O Retrato do Brasil em “Que horas ela volta?”

0
No “Mito da caverna” de Platão, o filósofo grego faz uma alegoria da condição humana frente à realidade. Para ele, o mundo real seria uma cópia do mundo das ideias, o mundo perfeito. Nós, humanos, estaríamos acorrentados frente a uma parede de uma caverna e veríamos apenas as sombras dos objetos e de outros seres projetadas. Fazendo uma analogia com o “mito da caverna”, as relações cotidianas e ordinárias, além de mecânicas e automatizadas, provocam a não percepção, ou mesmo a não compreensão, do mundo ao nosso redor, cabendo à Arte o papel de libertadora e “desautomatizadora” da vida e da sociedade. No filme brasileiro “Que horas ela volta?” (2015), a diretora Anna Muylaert (1964-) “lança uma luz” esclarecedora sobre as transformações ocorridas na sociedade brasileira nos últimos treze anos. 

No filme, Val (Regina Casé) é uma empregada doméstica, que mora na casa dos patrões, e reencontra a filha depois de alguns anos. Jéssica decide ir até São Paulo para prestar o vestibular de Arquitetura para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP (Universidade de São Paulo). Ao chegar na capital paulista, se surpreende com o fato da mãe morar na casa dos patrões. A rotina de Val e dos outros membros da casa: esposa, marido e filho é quebrada, pois Jéssica não aceita reproduzir a postura de servilidade da mãe, acostumada apenas a servir e a se colocar em uma posição muito inferior e subalterna em relação aos membros da família para quem trabalha. 

Jéssica prefere estudar a “ajudar” a mãe nos afazeres de empregada doméstica. A jovem possui um perfil contestador, de análise, de questionamento. Ela não quer reproduzir a vida da mãe, suas oportunidades agora são outras. Mesmo não possuindo as mesmas condições sociais, ela presta o vestibular, passa para o segunda fase, enquanto o filho dos patrões, com toda a estrutura e condições, não. O interessante do filme é que há uma inversão na lógica do aprendizado: do natural de pais ensinarem uma visão mundo para os filhos, de a filha ensinando para mãe, a partir de questionamentos e uma nova postura, que os indivíduos (a sociedade) mudam, evoluem e que algumas estruturas sociais não são estáticas e perenes; mas, sim, dinâmicas. 

Algumas estruturas e relações sociais brasileiras foram historicamente construídas e uma das mais perenes, que tem as suas bases no início do processo de colonização do país no século XVI, é a “Casa grande e a senzala”, que são símbolos da relação entre classe opressora e classe oprimida, inicialmente representada pelo casa grande, local onde residia os senhores do engenho e os detentores do poder e, em anexo, a senzala com os escravos e em alguns momentos os serviçais, como destacado na obra de Gilberto Freyre. Analisando as plantas das residências das elites brasileiras, mesmo após o fim da escravidão, nota-se a existência daquilo que se chamou de “o quartinho da empregada”, na maioria das vezes próximo à cozinha e/ou à lavanderia, demonstrando que algumas estruturas sociais não se modificaram. 

O filme de Muylaert, juntamente com os filmes brasileiros “Casa Grande” (2014) e “Som ao redor” (2013) contribuem para a reflexão das transformações sociais e culturais ocorridas no Brasil nos últimos treze anos. Em “Casa grande”, de Felipe Barbosa, tem-se a queda das elites brasileiras, ou seja, a ruína da “casa grande”, de modo que uma família rica, tradicional e historicamente detentora do poder e de prestígio social acaba por perder a posição de privilégios frente a uma nova configuração social, não mais excessivamente estática, onde havia a garantia de reprodução de modelos e estruturas sociais. 

Já na produção “O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho, há justamente a tentativa de proteção das elites brasileiras frente a uma nova realidade. No filme, os moradores de uma rica rua de Recife têm a rotina quebrada quando um grupo de seguranças particulares propõem garantir a segurança das “redondezas”. O que se tem no filme é algo similar a um processo de “condominização” da sociedade brasileira, no qual haverá a tentativa por parte das elites de criar espaços fechados, “feudos”, conhecidos como “condomínios fechados”, que não interagem com o resto do espaço social, criando espaços homogêneos. 

Em “Que horas ela volta?”, temos o processo final de transformação da sociedade brasileira nos últimos anos sendo mostrado, aquele mais profundo, baseado na consciência de classe, como o demonstrado pela personagem Jéssica e transmitido para a sua mãe, Val. A filha se recusa a “seguir os passos” não da mãe, mas aqueles que lhe seriam legados historicamente devido a sua classe social. Libertando-se, também liberta a mãe. Já não são mais as mesmas, estão em comunhão. Libertaram-se de amarras históricas através do pensamento crítico e social. Assim, elas nunca mais voltarão para aquela condição de submissão social, não adiantando perguntar que horas, pois o tempo presente, a vida presente se transforma. Através do cinema podemos ver esta transformação de forma mais lúcida.

Trailer do filme "Que horas ela volta?"

A história Concisa da Sessão Zoom

0
A Sessão Zoom é um projeto de cinema criado em 1978 por alunos da Faculdades de Ciências e Letras da UNESP. A história do projeto se relaciona com a da cidade de Araraquara (interior de São Paulo) e se mescla com o contexto histórico do Brasil, podendo ser dividida em três fases: uma fase de 1978 a 1999; a segunda fase entre 2003 a 2007; e a terceira fase de 2013 até a atualidade. Em cada fase, tem-se a relação com espaços de exibição (cinemas de rua, shoppings, praças, bibliotecas etc.) e formatos: 35mm e digital; e uma curadoria, dependendo do contexto histórico, que caminha entre a proposta de formação cinéfila e/ou a engajada politicamente e socialmente. 
  
Há um precedente que dará início ao processo que consolidará o projeto que ficará conhecido na cidade como ‘Sessão Zoom”. No entanto, por falta de documentação, resta apenas a “memória afetiva” dos que viveram diretamente o período ou ouviram relatos de parentes ou conhecidos. A história do projeto pode remontar ao ano de 1961 quando Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara foi transferida para o centro de Araraquara, onde é hoje a Casa da Cultura. Atividades de exibição cinematográfica em 16mm são realizadas esporadicamente. No ano de 1968, as atividades se intensificam, sendo criada o “Zoom Cine Clube”, em 1970. 

Em 1973, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara foi transferida para o bairro Campus Ville, localizado fora da regiãoc entral da cidade. Em 1976, era criada a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”-Unesp. As atividades cineclubistas continuaram até o ano de 1977 no âmbito da universidade. Em 1978, tem-se a primeira fase da Sessão Zoom que adota o nome que possui até os dias de hoje, passando a dialogar com a população araraquarense ao exibir filmes em 35mm nos cinemas de rua, principalmente, Cine Capri e Cine Veneza na região central da cidade.

Entre 1978 a 1999, a Sessão se consolida como importante projeto de difusão cultural através do Cinema. Os filmes exibidos são predominantemente expressões artísticas dentro da linguagem cinematográfica. Neste período, o “Cinema de rua” cede espaço na sua programação para a exibição de filmes que não faziam parte do circuito comercial de cinema. O projeto foi um importante fomentador de cultural na cidade, ampliando a suas atividades para debates, palestras, objetivando uma difusão cultural e uma formação de público mais ampla, nãos se restringindo apenas à Unesp. 

No ano 1999, as atividades da Sessão Zoom foram suspensas. Em 2002, um grupo de indivíduos ligados à Unesp, Sesc e Prefeitura de Araraquara se juntaram para organizar o “Ciclo do Novo Cinema Brasileiro” no espaço do antigo Cine Capri, alugado pela Prefeitura Municipal de Araraquara, denominado de “Espaço Cultural Paratodos”. Assim, a partir do sucesso do ciclo de cinema, a Sessão Zoom tem a sua segunda fase iniciada em 2003, indo até o ano de 2007. No final de 2006, o espaço cultural Paratodos é fechado e as sessões são transferidas para o Cine Lupo, no Shopping Lupo, permanecendo até o final de 2007, quando, novamente, por falta de espaço, é encerrada. 
Em 2013, o coletivo “Colmeia Cultura” de Araraquara resolve reviver a Sessão Zoom a partir de leis de incentivos fiscais (Lei Rouanet). Com o projeto aprovado e orçamento captado, as atividades são iniciadas em setembro de 2013, indo até maio de 2014 com os recursos captados. Em setembro de 2014, o projeto firma uma parceria com o SESC Araraquara. A partir da terceira fase, o projeto buscou a exibição cinematográfica em novos espaços: praças públicas, teatros, centros culturais, etc. Sua atuação e divulgação é basicamente no meio virtual através de redes sociais, principalmente o facebook (www.facebook.com/sessaozoom). 

Por fim, a Sessão Zoom passou por vários formatos: 35mm e digital, sendo exibida em diversos espaços da cidade. Em 2015, suas atividades se caracterizam por quatro exibições mensais: duas sessões semanais no Cine Lupo, com ingressos a R$2,00; uma sessão na praça das Bandeiras ao ar livre; e outra no teatro do SESC, sempre com filmes de qualidade. Atualmente, ela se consolida como importante projeto cultural de Araraquara, não apenas pela imensa riqueza histórica, mas também expressando as novas dinâmicas sociais com a sua organização para além de instituições, sendo baseada em livre organização e gestão a partir de indivíduos que têm a paixão pela sétima arte como elemento principal, além da centelha da cultura e da produção independente; mas, sempre de resistência.