A ‘Arca Russa’ Cinematográfica

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O Cinema Russo possui grandes teóricos e, principalmente, excelentes cineastas, que em diversos momentos exerceram as duas funções como é o caso de Lev Kulechov (1899-1970), Vsevolod Pudovkin (1893-1953) e o principal Serguei Eisenstein (1898-1948). Em seguida, do país surgiram cineastas como Mikhail Kalatozov (1903-1973) e, o maior de todos, Andrei Tarkovski (1932-1986); bem como um dos mais notórios da atualidade: Alexandr Sokurov (1951-), dirigindo filmes de destaque como “Mãe e filho” (1997), “Moloch” (1999), “Pai e filho” (2003), “O sol” (2004), e o seu mais premiado “Fausto” (2001). Contudo, o seu filme mais ousado tecnicamente e artisticamente é a produção “Arca Russa” (2002). 

Há a tela escura, aparecem os créditos: produção, equipe técnica, e o último e mais importante nome, o do diretor anunciando que o filme é de Alexandr Sokurov. Depois, uma voz em off, que se configurará como sendo o narrador e através do qual compartilharemos o ponto de vista, aparece, sofrera um acidente. O espaço-tempo é quebrado, a personagem é transportada para o museu Hermitage, em São Petersburgo na Rússia. Acredita estar no ano de 1700, devido às vestimentas. Assim começa “Arca russa”, nos próximos 88 minutos o espectador compartilhará da visão deste personagem, que não aparece no quadro, mas é através dele, do seu ponto de vista, que o enredo se desenvolve no espaço dos corredores do museu e no tempo da história russa. 

O enredo de “Arca russa” é o espaço, o próprio museu Hermitage com os seus corredores, galerias, salas com as suas obras representadas por pinturas, esculturas como também por pessoas, já que o museu também é o local de depósito da memória coletiva, daquilo que uma dada cultura produz e é considerado de valor artístico, histórico, etc. A personagem que compartilhamos do ponto de vista tem como guia um estrangeiro, com quem vai dialogando, divagando sobre temas relacionados à arte e à história russa, precisamente do ano de 1700 até os prelúdios da Revolução russa (1917), com uma breve citação ao “Cerco a Leningrado” (1941-44) durante a II Guerra Mundial (1939-1945). 

O filme é rodado a partir de um único plano chamado tecnicamente de “plano-sequência”, no qual não há a fragmentação da ação, da cena, em diversos planos que são unidos por cortes, criando uma “manipulada” unidade de ação, tempo, espaço e sentido. Fazer um filme longa metragem composto apenas por um único plano é uma das tarefas mais ousadas e difíceis dentro da linguagem cinematográfica devido à questões técnicas de fotografia, direção de arte, produção e da própria direção da empreitada. As preparações de filmagem de “Arca russa” duraram sete meses, sendo filmado em apenas um dia, em 23 de dezembro de 2001 no museu Hermitage, em São Petersburgo, utilizando mais de três mil figurantes. 

Um filme, predominantemente, é composto por unidades segmentadas chamadas de planos que são unidos através de técnicas de montagem. No plano-sequência questões técnicas se mostram como a maior dificuldade; no entanto, há também questões de ordem estética, pois neste tipo de plano a unidade de espaço e tempo é preservada. A ação se desenvolve de forma contínua na frente da câmera, que se movimenta, como também as próprias personagens que devem se movimentar dentro do plano, ora entrando ora saindo do quadro, quebrando, assim, o efeito naturalista. O tempo é preservado na sua unidade, mostrado na sua duração objetiva, o que é possível apenas com a ação contínua e o movimento no espaço. 

No cinema há duas formas para se mostrar aquilo que está no universo da ação: a câmera objetiva com diversos pontos de vista; e a câmera subjetiva que simula o ponto de vista de uma personagem. O plano-sequência escolhido por Sokurov é baseado na câmera subjetiva. O espectador compartilha do ponto de vista de uma personagem, no caso de “Arca russa” tem-se um interessante efeito de pontos de vista de quem vê e o que é visto, podendo ser associado com “um jogo” similar que há no quadro “As meninas” (1656) pintado pelo espanhol Diego Velázquez (1599-1660). No quadro, o espectador da obra, dentre uma das interpretações, compartilha do ponto de vista das figuras pintadas, que não aparecem no quadro, a não ser por um reflexo no espelho. 

Por fim, o que é mostrado no filme de Sokurov, “Arca russa”, não é apenas os corredores do museu Hermitage, obras de arte e personagens históricos que parecem encenar partes da história da Rússia; mas também o próprio transcorrer do tempo no espaço. Se o cineasta russo Dziga Vertov (1896-1954) fez o filme “Um Homem com uma Câmera” (1929) mostrando a dinâmica da sociedade russa em ambientes externos, Sokurov preferiu o espaço fechado do museu para mostrar a sua concepção de arte, de história, de cinema. Para Sokurov, o cinema é a arte da imagem em movimento, fazendo o plano-sequência ser o ápice do movimento na imagem.



Ocupações Estudantis Vistas no Cinema e em Araraquara

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Desde a antiguidade clássica, na Grécia antiga, há o conceito de mimeses, no qual a arte representaria o real. Deste modo, a realidade objetiva poderia ser representada pelas linguagens artísticas. Na modernidade, o cinema surge como uma linguagem que estabelece, nas suas próprias bases, uma estreita relação com o real através do conceito de “efeito de realidade”, pois a imagem cinematográfica teria a capacidade de ser tomada como “fiel” e “verdadeira” frente ao real. O documentário chileno “A rebelião dos pinguins” (2007), não apenas devido ao gênero cinematográfico documental, mas também devido ao tema, serve como base de compreensão e entendimento sobre o movimento estudantil secundarista do Chile de 2006 e do que ocorre no Brasil atualmente. 

Em maio de 2006, uma onda de manifestações, feitas por estudantes secundaristas (ensino médio) com idade entre 14 a 17 anos, ocorreu na maioria das cidades chilenas. Os estudantes reivindicavam melhorias no ensino público bem como a não efetivação de propostas governamentais que iriam contra os interesses da classe ao beneficiar setores que lucravam com a educação. Começaram com passeatas, parando as principais vias das cidades, quando foram duramente violentados pelos aparatos repressores do estado, a mobilização e o apoio aumentaram, vindos de diversos setores da sociedade chilena, tais como sindicatos, professores, estudantes universitários, etc. 

Depois de tomarem as ruas e conseguirem praticamente “parar” o país, os estudantes secundaristas chilenos adotaram outra tática: a de ocupação de escolas públicas. De atores secundários nos processos políticos do país passaram a ser protagonistas, exigindo a demissão do ministro da educação (o que foi feito), maior participação na decisão das políticas públicas para a educação. O movimento, então denominado de “a rebelião dos pinguins” devido ao uniforme escolar dos alunos, serviu de inspiração para os estudantes secundaristas dos países vizinhos, ocorrendo focos de manifestações em defesa do ensino público no Equador, Colômbia, Argentina, Venezuela. 

No documentário “A rebelião dos pinguins”, todo o percurso do movimento de ascensão dos estudantes secundaristas chilenos é mostrado, começando pelos precedentes na época da ditadura militar (1973-1990) no qual possuíam um papel secundário, até mesmo os elementos iniciais que levaram ao processo de organização da mobilização dos estudantes, tais como questões mais imediatistas como o atraso no repasse do passe escolar ou o alto valor das taxas dos vestibulares, passando pela não aceitação das políticas do estado chileno para a educação. O movimento chileno ganha êxito devido as suas táticas ao incorporar novas ferramentas advindas da internet como as redes sociais, vlogs, blogs, etc. 

O que ocorreu no Chile em 2006 e mostrado no documentário “A rebelião dos pinguins”, encontra um paralelo no que ocorre no estado de São Paulo a partir de novembro de 2015. Estudantes paulistas do ensino médio resolvem ocupar diversas escolas estaduais com o objetivo de barrar a imposta reestruturação das rede estadual de ensino paulista, que os afetariam negativamente. Segundo os estudantes, e com toda a razão pois são os afetados diretamente pelas péssimas mudanças propostas, a reestruturação proposta fecharia algumas escolas, obrigando os alunos a serem remanejados para outras na grande maioria das vezes distantes, já lotadas e sem estrutura. 

Em Araraquara (interior de São Paulo), a Escola Estadual Lysanias de Oliveira Campos foi ocupada no final de novembro de 2015 por um grupo significativo de excelentes alunos que não concordam com a reestruturação escolar. A ocupação instituiu e estimulou novas práticas enriquecedoras para os adolescentes, como um convívio em grupo que deve ser organizado, mas segundo as próprias regras dos alunos. De imediato receberam o apoio da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara (através da congregação do dia 26/11/2015), de profissionais liberais, trabalhadores, professores e de estudantes de outras escolas da cidade, além dos pais. 

Os estudantes que fazem parte do movimento que estão ocupando a escola Lysanias de Oliveira Campos em Araraquara possuem um diferencial muito grande por terem um senso de coletividade, de grupo, de organização, além de um pensamento crítico e social extraordinários. São jovens entre 14 a 17 anos que estão participando de um processo não apenas político, pois reivindicam e possuem pautas próprias, mas também psicossocial, pois o amadurecimento humano e a consciência de classe, política e de luta os colocam na posição de protagonistas, assim como no Chile, das mobilizações populares horizontais e livres no país atualmente. Os estudantes estão sendo ouvidos e aclamados por grande parcela da sociedade; devendo ser temidos pela classe política. Como prometido: #ocupalysanias.

O “Fausto” cinematográfico de Sokurov

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"O diabo na rua, no meio do redemoinho". O homem é demasiado humano, ora sem consciência e paciente frente aos infortúnios e aos “joguetes” das entidades “superiores”, como na narrativa mítica de matriz judaica do “Livro de Jó”; ou mesmo quando toma consciência da sua impotência e, almejando superá-la, se volta para com o pacto com o “pai dos revoltosos”: o Diabo. Neste contexto, uma das figuras mais emblemáticas e fascinantes é a de Fausto, possuindo sua gênese nas narrativas histórico-míticas germânicas do final século XV, teve sua sedimentação nos séculos seguintes na tradição literária com os escritores Marlowe, Lessing e na versão mais conhecida feita por Goethe. No cinema, a história de Fausto foi trabalhada pelo cineasta russo Alexandr Sokurov, em 2011. 
 
Há uma linha tênue entre a construção do Fausto mítico e do suposto personagem histórico que possa ter existido no final do século XV. O que se tem é que um certo Johann Georg Faust foi um personagem famoso, na região onde hoje é a Alemanha, por suas habilidades enquanto alquimista, astrólogo, mago, médico e vidente. Um homem com uma gama gigantesca de conhecimento para os padrões da época, o que lhe rendinha a acusação de ter feito um pacto com o Diabo. Deste modo, a sabedoria, o acúmulo, ou mesmo a busca pelo conhecimento era algo considerado “estranho” perante à sociedade predominantemente teocentrista da época, na qual o mundo e os fenômenos não careciam de explicações racionais para além das explicações religiosas. 
A passagem do Fausto histórico-mítico para o literário ocorreu com o escritor inglês Christopher Marlowe (1564-1593) através da peça de teatro “A Trágica História do Doutor Fausto” (1592), na qual vários elementos são sedimentados e outros são criados. Fausto se torna um homem obcecado pelo conhecimento e por uma pretensa busca de onipotência para além dos limites humanos ou mesmo um inconformismo com os limites de conhecimento da sua época, objetivando ir além das “leis da natureza”. Para concretizar o seu objetivo, Fausto evoca o demônio Mefistófeles para realizar o pacto e vender a sua alma para o Diabo. 

A peça de Marlowe influenciou o escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) na sua peça “Dr. Fausto” (1760). No entanto, a obra de Lessing ganha importância pois pode ter sido a fonte de influência para a peça “Fausto, uma tragédia” (1808) escrita pelo também alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). A peça, também designada de “Fausto I”, é a obra literária mais famosa e influente sobre a figura de Fausto. Na narrativa de Goethe há vários elementos recorrentes de outras obras, tais como: a busca pelo conhecimento, o pacto, a figura humana ansiando por ir além das suas limitações. O elemento que ganha destaque é a figura de Margarida (Gretchen), que passa a ser responsável pela salvação da alma de Fausto. 

No filme “Fausto” (2011), de Sokurov, tem-se a figura de Fausto, um médico e estudioso que busca o conhecimento. Nas cenas iniciais, a personagem disseca um cadáver em busca do local de onde estaria armazenada a alma humana; sem êxito, sem dinheiro ou resposta, acabar por ir penhorar um anel. O dono da casa de penhores, a versão do cineasta russo para Mefistófeles, recusa-se a comprá-lo. Em seguida, ambos partem pela cidade, ora divagando sobre temas filosóficos em relação à essência da alma humana, o tempo, etc; ora em relação a um jogo de interesses e desejos. Ao encontrar a bela jovem Gretchen, Fausto se apaixona e na ânsia de amá-la, resolve fazer um pacto com o demônio (“Teufel” em alemão), assinando-o com o próprio sangue. 

Sokurov faz um filme esteticamente interessante, o formato da projeção não são os comuns “widescreen” 16:9 ou 4:3, nem mesmo o cinemascope; mas, sim, um formato de tela quadrada com as bordas arredondas. As lentes utilizadas distorcem a imagem, deixando a bordas desfocadas, o que cria um efeito de estranhamento no espectador acostumados com formatos e fotografias naturalistas. O cineasta trabalha ainda com o diretor de fotografia Bruno Delbonnel, o mesmo do filme francês “O fabuloso destino de Amélie Poulain” (2001). 

Nas narrativas míticas e literárias, o Diabo é mais próximo do homem do que o seu criador. O pacto, na rua, no meio do redemoinho, ou mesmo na encruzilhada, é uma forma de ir além das capacidades demasiadas humanas, é uma forma de elevação. No filme de Sokurov, Fausto é um intelectual, um doutor, domina a filosofia, teologia, astrologia e a anatomia humana; mas, mesmo em meio a uma miséria social e econômica, o motivo para o seu pacto é o desejo de “passar uma noite” com sua recente amada. Por fim, “o motivo faustiano” serve de base para artistas como os escritores Marlowe, Lessing, Goethe, e o mais contemporâneo Thomas Mann, e para os cineastas como F.W. Murnau e o mais recente Alexandr Sokurov.


Trailer do filme


O Retrato do Brasil em “Que horas ela volta?”

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No “Mito da caverna” de Platão, o filósofo grego faz uma alegoria da condição humana frente à realidade. Para ele, o mundo real seria uma cópia do mundo das ideias, o mundo perfeito. Nós, humanos, estaríamos acorrentados frente a uma parede de uma caverna e veríamos apenas as sombras dos objetos e de outros seres projetadas. Fazendo uma analogia com o “mito da caverna”, as relações cotidianas e ordinárias, além de mecânicas e automatizadas, provocam a não percepção, ou mesmo a não compreensão, do mundo ao nosso redor, cabendo à Arte o papel de libertadora e “desautomatizadora” da vida e da sociedade. No filme brasileiro “Que horas ela volta?” (2015), a diretora Anna Muylaert (1964-) “lança uma luz” esclarecedora sobre as transformações ocorridas na sociedade brasileira nos últimos treze anos. 

No filme, Val (Regina Casé) é uma empregada doméstica, que mora na casa dos patrões, e reencontra a filha depois de alguns anos. Jéssica decide ir até São Paulo para prestar o vestibular de Arquitetura para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP (Universidade de São Paulo). Ao chegar na capital paulista, se surpreende com o fato da mãe morar na casa dos patrões. A rotina de Val e dos outros membros da casa: esposa, marido e filho é quebrada, pois Jéssica não aceita reproduzir a postura de servilidade da mãe, acostumada apenas a servir e a se colocar em uma posição muito inferior e subalterna em relação aos membros da família para quem trabalha. 

Jéssica prefere estudar a “ajudar” a mãe nos afazeres de empregada doméstica. A jovem possui um perfil contestador, de análise, de questionamento. Ela não quer reproduzir a vida da mãe, suas oportunidades agora são outras. Mesmo não possuindo as mesmas condições sociais, ela presta o vestibular, passa para o segunda fase, enquanto o filho dos patrões, com toda a estrutura e condições, não. O interessante do filme é que há uma inversão na lógica do aprendizado: do natural de pais ensinarem uma visão mundo para os filhos, de a filha ensinando para mãe, a partir de questionamentos e uma nova postura, que os indivíduos (a sociedade) mudam, evoluem e que algumas estruturas sociais não são estáticas e perenes; mas, sim, dinâmicas. 

Algumas estruturas e relações sociais brasileiras foram historicamente construídas e uma das mais perenes, que tem as suas bases no início do processo de colonização do país no século XVI, é a “Casa grande e a senzala”, que são símbolos da relação entre classe opressora e classe oprimida, inicialmente representada pelo casa grande, local onde residia os senhores do engenho e os detentores do poder e, em anexo, a senzala com os escravos e em alguns momentos os serviçais, como destacado na obra de Gilberto Freyre. Analisando as plantas das residências das elites brasileiras, mesmo após o fim da escravidão, nota-se a existência daquilo que se chamou de “o quartinho da empregada”, na maioria das vezes próximo à cozinha e/ou à lavanderia, demonstrando que algumas estruturas sociais não se modificaram. 

O filme de Muylaert, juntamente com os filmes brasileiros “Casa Grande” (2014) e “Som ao redor” (2013) contribuem para a reflexão das transformações sociais e culturais ocorridas no Brasil nos últimos treze anos. Em “Casa grande”, de Felipe Barbosa, tem-se a queda das elites brasileiras, ou seja, a ruína da “casa grande”, de modo que uma família rica, tradicional e historicamente detentora do poder e de prestígio social acaba por perder a posição de privilégios frente a uma nova configuração social, não mais excessivamente estática, onde havia a garantia de reprodução de modelos e estruturas sociais. 

Já na produção “O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho, há justamente a tentativa de proteção das elites brasileiras frente a uma nova realidade. No filme, os moradores de uma rica rua de Recife têm a rotina quebrada quando um grupo de seguranças particulares propõem garantir a segurança das “redondezas”. O que se tem no filme é algo similar a um processo de “condominização” da sociedade brasileira, no qual haverá a tentativa por parte das elites de criar espaços fechados, “feudos”, conhecidos como “condomínios fechados”, que não interagem com o resto do espaço social, criando espaços homogêneos. 

Em “Que horas ela volta?”, temos o processo final de transformação da sociedade brasileira nos últimos anos sendo mostrado, aquele mais profundo, baseado na consciência de classe, como o demonstrado pela personagem Jéssica e transmitido para a sua mãe, Val. A filha se recusa a “seguir os passos” não da mãe, mas aqueles que lhe seriam legados historicamente devido a sua classe social. Libertando-se, também liberta a mãe. Já não são mais as mesmas, estão em comunhão. Libertaram-se de amarras históricas através do pensamento crítico e social. Assim, elas nunca mais voltarão para aquela condição de submissão social, não adiantando perguntar que horas, pois o tempo presente, a vida presente se transforma. Através do cinema podemos ver esta transformação de forma mais lúcida.

Trailer do filme "Que horas ela volta?"

A história Concisa da Sessão Zoom

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A Sessão Zoom é um projeto de cinema criado em 1978 por alunos da Faculdades de Ciências e Letras da UNESP. A história do projeto se relaciona com a da cidade de Araraquara (interior de São Paulo) e se mescla com o contexto histórico do Brasil, podendo ser dividida em três fases: uma fase de 1978 a 1999; a segunda fase entre 2003 a 2007; e a terceira fase de 2013 até a atualidade. Em cada fase, tem-se a relação com espaços de exibição (cinemas de rua, shoppings, praças, bibliotecas etc.) e formatos: 35mm e digital; e uma curadoria, dependendo do contexto histórico, que caminha entre a proposta de formação cinéfila e/ou a engajada politicamente e socialmente. 
  
Há um precedente que dará início ao processo que consolidará o projeto que ficará conhecido na cidade como ‘Sessão Zoom”. No entanto, por falta de documentação, resta apenas a “memória afetiva” dos que viveram diretamente o período ou ouviram relatos de parentes ou conhecidos. A história do projeto pode remontar ao ano de 1961 quando Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara foi transferida para o centro de Araraquara, onde é hoje a Casa da Cultura. Atividades de exibição cinematográfica em 16mm são realizadas esporadicamente. No ano de 1968, as atividades se intensificam, sendo criada o “Zoom Cine Clube”, em 1970. 

Em 1973, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara foi transferida para o bairro Campus Ville, localizado fora da regiãoc entral da cidade. Em 1976, era criada a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”-Unesp. As atividades cineclubistas continuaram até o ano de 1977 no âmbito da universidade. Em 1978, tem-se a primeira fase da Sessão Zoom que adota o nome que possui até os dias de hoje, passando a dialogar com a população araraquarense ao exibir filmes em 35mm nos cinemas de rua, principalmente, Cine Capri e Cine Veneza na região central da cidade.

Entre 1978 a 1999, a Sessão se consolida como importante projeto de difusão cultural através do Cinema. Os filmes exibidos são predominantemente expressões artísticas dentro da linguagem cinematográfica. Neste período, o “Cinema de rua” cede espaço na sua programação para a exibição de filmes que não faziam parte do circuito comercial de cinema. O projeto foi um importante fomentador de cultural na cidade, ampliando a suas atividades para debates, palestras, objetivando uma difusão cultural e uma formação de público mais ampla, nãos se restringindo apenas à Unesp. 

No ano 1999, as atividades da Sessão Zoom foram suspensas. Em 2002, um grupo de indivíduos ligados à Unesp, Sesc e Prefeitura de Araraquara se juntaram para organizar o “Ciclo do Novo Cinema Brasileiro” no espaço do antigo Cine Capri, alugado pela Prefeitura Municipal de Araraquara, denominado de “Espaço Cultural Paratodos”. Assim, a partir do sucesso do ciclo de cinema, a Sessão Zoom tem a sua segunda fase iniciada em 2003, indo até o ano de 2007. No final de 2006, o espaço cultural Paratodos é fechado e as sessões são transferidas para o Cine Lupo, no Shopping Lupo, permanecendo até o final de 2007, quando, novamente, por falta de espaço, é encerrada. 
Em 2013, o coletivo “Colmeia Cultura” de Araraquara resolve reviver a Sessão Zoom a partir de leis de incentivos fiscais (Lei Rouanet). Com o projeto aprovado e orçamento captado, as atividades são iniciadas em setembro de 2013, indo até maio de 2014 com os recursos captados. Em setembro de 2014, o projeto firma uma parceria com o SESC Araraquara. A partir da terceira fase, o projeto buscou a exibição cinematográfica em novos espaços: praças públicas, teatros, centros culturais, etc. Sua atuação e divulgação é basicamente no meio virtual através de redes sociais, principalmente o facebook (www.facebook.com/sessaozoom). 

Por fim, a Sessão Zoom passou por vários formatos: 35mm e digital, sendo exibida em diversos espaços da cidade. Em 2015, suas atividades se caracterizam por quatro exibições mensais: duas sessões semanais no Cine Lupo, com ingressos a R$2,00; uma sessão na praça das Bandeiras ao ar livre; e outra no teatro do SESC, sempre com filmes de qualidade. Atualmente, ela se consolida como importante projeto cultural de Araraquara, não apenas pela imensa riqueza histórica, mas também expressando as novas dinâmicas sociais com a sua organização para além de instituições, sendo baseada em livre organização e gestão a partir de indivíduos que têm a paixão pela sétima arte como elemento principal, além da centelha da cultura e da produção independente; mas, sempre de resistência.

O Cinema e as Emoções

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Fazemos Arte porque viver não é o bastante. Comer, excretar, respirar não é o suficiente para a vida demasiada humana. Precisamos existir, sentir, admirar, contemplar, para isso criamos, fazemos Arte. Tomamos a consciência criativa como sendo a própria consciência do mundo e de nós mesmos. Como espectadores da Arte, observamos, analisamos e, principalmente, sentimos. A capacidade de suscitar emoções é uma das principais características das linguagens artísticas seja a partir da leitura de um texto literário; da melodia de uma música que caminha entre o som e sentido; dos movimentos rítmicos e repousos da dança; do estático e imortal momento retido pela escultura ou pintado em um quadro, ou mesmo através das camadas de significação do cinema. 
O Cinema é uma linguagem artística peculiar, pode ser considerada como sendo a síntese de todas as outras, pois trabalha a imagem (em movimento), a palavra e o som. Ele afeta os nossos dois principais sentidos: a visão e a audição, com os quais tomamos uma consciência maior do real e, principalmente, pelos quais somos afetados emocionalmente de forma mais intensa. Se uma fotografia, com sua composição “desenhada pela luz”, ganhando forma pelo enquadramento e a visão de determinado anglo, pode nos afetar, a música potencializa não apenas o efeito de sentido, mas também a carga de emoção. A alegria, a euforia, a dor, o medo, a angústia, a ansiedade, o êxtase pode ser sentido ou assimilado à filmes. Temos filmes que nos fizeram chorar, querer correr, vagar pelo mundo, voar, arrumar um amor, ou mesmo morrer, mesmo que simbolicamente. 

Frances corre pelas ruas de Nova Iorque, ela está feliz, seus ligeiros passos se alternam com alguns de dança: rodopia, salta, movimenta-se. A música “Modern love”, de David Bowie, potencializa a euforia, que também é nossa, assim como é de Frances Halladay. A cena dura exatos quarenta e nove segundos e nos cinco segundos seguintes, ela entra em seu apartamento vazio, não há música, não há ninguém, a sensação muda, sentimos outra coisa. Enquanto a música toca, ela corre, dança, esbarra nas pessoas que sempre estão em sentido contrário, seu semblante é de felicidade, uma infinita felicidade, que na língua inglesa tem o seu significante praticamente intraduzível para outros idiomas: "bliss". 

Na Grécia antiga, tem-se a simbologia das duas máscaras do teatro clássico para representar a comédia e a tragédia: a primeira está sorrindo enquanto a segunda possui um semblante triste. Chaplin conseguiu dar um tom melancólico ao riso com o seu personagem Carlitos, algo que os românticos fizeram com a sua leitura das inicialmente cômicas andanças pelo interior da Espanha do “cavaleiro da triste figura” Dom Quixote de la Mancha com o seu cavalo Rocinante e o seu fiel escudeiro Sancho Pança. A pequena Olive Hoover está a caminho do concurso “pequena miss sunshine”, na van amarela estão seu tio, irmão, o pai e a mãe. Sua apresentação artística no concurso, que foi ensinada pelo avô, será apresentada ao som da música "Super Freak”, de Rick James; todos dançam, nós rimos. 

Alguns filósofos proclamam que sentimos “medo do desconhecido”. No caso dos filmes de terror, já sabemos o que encontraremos, o que sentiremos e, mesmo assim, assistimos. Não se assiste a filmes de terror durante o dia; o sol, a claridade, ou mesmo a lucidez, faz parte deste momento apolíneo. Filmes de terror são para serem ”vividos” à noite, no escuro, na confusão de sentidos, no “frio do estômago”. Sentimos mais à noite, dionisíaco período. Por fim, tem-se o abraço de conforto e a segurança com a companhia, pois também não se assiste a filmes de terror sozinho. Queremos sentir medo para depois sermos abraçados, acalentados, afagados. Com Pazuzu possuindo uma garotinha, ou mesmo um grupo de pessoas passando um final de semana em uma cabana em uma região deserta, buscamos participar do congresso internacional do medo. 

Camões espera ter “engenho e arte”, ou seja, técnica e inspiração para escrever “Os lusíadas”. Os críticos e estudiosos, paradoxalmente, esgotam e desertificam a obra de arte com discursos e estruturas acadêmicas pretensiosamente científicas com um líquido método. Pode-se ter gozo com o intelecto, com jogos, falácia, verborragia; mas a sinestesia é o que cria a marca, a cicatriz no ser. Selma Jezková é a síntese, protagonista da obra que pode criar labirintos retóricos de análise e/ou mesmo catarses coletivas em indivíduos que comungavam, antes do espaço virar profano, no cinema. Selma caminha os 107 passos até o silêncio que é quebrando pela expressão serena e pelo canto, depois volta-se ao silêncio, em seguida ruídos, e, por fim, soluços, choros, nossos prantos. 

O Cinema é uma fonte e, por vezes, responsável pela nossa associação com sentimentos, emoções. Podemos assistir a filmes não para fugir da realidade, da vida ordinária cotidiana, mas, sim, para senti-la de forma extraordinária, senão apenas comeríamos, excretaríamos e respiraríamos. Viver não é o suficiente, sentir é preciso: ‘Frances Ha” nos faz sentir alegria e melancolia na sua vida de bailarina desengonçada; Olive dança, une a família para empurrar a van que a levará a um concurso de miss mirim; o medo é a única certeza daqueles que “leem o livro dos mortos”; e Selma nos mostra a apoteose do humano, na nossa briga entre a razão e a emoção, o apolíneo e o dionisíaco, vencendo o último, nos deixando com uma imensa tristeza, o que contraria o versos do “Samba da benção” e concordando com os de Fernando Pessoa: “E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão,/Esse comboio de corda/Que se chama coração.”

Sinta:

Euforia e melancolia


Ria


Medo


Angústia demasiada humana

Exposição "Sessão Zoom meio século de cinema alternativo"

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Link do evento no facebook: https://www.facebook.com/events/689704511165553/




O Cinema segundo o Dogma 95

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O Cinema é uma Arte que depende de elementos tecnológicos para existir e para o desenvolvimento da sua linguagem, equipamentos para captação de imagens (câmeras) e projeções (projetores) são fundamentais para a sua existência. Conforme a linguagem do cinema se desenvolve e ganha significação social, surgem movimentos e teorias ditando como deve ser a criação cinematográfica, destacando quais são as características permitidas e/ou quais seriam os recursos negados. O conjunto de regras forma preceitos estéticos que vão caracterizar a criação artística, assim destacados por movimentos artísticos como o Expressionismo alemão, o Surrealismo, o Neorrealismo italiano, a Nouvelle vague francesa, o Cinema novo brasileiro e, o mais recente, o Dogma 95. 

O movimento cinematográfico conhecido como Dogma 95 surgiu em Copenhague, capital da Dinamarca, no ano de 1995, sendo apresentado ao mundo na capital francesa em um evento que comemorava os cem anos do “nascimento do cinema”. O movimento teve os cineastas Lars von Trier (1956-) e Thomas Vinterberg (1969-) como idealizadores, sendo os responsáveis por criar os preceitos estéticos, baseados em dez regras, ou “voto de castidade”, lançadas em forma de manifesto:

1) As filmagens devem ser feitas no local. Não podem ser usados acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher um ambiente externo onde ele se encontre). 

2) O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se filma a cena). 

3) A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos - ou a imobilidade - devidos aos movimentos do corpo. (O filme não deve ser feito onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar). 

4) O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial. (Se há muito pouca luz, a cena deve ser cortada, ou então, pode-se colocar uma única lâmpada sobre a câmera). 

5) São proibidos os truques fotográficos e filtros. 

6) O filme não deve conter nenhuma ação "superficial". (Homicídios, Armas, Sexo, etc. não podem ocorrer). 

7) São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (O filme ocorre na época atual). 

8) São inaceitáveis os filmes de gênero.

9) O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm, padrão, com formato de tela 4:3. Originalmente, o regulamento exigia que o filme deveria ser filmado em 35 mm, mas a regra foi abrandada para permitir a realização de produções de baixo orçamento. 

10) O nome do diretor não deve figurar nos créditos. Para que um filme fosse considerado pertencente ao movimento, uma cópia deveria ser enviada para ser analisada em Copenhague e somente assim a obra ganharia o “selo dogma”. 


É interessante notar o contexto que o movimento surgiu: na década de 1990, as produções eram dominadas pelas superproduções da indústria cinematográfica, com filmes repletos de efeitos especiais e não naturalista, que mais se afastavam do real do que representavam-o. Segundos os teóricos do Dogma 95, o cinema estava se esvaziando de significado e a sua linguagem “estava pobre”. Portanto, era preciso revitalizar a linguagem cinematográfica, começando por destituir tudo aquilo que fosse prejudicial para o cinema enquanto arte. 

Os dois primeiros filmes do movimento foram: “Festa de família” (Dogma #1, 1998), de Thomas Vinterberg; e “Os idiotas” (Dogma #2, 1998), de Lars von Trier. No primeiro, Vintemberg segue todos os preceitos do dogma, câmera na mão, luz natural, as locações das filmagens não são alteradas, são utilizadas como se apresentam. O destaque é o roteiro, mostrando um patriarca de uma família tendo que lidar com um conjunto de revelações que questionam o status e a moral do grupo. Já no filme de Lars von Trier, um grupo de indivíduos tenta “idiotizar” a sociedade burguesa com práticas que fogem do comportamento social padrão. 

Os adeptos do Dogma 95 criaram um conjunto de regras que justificavam uma determinada prática cinematográfica com o objetivo de obter um “cinema puro”, que voltasse as suas origens no tratamento da imagem. Mas, ao mesmo tempo que buscavam se libertar do cinema comercial, criaram um conjunto de “votos de castidade” que condicionavam a criação cinematográfica, eliminando inclusive a figura do autor do filme. Depois, Vinterberg e Lars von Trier abandonaram o movimento seguindo carreiras dentro de um cinema autoral, com extrema qualidade.

Trailer do filme "Festa em família" / Dogma #1:

Trailer do filme "Os idiotas" /Dogma #2:


'Eles Voltam'

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Com o fim da Guerra de Troia, Odisseu tenta voltar para casa; no entanto, vaga por anos na tentativa de conseguir retornar a Ítaca, para os braços da sua esposa Penélope e para junto ao filho Telémaco. No percurso encontra um ciclope, ouve o canto das sereias, conhece Circe, vive aventuras e presencia situações diversas, até conseguir reencontrar os seus entes queridos. No filme brasileiro ‘Eles voltam’ (2012), do diretor Marcelo Lordello, o arquétipo tema do regresso à casa é trabalhado a partir de uma narrativa simples, o que cria um filme belo, cheio de qualidades, demonstrando o que de melhor há na produção nacional dos últimos anos, principalmente aquela advinda da capital pernambucana, Recife. 
Um carro para, uma garota de doze anos e o irmão adolescente descem. O veículo segue viagem. Não sabem o que está acontecendo, foram abandonados à beira de uma rodovia. Por um tempo esperam, acreditam que os pais voltarão para buscá-los, o que não acontece, o irmão resolve buscar ajuda sozinho. Cris permanece no lugar. As horas passam, tem fome, sede, deve ficar estática ou caminhar e buscar o caminho de volta para casa? Com a ajuda de um jovem que passa de bicicleta resolve começar a odisseia de regresso ao lar. Tem-se o início de uma jornada de volta para casa, uma travessia de autoconhecimento e descobrimento de um mundo mais vasto, com pessoas e realidades diferentes daquela vivida outrora. 

“Sei um segredo você tem medo/Só pensa agora em voltar”, com o versos da canção gravada pelo Clube da Esquina na voz de Milton Nascimento, Cris inicia a sua jornada. Na garupa de uma bicicleta vai em direção a um acampamento de Trabalhadores Rurais Sem Terra. A garota é alimentada, recebe ajuda, entra em contato com a terra, a natureza, a vida coletiva. Depois, ela prossegue a jornada, recebe ajuda de uma humilde família, agora está em uma região urbana periférica, carente, mas cheia de convívio social e afeto. Recebe alimento, ajuda nas ações e obrigações do cotidiano, como limpar uma casa, agora está do outro lado, sem comodidades. Por fim, adentra em uma casa de veraneio, que um dia fora de sua família, a atual moradora a reconhece, decide levá-la para Recife. 

Ao chegar na sua casa em Recife, a jovem já não é mais a mesma que foi abandonada à beira da rodovia. O mundo lhe parece diferente, a realidade antes familiar agora é analisada com outros olhos. A travessia foi aprendizado, voltar para casa foi sair do casulo, ver e viver novas experiências, entrou em contato com pessoas e com histórias diversas, no diálogo e no visto ampliou um pouco mais a visão de mundo. Todavia, a volta significa a rotina, uma situação de desconforto. Seus pais estão acidentados, o convívio ordinário com a família, escola, não preenche mais uma simples existência. A travessia modifica Cris, ela resolve explorar outros cantos da cidade, vai de táxi com uma amiga ao centro velho, onde nunca estivera. 

'Eles voltam' se inicia com um plano geral com uma longa duração. Sob o céu há uma rodovia, passam carros em ambas as direções, o plano se estende, a câmera está distante. Uma característica do filme é a recorrência do plano-sequência que estende a duração da imagem e da ação, sem fragmentá-la em diversos planos mais dinâmicos e cheio de cortes. A luz natural e a movimentação lenta da câmera cria uma contemplação do prosaico, da própria imagem. O ritmo é lento, pois o tempo é relativo, pode-se acelerá-lo ou simplesmente contemplá-lo na sua duração. A lentidão não é algo ruim, pois graças a ela que é possível contemplar a imagem e ter o “prazer dos olhos”, por isso é preciso paciência e olhar aguçado com o filme. 

A imagem fascina a mente humana. A figura humana, os objetos e a própria paisagem ganham um contorno e uma existência mágica devido à luz. Fotografia e Cinema são as “artes da luz”. No caso do filme, os plano-detalhes na personagem Cris mostram uma beleza plástica da atriz Maria Luíza Tavares, que mesmo com poucas variações de expressões possui uma beleza simples, singela, encantadora. A cena do início da odisseia, quando pega uma carona na garupa de uma bicicleta, no qual ouve-se a canção “Tudo que você podia ser”, é a mais bela, há uma dança entre o movimento da bicicleta e o da câmera que a acompanha. O sotaque do recifense é outro ponto encantador, a prosódia com um ritmo, uma entonação ajuda não apenas na verossimilhança como também é agradável aos ouvidos. 

Como em toda e qualquer viagem, nunca se é o mesmo do início da jornada. Em uma travessia o mais importante, como diria o escritor Guimarães Rosa, não são os pontos de partida ou mesmo de chegada, mas, sim, o percurso. No filme “Eles voltam”, a personagem Cris volta para casa, no caminho se transforma, não é mais a mesma, vê e compreende o mundo de outra forma, ele é mais vasto do que era, de modo que a difícil odisseia é a viagem do retorno para casa. Assim, seja a partir de uma travessia, de uma odisseia, de uma jornada, viagem, voltar é o movimento.

Trailer do filme: