaba sendo morto e dos seus espólios, dois adultos e um adolescente plebeus acham um pergaminho contendo a posse da cidade de Aurocastro, que fica na região italiana da Puglia. Mas, apenas um cavaleiro pode possui-la, assim, partem em busca de um que aceitaria dividir a cidade e as riquezas, encontram Brancaleone, um cavaleiro maltrapilho, pobre e desastrado. Com o seu grupo (exército de cinco membros) partem em direção à Puglia, no caminho há o duelo de Brancaleone e Teofilatto de Leonzi, o encontro com um grupo de fanáticos religiosos, a tarefa de levar uma pura donzela para o seu esposo, a chegada à cidade de Aurocastro e a luta final contra os piratas sarracenos. 

O enredo do filme “O Incrível Exército de Brancaleone” se passa durante o período histórico conhecido como Baixa Idade-Média entre os séculos XI e XV, quando há o enfraquecimento da relações feudais e, consequentemente, da sociedade baseada no modo de produção feudal. A sociedade era estamentada por classes sociais constituídas pela nobreza, clero e camponeses. Contudo, a partir da Baixa Idade-Média, há o declínio do feudalismo principalmente através de três viagens: a primeira representada pelas Cruzadas, que abriram novas rotas comerciais terrestres; a segundo pelos mercadores venezianos, representados por Marco Polo, que sedimentaram as rotas; e, por último, as grandes navegações que desbravaram rotas marítimas de comércio. 

Em “O Incrível Exército de Brancaleone” é possível identificar os três elementos que caracterizaram a Baixa Idade-Média: a guerra, a peste e a fome. Logo no início da narrativa, uma vila é saqueada por guerreiros aparentemente nórdicos e um cavaleiro tenta defendê-la sem êxito. Na parte final do filme, há a tentativa de Brancaleone e seu exército de conter a invasão de piratas sarracenos à cidade de Aurocastro, exemplificando algo típico do período: o embate entre os europeus e os árabes muçulmanos, no caso chamados de sarracenos. No período histórico, o embate foi caracterizado a partir da Guerra da Reconquista (península ibérica) ou mesmo com as Cruzadas contra os muçulmanos que dominavam todo o oriente médio e parte da Europa. 

A peste negra, como era chamada a peste bubônica, assolou a Europa durante a Baixa Idade-Média, trazendo devastação e um número elevado de mortes. Devido à doença, cidade inteiras eram isoladas e o fanatismo religioso era elevado, pois julgavam ser a doença um castigo divino devido à “impureza da população”. Em uma cena, Brancaleone e o seu exército entram em uma cidade vazia e começam a pilhá-la segundo o “código de pilhagem”, no entanto, fogem sem levar nada temendo estarem contaminados pela “peste”. Descrentes e acreditando na iminente morte, se juntam à procissão do religioso Zenone e seus peregrinos que rumam à Terra Santa para libertar o Santo Sepulcro. 

A fome, a falta de alimentos, é uma constante durante o período. O sistema de produção feudal baseado na monocultura e a dependência da agricultura criaram um modelo que não se sustentou e não sanou as necessidades de alimentos da população da época. No contexto do filme, o alimento é mostrado como algo importante, que teria a mesma importância que a posse de pedras preciosas, sendo, ainda, um símbolo de riqueza. Um dos motivos para irem a Aurocastro, além da riqueza material, é a abundância de alimentos que lá teria, com os seus campos de cereais, vinhedos e animais. Quando um dos integrantes do exército, o velho judeu, está prestes a morrer, palavras de conforto são ditas, tendo a comida e a supressão da fome como destaques. 

Em “O Incrível Exército de Branca Leone”, Mario Monicelli faz uma sátira dos costumes e das relações sociais da Baixa Idade-Média, mostrando de forma cômica a decadência da sociedade feudal através de um cavaleiro moribundo e o seu exército de cinco maltrapilhos. Ele satiriza ainda a religiosidade do período, de uma sociedade que possui uma concepção teocentrista, onde o pensamento religioso domina todas as esferas humanas. Contudo, no filme, Zenone e seus seguidores são mostrados como fanáticos religiosos crédulos na proteção divina, que não se concretiza, por exemplo, na passagem de uma ponte. Brancaleone é um Dom Quixote da comédia italiana, mas o Quixote do século XVII, cômico, síntese de uma sátira, mas fiel ao contexto histórico.

Trailer do filme