Paradise Now ou Paraíso Perdido: do Filme à Situação Palestina

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Contrapondo-se à dialética idealista hegeliana, ao analisar os dois golpes que levaram Napoleão I (1769-1821) e seu sobrinho Napoleão III (1808-1873) a se autoproclamarem imperadores da França; na sua obra “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” (1852), Karl Marx (1818-1883) afirma que a história se repete: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. No caso da criação do estado israelense e a conseguinte ocupação da Palestina, tal ordem se mostra presente, como podemos ver no filme “Paraíso, agora!” (Paradise now, Palestina, 2005), dirigido por Hany Abu-Assad (1961-), que trata da “Questão Palestina” e das formas de resistência dentro da Cisjordânia. 

O filme “Paradise now” relata as últimas horas de vida de dois amigos de infância chamados Khaled e Said, que moram na cidade Nablus, dentro da Cisjordânia, um território Palestino ocupado e controlado militarmente pelo Estado de Israel. Eles foram recrutados para um ataque suicida contra a cidade israelense de Tel Aviv. Serão mártires, morrerão como homens-bombas na única forma que possuem de lutar contra a humilhante e restringente ocupação israelense. Nas suas últimas horas, dormem, comem, mantêm a rotina. Amanhece, devem se preparar. Com as bombas presas ao corpo, partem para Tel Aviv, se separam, o plano dá errado, Khaled retorna para Nablus, Said prossegue, vai até um acampamento de colonos israelenses, pensa em explodir um ônibus, hesita, há mulheres e crianças. Ele também volta para Nablus. Os chefes da resistência decidem continuar com o plano, Said e Khaled voltam para o território Israelense, desta vez, Khaled hesita, mas Said está mais convicto da única forma de resistência que o povo palestino tem. Ele entra em um ônibus, desta vez há alguns soldados israelenses, a câmera vai fechando em zoom-in no seu rosto, de um plano aberto para um plano-fechado: a tela fica clara, depois escura, há o silêncio, desce os créditos.

Em relação à forma do filme, há um discurso cinematográfico padrão, com uma narrativa linear. O espectador é convidado a acompanhar as últimas horas de Said e Khaled. Os planos são fechados, há uma recorrência de close-up, o que aumenta a identificação do espectador com as personagens, pois, agora ambos fazem parte do universo da ação. O filme possui, mesmo sendo uma narrativa ficcional, um estilo cinematográfico que remete ao documentário, com a tentativa de ampliar o efeito de realidade e reforçar a situação cotidiana, seja do lado político e militar da Palestina ou do lado humanista dos dois palestinos que devem cumprir a missão de serem homens-bombas. As hesitações e as convicções de Said e Khaled acabam sendo transportadas para o espectador. 

Outro aspecto interessante é a recorrência do recurso do “mise em abyme”, ou seja, a “obra dentro da obra”, só que em uma escala menor, como, por exemplo, o desenho de um brasão que possui um brasão, em uma escala menor, dentro de si mesmo; ou como a famosa capa do disco “Ummagumma” (1969) da banda inglesa Pink Floyd. Tal recurso é utilizado em uma das cenas na qual Khaled está em um bar e há uma televisão, ao fundo, transmitindo notícias sobre a conflituosa relação entre israelenses e palestinos. Ele também é utilizado no vídeo de gravação de despedida dos mártires, no qual eles falam das razões de se explodirem e dizem as suas últimas palavras. Os vídeos são vendidos ou alugados, há ainda a fotografia oficial, com a bandeira palestina ao fundo, armas e o lenço típico, o que dá impressão da obra dentro da obra. 

O tema abordado no filme se mostra complexo e é feito a partir de uma perspectiva humanista, já que somos introduzidos às angústias do povo palestino, submetidos à ocupação e ao genocídio gradual por parte de Israel. A discussão das formas de luta e de resistência estão presentes ao longo da narrativa, questões tais como se a prática suicida de homens-bombas surge efeito ou se apenas servem como combustível para o discurso israelense de “legítima defesa” para a manutenção das sanções e do controle sobre o território Palestino. Os dramas da ocupação israelense são incontáveis: a humilhação é diária, não há a liberdade de locomoção. A vida, controlada e submetida, é um inferno, para a personagem Said “Quem luta pela vida, dá a sua por ela”, ou como ressalta o poeta inglês John Milton (1608-1674), através da fala do “Pai dos revoltosos’, pois livre “pode-se transforma o céu em inferno ou inferno em céu”. 

 No filme “Paradise now”, o que geopoliticamente costuma-se chamar “Questão palestina” é colocada a partir da degradante situação da ocupação israelense na Cisjordânia. Sua narrativa centra-se na tentativa de resistência e a luta do povo palestino. O que se tem ao final é que: se as ideias são à prova de balas, os homens-bombas, no caso palestino, são as provas da ideia e a consequência da ocupação. Mas, seria estranho morrer por ideias, mas viver por elas também não seria uma forma de submissão? Como diriam Ivan Karamazov, Stravóguin ou Rodka. No filme, para Said, somente como mártir que ele pode conquistar o poder político e militar, morre usando o seu corpo como arma e dá um significado político para a sua morte. Voltando para o início, em um eterno retorno, “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” E ao final, como cantava a saudosa banda araraquarense Belmyra: “Triste são os olhos da Palestina”.

Trailer



Música 'Palestina', Banda Belmyra


O Efeito de Realidade no Cinema

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No dia 28 de dezembro de 1895, no subsolo do Grand Café na região do Boulevard des Capucines, em Paris, houve a primeira exibição de um filme aberta ao público em um local apropriado. Alguns espectadores compareceram ao local com o intuito de verificar de perto a mais nova invenção que prometia, não só copiar, mas também reproduzir elementos do real. Para o espanto da maioria dos presentes, ao assistirem a exibição de “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon” (La Sortie de l'usine Lumière à Lyon), era o real reproduzido de forma mais mimética do que a fotografia. No entanto, o principal choque viria na segunda sessão, no dia 6 de janeiro de 1896, quando foi exibido o filme “A chegada do trem na estação” (L'Arrivée d'un train à La Ciotat); o pânico foi geral, pois a maioria dos presentes, que pagaram o valor de 1 franco para a sessão, se assustou com a imagem de um trem indo em direção à objetiva da câmera, o que os fizeram acreditar que o trem estava vindo em sua direção.

Os responsáveis pelo feito foram os irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948) que criaram o cinematógrafo: um equipamento que não só captava imagens em fotogramas, mas também as projetava em uma dada sequência, o que cria a ilusão de movimento e o efeito de realidade. Dois elementos estes que sustentam a relação do espectador com o filme e dois dos mais teorizados e discutidos pelos teóricos ao longo de mais de 100 anos, representados pela polarização entre Cinema naturalista versus Cinema realista. 

Nos seus primórdios, o que diferenciava o Cinema da Fotografia era a ilusão de movimento. Enquanto a Fotografia captura o real em um único fotograma retido em um instante singular e estático com um tempo e um espaço delimitado, no Cinema havia o movimento, o que tornava a obra fílmica mais realista do que a obra fotográfica. No entanto, o que cria a ilusão de movimento é, paradoxalmente, um efeito de ilusão, chamado “efeito phi”, criado pelo nosso cérebro. Ao projetarmos, convencionalmente, 24 fotogramas, separados por 1/24 avos de uma fita preta, em uma dada sequência, o cérebro não vai reconhecê-las, o que criará uma percepção em sequência dos fotogramas e uma, consequente, ilusão de movimento. 

A ilusão de movimento é o ponto de sustentação do efeito de realidade no Cinema. A obra cinematográfica ganhou o status de reprodutora fiel do real, o que provocou não só o pânico nos espectadores nas primeiras sessões de cinema dos irmãos Lumière, mas também alguns posicionamentos de teóricos e de cineastas acerca de como isto pode afetar e direcionar a relação do espectador com a obra fílmica. Uma problemática surgiu: devido à excelente capacidade do Cinema de criar um efeito de realidade, os espectadores poderiam se identificar com a obra, como também serem manipulados, pois acreditariam que o que estão vendo é real e, portanto, verdadeiro, o que poderia sancionar mentiras e fomentar determinados posicionamentos ideológicos. Eis que é introduzida a questão do Cinema como um veículo ideológico, polarizada, inicialmente, entre Cinema naturalista versus Cinema realista. 

No Cinema naturalista, há a naturalização dos elementos da linguagem cinematográfica, de modo que todos eles devem se tornar imperceptíveis para o espectador, o que aumentaria o efeito de realidade produzido pela obra fílmica. Todos os elementos devem ser naturais, tais como a interpretação dos atores, os planos e os ângulos, além da ocorrência de um Cinema de gênero, pautados em gêneros fixos e padronizados, de fácil assimilação do público. Os críticos ao Cinema naturalista alegam que ele pode ser um veiculador de determinadas posições ideológicas, principalmente as ligadas à ideologia burguesa, podendo sancionar uma mentira, ou um posicionamento, ou até mesmo valores, é o que ocorre nitidamente com o cinema hollywoodiano, historicamente. 

Em contraponto ao Cinema naturalista, há adeptos do realismo, das vanguardas, e do Cinema moderno; que, em geral, se posicionam de maneira contrária ao naturalismo cinematográfico. Para eles, principalmente para os realistas, o cinema naturalista manipula o real ideologicamente, sancionando mentiras. O realismo cinematográfico coloca a realidade objetiva em destaque e, ao mesmo tempo, destaca que o que está sendo mostrado não é algo inquestionável, mas sim uma narrativa que pretende ser uma representação do real, não o próprio real, de modo que o mise-en-scène cinematográfico deve ser exposto para o público, o que pode gerar a desconstrução da linguagem cinematográfica e/ou o efeito de estranhamento no espectador. 

A ilusão de movimento é o principal fator que sustenta o efeito de realidade no Cinema. O espectador tende a acreditar que o que está sendo exibido é real e não uma representação da realidade feita por um sistema de significação, o que pode gerar visões orientadas e manipuladas da realidade segundo posturas ideológicas. A base da oposição entre Cinema naturalista versus Cinema realista centra-se na questão do efeito de realidade e na capacidade do discurso cinematográfico de criar o efeito de real e a identificação no espectador. Mas, assim como René Magritte pinta e escreve em um quadro “Isto não é um cachimbo” (Ceci n'est pas une pipe), o que é representado no filme não é o real.


A Saída da Fábrica Lumière em Lyon


A Chegada do Trem na Estação