O cinema e a sua reprodutividade técnica na era da cultura de massas

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Preponderantemente, existem duas formas de análise de uma obra de arte: a primeira puramente imanentista, preocupada estritamente com os elementos internos e estéticos da obra, e a segunda puramente de bases sociológicas preocupada com a relação dialógica e, em grande parte, dialética da obra de arte com a sociedade. A análise de base sociológica teve o advento e uma relação com o pensamento marxista através do método “materialista histórico dialético”. Um dos principais teóricos do marxismo e um dos mais importantes estudiosos da sociologia da arte foi o alemão Walter Benjamin. Em um célebre ensaio “A obra de arte da era da sua reprodutividade técnica”, texto datado de 1936, o pensador alemão lançou as bases para o estudo da cultura de massas e fez uma relevante análise sociológica do cinema.

No seu ensaio, Walter Benjamin analisa a tendência evolutiva da arte nas condições materiais do modo de produção capitalista a partir do método marxista. O método materialista histórico dialético vê a história e o desenvolvimento da sociedade como um processo dialético. As condições materiais e as relações do modo de produção, que se configuram na relação entre forças produtivas e meios de produção, se materializam na história, no modo de organização da sociedade e na arte em geral.

Walter Benjamin relaciona as características materiais do modo de produção capitalista, um modo de produção serial e em massa, com o surgimento da “era da reprodutividade técnica da obra de arte”. O pensador alemão salienta que a obra de arte sempre foi reprodutível. Contudo, a reprodução técnica representaria um processo novo que se desenvolve a partir das técnicas e organização do modo de produção capitalista. O novo processo de reprodução técnica trouxe implicações para o desenvolvimento das artes sem precedentes: como a crise da autenticidade, a perda da tradição e o advento da cultura de massas.

Na reprodutividade técnica, não existem os conceitos de falsidade e autenticidade, ou seja, eles não são aplicáveis. A esfera da autenticidade, de acordo com Benjamin, escapa à reprodutividade técnica. A autenticidade é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, desde a sua origem, passando pela sua duração material, indo até o seu “testemunho histórico”. Falsidade e autenticidade da obra tornam-se sem sentido e sem importância, neste contexto, pois a reprodução técnica tira o “peso tradicional” da obra e, conseqüentemente, o peso da autenticidade e o conceito de falsidade.

A reprodução técnica retiraria, segundo Benjamin, o domínio da tradição da obra reproduzida. Na media em que há a reprodução, a obra perde a sua existência única e passa a ter uma existência serial. Benjamin afirma que a reprodução técnica permite a obra ir ao encontro do público. Como a obra de arte não possui mais uma existência única, cada indivíduo tem a possibilidade de consumir a sua, eis que surge a cultura de massas. Pois a obra de arte é concebida com a finalidade e a necessidade de sua reprodução técnica, sendo ela destinada às massas.

Na conjuntura da cultura de massas, o cinema surge e se torna uma arte ligada à era reprodutividade técnica. Benjamin afirma que, no caso da obra cinematográfica, é essencial a sua reprodução técnica e a sua difusão em massa se torna obrigatória. A difusão em massa se torna, em termos, obrigatória devido ao fato da produção de um filme ser muito cara, não havendo a possibilidade de um único consumidor pagá-lo e mantê-lo, desta forma, em uma existência única.

O filme é uma forma cujo caráter artístico seria, em grande parte, determinado pela sua reprodutividade. No entanto, a reprodutividade técnica modifica a relação das massas com a arte, formando um “paradigma contratual”. Na cultura de massas, há um “contrato” entre os produtores e realizadores de filmes com o público. São produzidos determinados tipos de filmes com determinadas características e funções, as quais o público está habituado a absorver. Como conseqüência, este “contrato” gera a perda de qualidade artística e a perda da necessidade de inovação e desenvolvimento da linguagem cinematográfica.

O cinema, no contexto da cultura de massas, serve apenas como objeto de entretenimento destinado às massas. Benjamin alerta sobre o fato do cinema está inserido neste contexto. Para ele, quanto mais se reduz “significação social” de uma arte, maior fica a distância, no público, entre a atitude de fruição e a atividade crítica. Benjamin salienta ainda que a partir do processo de reprodução técnica em massa, o cinema passa a se fundar em uma outra práxis: política. Ou seja, ele passa a servir como veículo de difusão de ideologias, seja diretamente ou indiretamente, como ocorreu na Itália fascista, na Alemanha nazista e em Hollywood.

O ensaio de Walter Benjamin “A obra de arte na era de sua reprodutividade técnica” constitui um dos principais e mais influentes estudos sobre o cinema. Ele relaciona o desenvolvimento dos modos de produção capitalista com o advento da era da reprodutividade técnica da obra de arte e ao desenvolvimento da arte cinematográfica. A era reprodutividade técnica trouxe algumas implicações para a obra de arte, como uma existência serial e a fundamentação em uma práxis política, de modo que a reprodução em massa corresponde de perto à reprodução das massas, sou seja, corresponde à criação da cultura de massas, na qual o cinema possuiria um papel central, mas não único.

Tarkoviski e a Metafísica do Belo no filme “Andrei Rublev”

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Andrei Tarkoviski possui uma posição inusitada na história do cinema russo. Sem dúvida, ele é o mais expressivo e importante cineasta da Rússia desde a tríade de grandes cineastas da Escola Formativa Russa (Eisenstein, Pudóvkin, Kuleshov), que teve seu auge na década de 20 do século passado. Estudado, amado e laureado fora Rússia, no entanto, em seu país, Tarkoviski foi incompreendido e extremamente censurado. As características de seus filmes não se enquadravam nos preceitos da estética do “Realismo Socialista”, então pregada como obrigatória na União Soviética.Tarkoviski realizou apenas oito filmes nos seus vinte e oito anos de carreira, desde a data do seu primeiro filme, aos vinte e oito anos, “O rolo compressor e o Violinista” (1960) ao último, um ano antes de sua morte, “O Sacrifício” (1986). Este pequeno número de filmes não significa um conjunto pobre de obras, pelo contrário, seus filmes possuem características de dimensões filosóficas, anteriormente, alcançadas somente pelo cineasta sueco Ingmar Bergman. Um filme que seria a obra prima de Tarkoviski, e síntese de seu modo de conceber uma obra dentro da Sétima Arte, é o fantástico “Andrei Rublev” (1966). No filme, questões filosóficas, tais como a relação dialética entre Artista x Meio e Arte x Sociedade, juntamente com questões de qual a função e constituição do Artista e de da Obra de Arte são desenvolvidas a partir de uma narrativa cinematográfica singular e inovadora.

O filme é uma biografia não linear do grande pintor russo Andrei Rublev, que viveu entre os anos de 1360 e 1430. Um período extremamente conturbado da história da Rússia, que sofria com invasões de tribos Tártaras e estava no auge da Baixa Idade-Média. Acompanhamos, ao longo de mais de três horas e meia, a trajetória de Rublev e o surgimento e desenvolvimento de seus anseios e de suas dúvidas sofre a fé (Deus), a sociedade russa e sobre a Arte. Vê-se a tentativa do Artista de compreender o mundo a sua volta, seja nos aspectos históricos e sociais, como também artísticos e estéticos, numa incessante busca pelo conhecimento e pela verdade.

A narrativa do filme é bastante interessante e muito inovadora. Ela é estruturada a partir de oito blocos narrativos autônomos, compostos por histórias não lineares a partir da seleção de faixas temporais. Não são narrados exclusivamente momentos da vida do grande pintor russo, pelo contrário, não há o protagonista clássico, no qual a narrativa e os acontecimentos desenvolvem-se a sua volta. Este é um dos pontos inovadores desenvolvidos por Tarkoviski, pois Rublev é um “observador”-, os acontecimentos desenvolvem-se aquém dele, por isso o filme perde o caráter biográfico e, até mesmo, histórico, pois ambos não são importantes-, o central é a “ideia”, na sua acepção estética e filosófica do termo.

A inovação de Tarkoviski, na estrutura narrativa de “Andrei Rublev”, foi extremamente mal recebida pelo público, pela crítica e pelos políticos soviéticos. Eles alegavam que a narrativa do filme subvertia os dados históricos e a biografia do grande pintor russo. Bradavam ainda que o cineasta desconsiderou a conjuntura materialista histórica dialética e que ainda não se utilizou dos preceitos da estética “Realista Socialista”, que vinha no seu auge criativo com o cineasta Mikhail Kalatazov através do filme “Soy Cuba” (1964). Devido a este conjunto de fatores, Tarkoviski foi censurado e execrado pela crítica cinematográfica soviética. No entanto, fora da Rússia, “Andrei Rublev” recebeu diversos prêmios, dentre eles o “Prêmio da Crítica” do Festival de Cannes. O filme é ainda considerado um dos mais importantes da história do cinema.

A importância e a qualidade do filme “Andrei Rublev” também se sustenta a partir do seu conteúdo e da maneira como Tarkoviski o concebe, dando-lhe uma dimensão que vai além da narrativa, chegando ao nível filosófico. Tarkoviski foi único cineasta, na história da Sétima Arte, no qual a sua obra conseguiu se aproximar, mas não chega, das características do maior de todos os cineastas: o sueco Ingmar Bergman. Ambos cineastas (um mais, outro menos) intelectualizaram a realidade efetiva e fizeram com que a Arte fosse a expressão máxima dela. Para eles, o mundo é a representação, ou seja em termos schopenhauerianos, a vontade de representação do Artista, através da sua obra de Arte. O que move esta vontade é a investigação gerada, de acordo com Schopenhauer, por uma necessidade metafísica.

O Artista pretende decifrar o enigma do mundo, não pelo conhecimento racional (isto cabe a ciência), mas através da Arte e é justamente isto que Andrei Rublev almeja fazer. Ao longo do filme, Rublev tenta compreender o mundo a sua volta de forma racional a partir dos três pontos de referência que ele possui: a fé, a crença na sociedade russa e a Arte. Contudo, ao longo da narrativa, ele perde a sua crença nestes três pontos, voltando a acreditar somente na Arte, quando conhece o jovem sineiro Boriska, isto no final do filme.

A fé de Rublev é abalada no momento em que as questões e as respostas da teologia cristã não conseguem lhe satisfazer o espírito incessantemente interrogativo e contemplativo. Ele fica maravilhado com a pureza e a liberdade de um culto pagão, mas se decepciona, quando cavaleiros, em nome da santa religião, matam brutalmente os pagãos. Sua crença na sociedade e no povo russo é abalada ao presenciar as guerras e as invasões tártaras, na qual um príncipe russo se alia aos tártaros para tomar o trono de seu irmão gêmeo. Por seu turno, sua crença na Arte é abalada no momento em que suas pinturas são destruídas e pelos ciúmes e inveja do seu grande amigo Kiril para com ele. Rublev perde completamente os seus três pontos de referência no momento em que mata um soldado tártaro. Ele havia tirado uma vida, não criado algo-, decide parar de pintar e se isola num mosteiro.

Rublev reata a sua crença na Arte, na mais bela cena do filme: “A fabricação do sino”. Ele observa o modo que o jovem sineiro Boriska fabrica o sino: não aceitando conselhos e, muito menos críticas-, indo apenas com a sua intuição e espírito criativo. Boriska representa o Artista, o Gênio criador. Ele tem a capacidade preponderante de apreender as idéias e a realidade das coisas por intuição contemplativa e puramente objetiva, ou seja a capacidade criativa. Isto desperta Rublev. O pintor pede para que o jovem o acompanhe: um pintando e o outro fazendo sinos.

Em “Andrei Rublev”, Tarkoviski realizou uma obra de profundidade filosófica cheia de questões relacionadas à estética e a metafísica. Através do personagem Rublev há a discussão do papel do Artista na sociedade e a função da Obra de Arte. Tarkoviski realiza o filme a partir de uma “metafísica do belo”, no qual o conhecimento estético se torna algo que não pode ser comunicado mediante doutrina e conceitos, mas apenas, como salienta Schopenhauer, por meio de Obras de Arte. “Andrei Ruiblev” é uma das grandes e mais importantes obras da Sétima Arte. Aos que a censuraram, por não ser fiel ao contexto histórico, cabe as palavras de Aristóteles, retiradas do livro V da “Arte Poética”, sobre a diferença entre a História e Literatura: “a primeira narra o que foi, a segunda narra o que poderia ter sido”. O filme “Andrei Rublev” narra aquilo que poderia ter sido e, acima de tudo, o que pode ser.

Araraquara, 20 de janeiro de 2009.

Vick Barcelona Cristina: onde está Woody Allen?

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Woody Allen é um dos cineastas mais prolíficos da história do cinema, ao longo de quarenta anos, atuou, produziu, escreveu e dirigiu quarenta e dois filmes com um estilo único e inconfundível, indo da comédia ao drama moderno, criando, às vezes, personagens que se confundem com o próprio sujeito empírico de Allen. No entanto, o filme “Vick Cristina Barcelona” (Espanha, 2008) destoa um pouco do estilo de Woody Allen: não há Manhattan, longos diálogos, jazz e nem mesmo a atuação de Allen. "Vick Cristina Barcelona" é uma produção espanhola, rodada em Barcelona com os dois atores espanhóis mais famosos da atualidade: Penélope Cruz e Javier Barden. Woody Allen foi contratado para fazer um filme “propagandístico” sobre a cidade.

Toda a narrativa do filme gira em torno das amigas Vick (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) e na maneira que elas se relacionam com Juan Antonio (Javier Barden) e, posteriormente, com Maria Elena (Penélope Cruz) durante a estadia de ambas em Barcelona. No entanto, Allen não cai no clichê do triângulo amoroso de duas estrangeiras com o esteriótipo do sedutor espanhol. Ele constrói bem todas as personagens, caracterizando-as entre o apolíneo e o dionisíaco.

Vick é uma típica intelectual acadêmica. Vai à Barcelona fazer mestrado sobre a arte e a cultura Catalã. Nela pode-se notar todos os impulsos apolíneos, destacando a racionalização e o cientificismo. Por seu turno, Cristina é uma artista, almeja se expressar através da arte, tenta se descobrir através dela. É totalmente impulsiva e dionisíaca, está em constantes devaneios.

A grande sacada de Allen é não ter caído no clichê do triangulo amoroso. O tema central da narrativa é justamente a tentativa de conciliação entre os impulsos dionisíacos e apolíneos, no sentido nietzschiniano dos termos, ou seja, na conciliação e fortalecimento da amizade entre as duas amigas: Vick e Cristina, esta conciliação se dá em Barcelona, um local de descoberta e auto-conhecimento para ambas. Uma depende da outra, o que falta em uma, tem na outra e vice-versa.

É difícil ver um filme de Woody Allen sem ter jazz e Nova Iorque. “Vick Cristina Barcelona” é um filme encomendado. Mas, ele peca em não explorar Barcelona. Ela quase que não aparece, mesmo estando no título do filme. Alguns elementos do estilo de Allen continuam: narrador off e diálogos inteligentes. Com este filme, uma coisa é certa, Allen garantiu a produção do seu próximo filme, no qual, com certeza, haverá jazz, Nova Iorque e o próprio Woody Allen.