Quando ‘Azul é a Cor Mais Quente’

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Azul é a cor mais quente’ (La Vie D’Adèle, França) foi o grande ganhador do principal prêmio do Cinema mundial: a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, em 2013. O filme é dirigido pelo cineasta Abdellatif Kechiche (1960-), mostrando a vida de Adèle (Adèle Exarchopoulos) dos seus quinze anos até os vinte e poucos, com passagens da sua vida escolar e, principalmente, da formação da sua vida afetiva e amorosa quando encontra a cor azul nos cabelos de Emma (Léa Seydoux). O filme é uma adaptação da graphic novel (novela gráfica/história em quadrinhos) homônima (Le Bleu est une couleur chaude) da artista francesa Julie Maroh (1985-). 

No filme, Adèle é uma adolescente de quinze anos que vive uma rotina: acorda, quase perde o ônibus, vai para a escola-, volta para casa, janta com os pais, dorme. Depois, a repetição em um eterno retorno. Acompanhamos, inicialmente, a rotina da jovem nos sete primeiros dias, ela tenta se relacionar com um garoto, uma garota, ou mesmo nas discussões da aula de literatura francesa. No sétimo dia, Adèle cruza o seu olhar com uma mulher de cabelos azuis que atravessa a praça. Como obra do acaso, ou do destino, como discutiam na aula de literatura sobre a tragédia grega, é algo que não se pode evitar, a mulher de cabelos azuis a fascina. 

Adèle é uma adolescente, busca compreender o mundo a sua volta, mas não se encaixa nele. Ela tem desejos, vontades que se reprimidas, reprimem a sua própria essência. Como uma forma de escolha, Adèle vai procurar Emma e se apresenta. As duas passam a se relacionar afetivamente e, depois, sexualmente. Não há o acaso, e como a essência precede a existência, há a liberdade de escolha, sendo ela uma condição humana. A vida de Adèle muda, tendo o prazer e o outro como base de sua formação. Passam a morar juntas e juntas se entrelaçam na mais humana de todas as relações: a sexual. 

A cor azul foi utilizada pelo pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973) durante o seu “período azul”, antes do artista se render à estética cubista. A cor no contexto do filme possui uma grande importância, não apenas para o enredo, mas também na fotografia e na direção de arte. A vida de Adèle era cinza, de modo que o filme se inicia no outono, a luz e as cores são de alguns tons de cinza. O azul começa a aparecer, como exceção: em um esmalte, em um lenço, no banco do parque e, por fim, nos cabelos de Emma. A fotografia passa a ter tons azulados, assim como a passagem do frio ao calor. Neste contexto, azul é a liberdade, o prazer, a vida, o calor. 

O filme centra-se em Adèle, na passagem da sua adolescência, período de descobrimentos, conhecimento e autoconhecimento, para a fase adulta. A sua formação depende de uma alteridade, ou seja, depende do outro. Emma é o seu contraponto, a sua antítese, assim há uma dialética das cores, no qual o cinza é a tese, o azul a antítese, sendo a síntese o amor. A vida de Adèle é mostrada como uma formação, uma evolução, assim como os romances de formação do início do século XIX, o seu desenvolvimento, moral, social, afetivo e sexual é mostrado. Sua vida muda, floresce, passa de menina para mulher, de aluna para professora. 

Com ‘Azul é a cor mais quente’, e por enquanto apenas com ele, o diretor Abdellatif Kechiche se iguala, em termos de qualidade e técnicos, aos melhores cineastas da atualidade: Michael Haneke, Kim Ki-Duk, Abbas Kiarostami, Fatih Akın e Lars von Trier. O diretor faz um filme autoral com um estilo cinematográfico, em algumas cenas, principalmente as com Adèle, seja no ambiente familiar, sobre a mesa de jantar, ou mesmo as com Emma, a câmera, a fotografia e a montagem não apenas representam aquilo que está sendo mostrado, mas também possuem uma função, um estilo. Ele consegue ainda dar uma função narrativa e estética para as cenas de sexo, não sendo algo banal, apelativo ou fetichizado; mas, sim, sublime, belo e estético. 

Azul é a cor mais quente’ possui uma estreita relação com as artes plásticas. O filme é uma adaptação da história em quadrinhos homônima de Julie Maroh e como toda adaptação há pontos de diálogo, intersecção e distanciamento. Alguns planos do filme foram baseados em algumas sequências da narrativa gráfica, como por exemplo, o cruzamento entre Emma e Clementine, que no filme tem o nome de Adèle, ou mesmo em algumas cenas de sexo. A pintura é algo recorrente, de modo que Emma é pintora e em algumas cenas há a sobreposição da imagem pintada com a imagem cinematográfica, o que coloca a discussão da relação entre ambas, já feita pelo mentor da Nouvelle Vague Francesa André Bazin (1918-1958) na sua obra ‘Problemas da pintura’ e pelo cineasta Jean-Luc Godard (1930-) no filme ‘Acossado’ (1960). 

Em ‘Azul é a cor mais quente’, na vida de Adèle há a formação afetiva, amorosa e sexual a partir da relação homoafetiva com Emma, o que traz a sua maturidade. Aos quinze anos, sua vida possui cores frias com tons de cinza, com dias repetitivos até a libertação pelo azul. Pois, como proclama o lema iluminista: “a liberdade é azul”. No entanto, na escala cromática das cores, o azul não é uma cor quente, mas na vida de Adèle, a liberdade é azul, quando o azul é a cor mais quente.

Trailer do filme:

“Hiroshima, Mon Amour”: o Chronos cinematográfico de Alain Resnais

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Quando se diz que um cineasta pertence à fileira da estética cinematográfica da Nouvelle Vague Francesa, logo se tem a tendência de assimilá-lo à Cinemateca Francesa e à revista de crítica cinematográfica Cahiers du Cinéma, fundada por André Bazin (1918-1958). No caso do cineasta francês Alain Resnais (1922-), a sua formação e atividade profissional não estão ligadas a estes dois elementos embrionários dos demais cineastas da Nouvelle Vague, como François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol; mas sim a uma atividade cinematográfica ligado ao estudo acadêmico e ao gênero documental. No seu primeiro longa-metragem “Hiroshima, Meu Amor” (Hiroshima, Mon Amour, França, 1959), Alain Resnais, ao lado de François Truffaut com o filme “Os Incompreendidos” (Les 400 Coups, 1959), deram visibilidade à ‘Nova Onda Francesa’ no Festival de Cinema de Cannes de 1959. 

Antes de realizar o seu primeiro longa-metragem, Alain Resnais foi um premiado documentarista, tendo ganhado diversos elogios e prêmios com a realização de documentários, que tratavam dos horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com esta bagagem, o diretor foi convidado por produtores para realizar um filme sobre a guerra, mas que tivesse alguma relação entre a França e o Japão na temática do enredo. Para o roteiro do filme, Resnais convidou a escritora francesa Marguerite Duras (1914-1996), que vinha em ascensão através da estética literária do Nouveau Roman (Novo romance). Duras aceitou o desafio e escreveu o roteiro, fazendo a junção de elementos da linguagem literária com a linguagem cinematográfica. 

Hiroshima, Mon Amour” narra a história de uma atriz francesa (Emmanuelle Riva), que está na cidade japonesa de Hiroshima para fazer um filme “sobre a paz”. A atriz acaba tendo um relacionamento amoroso com um arquiteto japonês (Eiji Okada); o que desencadeia um emaranhado de recordações sobre a guerra. As recordações fazem com que ela reviva alguns traumas passados, que são revelados a partir de flash-backs. As ações do presente acabam desenterrando, deste modo, lembranças de um tempo outrora esquecido. No entanto, as ações do presente são afetivas, amorosas, belas; as do passado são, inicialmente, belas, mas depois horríveis e, por fim, traumáticas. 

Na primeira parte do filme, de aproximadamente quinze minutos, vemos um documentário sobre os horrores, dramas e conseqüências da Segunda Guerra Mundial. As imagens são fortes, os danos, causados pela bomba atômica lançada sobre Hiroshima no dia 06 de agosto de 1945, são assustadores; uma voz em off narra e comenta as imagens. Em seguida, na segunda parte, tem-se o casal de amantes usufruindo de seus corpos e divagando sobre os horrores da guerra. Na primeira parte do filme, Resnais a estrutura de forma documental, vemos um documentário, o que gera um efeito de estranhamento. No momento da transição da parte documental para a ficcional, há algumas imagens do casal com seus corpos nus em cenas amorosas; a partir deste ponto, começa a narrativa ficcional. 

Resnais estrutura o filme a partir de dois eixos temáticos: o presente e o passado. As ações do presente desencadeiam lembranças colocadas nas profundezas da psique. Ao se relacionar com o arquiteto japonês, a atriz francesa se recorda da relação amorosa que tivera com um soldado alemão durante a ocupação nazista à França. Após o término da guerra, são mostradas toda a sua desgraça e a sua humilhação recebida, já que as mulheres francesas, que se relacionaram com os soldados alemães, foram espancadas em praça pública, além de terem os seus cabelos raspados, o que a obrigou permanecer em um porão até que crescessem novamente. O interessante é que o presente nunca se apresenta como possibilidade real. Ele desencadeia reminiscências de um tempo pretérito que, ao ser reconstruído, mesmo que involuntariamente; traz à tona traumas. As personagens tentam esconder os traumas, colocando “areias da ampulheta” sobre eles. 

Outro ponto interessante de “Hiroshima, Mon Amour” concerne a sua estreita relação com a literatura. A escritora Marguerite Duras escreveu o roteiro tendo como base os aspectos do Nouveau Roman. Resnais conseguiu passar para a narrativa fílmica todos estes elementos, o que gerou um diálogo entre a linguagem literária e a linguagem cinematográfica, sem, contudo, descaracterizar a segunda. Ao relacionar ambas as linguagens, Resnais destaca os elementos da linguagem cinematográfica, que se organiza com a preponderância de um discurso imagético. O eixo de significação sai do eixo da ação para o eixo da imagem. 

Alain Resnais, em “Hiroshima, Mon Amour”, deu uma dimensão interessante ao Cinema, uma dimensão que privilegia o discurso imagético, devido ao tratamento à imagem cinematográfica e ao tempo. Ele se utiliza de dois gêneros cinematográficos: o documental e o ficcional. No filme, podemos ver a obsessão de Resnais no que tange ao tempo. Ele faz um tratado sobre o chronos, de modo que há dois grupos temporais: o tempo coletivo e o tempo individual que se estruturam e, às vezes, se entrelaçam, segundo os eixos do passado e do presente. Nota-se ainda uma estreita relação com a durée do filósofo Henri Bergson (1859-1941), já que cada tempo possui a sua unidade e a sua duração, além de seu significado próprio. Não há a busca pelo tempo perdido, porque ele sempre volta.

Trailer do filme:


Seriados Televisivos

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Imaginemos a indústria do audiovisual como um supermercado onde se vende m apenas produtos industrializados de diversas marcas e qualidades, das piores e mais baratas, como produtos da globo filmes, a produtos intermediários hollywoodianos, e alguns itens de qualidade, representados por alguns seriados televisivos estadunidenses. Enquanto filmes hollywoodianos seguem uma fórmula simples e recorrente, sem qualidade, os seriados possuem maior liberdade de criação tanto no roteiro quanto em técnicas, é o que ocorre com as séries: ‘Breaking Bad’, ‘Game of Thrones’, ‘Vikings’ e ‘The Big Bang Theory’. 

Em termos técnicos e de fotografia a série Breaking Bad (2008-2013) é a melhor. Em relação à fotografia, há a busca de planos com diversos ângulos com pontos de vistas diferentes do padrão, o que cria um jogo de câmera de qualidade e diferenciado. Há planos, aparentemente sem sentido, mas cheio de carga metafórica: seja um lagarto caminhando pelo deserto, ou um ursinho de pelúcia em uma piscina. 

Outro ponto de destaque da série é a quebra do maniqueísmo, pois não há uma ética de estado e, sim, de ação, de modo que há uma linha tênue entre o que é certo e errado. O protagonista é o professor de química Walter White, interpretado pelo premiado ator Bryan Cranston. Ele mora com a família em Albuquerque, Novo México-EUA, e descobre que está com câncer em estágio avançado. Em um contexto de crise econômica, começa a produzir metanfetaminas, uma droga ilegal e cara, para, assim, poder deixar dinheiro para a esposa e filhos. 

Quando ‘Game of Thrones’ foi lançado em 2011, e o inverno estava chegando, houve um estranhamento por parte do público, pois a série seria uma obra que substituiria a lacuna deixada pela trilogia de ‘O Senhor dos Anéis’ no cinema. No entanto, ela foi exibida pelo canal de televisão HBO e não como filmes. Uma série baseada no universo criado pelo escritor George R. R, Martin seria perfeita para produções hollywoodianas, mas foi transformada em seriado televisivo. 

A narrativa se passa em um universo com traços medievais havendo sete reinos, chamados de sete casas, de Westeros, onde "verões duram décadas e os invernos uma vida inteira". O mais interessante da série é a construção das personagens, cada reino ou casa, possui um arquétipo de personalidade, o que pode criar identificações com as personalidades do público. Outro ponto interessante, é que ela é uma série épica aparentemente machista, no entanto, apenas as mulheres (e o anão Tyrion Lannister) agem de forma racional, de modo que os homens agem de forma instintiva e de acordo com as características da sua casa. 

Alguns canais de televisão especializados apenas em documentários começaram a produzir séries ficcionais, como é o caso do History que produziu a série ‘Vikings’ (2013-), um drama histórico que narra as aventuras do guerreiro viking Ragnar Lodbrok no século IX. Tem-se uma narrativa histórica que se baseia no desenvolvimento de uma tribo viking e a invasão nórdica à Inglaterra e a outros países europeus. 

A fotografia e as cenas de luta são os destaques da série, além da fidelidade histórica com a reconstrução de vilas e barcos, o tema do contato entre culturas diferentes: a nórdica (pagã) e a europeia (cristã) é um outro aspecto interessante. As cenas de luta são produzidas sem efeitos especiais e com uma grande quantidade de coadjuvantes, o que cria cenas realistas e impactantes. Não há a utilização de efeitos especiais baseados no chroma key, que coloca a partir de computação gráfica elementos que não foram filmados. 

A maioria dos bons seriados televisivos da atualidade são dramas ou narrativas épicas, mas outra série de qualidade é a comédia ‘The Big Bang Theory’ (2007-). Ela é um sitcom onde as personagens agem em locais fixos e o cômico surge dos diálogos, no caso dela o grande destaque, pois há recorrentemente referências ao universo geek e da física. No enredo têm-se os físicos Leonard Hofstadter e Sheldon Cooper que moram juntos em um apartamento, onde se passa a maioria dos episódios; além de Howard Wolowitz e Rajesh Koothrappali, há a personagem feminina Penny, que não pertence à área da ciência e ao universo geek, o que gera uma interação cômica. No entanto, o grande destaque da série são os diálogos. 

Os seriados televisivos podem ser considerados como o que de melhor é produzido dentro da indústria audiovisual. Um produto industrial de qualidade para o consumo rápido em uma sociedade onde tudo é feito para não durar, com uma existência liquida e passageira. Entre produtos indigestos com uma qualidade ruim de ingredientes com atores globais ou estrelas hollywoodianas, as prateleiras de alguns seriados televisivos como ‘Breaking Bad’, ‘Game of Thrones’, ‘Vikings’ e ‘The Big Bang Theory’ são o que há de melhor dentro do grande supermercado do audiovisual, atualmente.