Fotografias de Viagem

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Foto: Marcela Campos
A fotografia é uma linguagem recente, data da primeira metade do século XIX e logo no seu processo de surgimento foi inicialmente voltada para a documentação do real e, em seguida, trabalhada como sistema de significação de forma artística. Ao lado do cinema (‘imagem em movimento”) se entrelaçou com o advento da modernidade com a sua reprodutividade técnica, em um primeiro momento de bases analógica e, atualmente, digital, o que não apenas popularizou em massa a fotografia como também criou práticas e comportamentos relacionados ao ato fotográfico estranhos, como os selfies em locais cotidianos banais ou mesmo em locais turísticos em viagens. 

Viajar é um deslocamento no espaço e no tempo, caminha-se por locais na busca de “espaços poéticos” que desautomatizem a vida, deem um significado maior para a existência humana em uma dialética entre interior versus exterior, entre o local e o ser, entre a própria cultura e a do outro, para, de maneira empática, formar uma síntese baseada no conhecimento entre todas as pessoas gramaticais: eu, tu, ele/ela, nós, vós, eles/elas em consonância com o espaço-tempo. 

Nota-se que o viajante pós-moderno está mais preocupado em se mostrar, em exibir-se nas redes sociais do que dialogar, estar, sentir, compartilhar com os espaços, locais de viagem, ou mesmo conhecer pessoas e novas culturas. O tempo é seu inimigo, o Chronos que devora os filhos, também limita a quantidade de selfies por pontos turísticos (QSxPT>1.000), por isso é preciso pelear acelerando os passos, movimentando-se mais rápido, de modo que tempo e espaço não se mostram como um contínuo, mas o primeiro como sendo inimigo do segundo. 

A exposição fotográfica ‘Refúgio’, da fotógrafa araraquarense Marcela Campos, exibe uma interessante relação entre fotografia e viagens, entre o espaço nem menor ou maior do que o ser, fonte das posturas do eu-lírico do poeta Carlos Drummond de Andrade, mas, sim, como parte integrante, harmoniosa na sua pequenez ou grandeza. A consciência do espaço fotografado passa pela percepção do eu e da própria artista que mostra cenas cotidianas de cidades do velho continente como sendo “locais calmos”, belos, de refúgio. 

Marcela Campos expõe fotos em ‘Refúgio’ exibindo a sensibilidade do olhar fotográfico sobre pontos turísticos e cotidianos, ordinários e extraordinários. As cenas, os temas retratados mostram a integração do ser com o espaço-tempo. A disposição do ser e dos objetos nos quadros reflete a harmonia que pode ser exposta pela fotografia criada pelo olhar, sensibilidade, técnica do artista, criador por excelência, sensível por natureza, necessário socialmente. Logo, o selfie não “matou a fotografia”, apenas expressou posturas dos nossos estranhos tempos e expôs a cegueira da exibicionista massa curtida. Os refúgios para se enfrentar a “cegueira branca” estão expostos. Quem tiver olhos, veja, mas com as pálpebras abertas.

O roçar da língua em cabeças fechadas

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A língua é dinâmica, é um fato social responsável por intermediar não apenas a relação humana com o real, mas também as relações sociais. O convívio em sociedade é indispensável para o desenvolvimento da linguagem, uma capacidade inata do ser humano, assim como a sociedade depende de um sistema de significação e comunicação para se fundamentar, se desenvolver. Deste modo, pelo aspecto social da língua, há condições e lugares de produção de falas, discursos que podem ter prestígio, e o seu inverso, ou mesmo representar uma escolha ideológica. Eu resolvi escrever Machu Pichu ao invés de “Machu Picchu” no meu livro. 
 
Quando um falante escolhe uma palavra, dentro de um eixo vertical de possibilidades para combinar com outras horizontalmente, e linearmente, produzindo um discurso, deve levar em conta alguns fatores históricos, sociais, de local de fala, etc. Por exemplo, a palavra “denegrir” foi usada durante muito tempo no contexto escravista da sociedade brasileira colonial para depreciar a condição do afrodescendente em detrimento da condição do colonizador. Hoje, não utilizá-la é reconhecer a história brasileira, é não reproduzir erros e preconceitos do passado. 

No contexto latino-americano, há uma revolução em curso, um reconhecimento, uma valorização da identidade ancestral de diversos povos andinos como forma de resiliência e luta contra uma condição social, econômica e cultural imposta desde o processo de colonização. A “Revolução Pachamama” é contra o legado da colonização nos seus diversos aspectos danosos, inclusive linguísticos. Pois, a língua do colonizador é a de prestígio, é a norma, é a imposição, é a dominação. 

Escrever a palavra “Pichu” é estar com quem deveria ser o herdeiro de suas terras, é se orgulhar de uma identidade, preservar uma cultura frente ao colonizador, ao usurpador, ou seja, lutar contra não apenas uma opressão histórica de uma colonização, mas se posicionar contra agressores invisíveis, econômicos, sociais e culturais. Na língua do colonizador é escrita com dois “c”s; já na do morador, do trabalhador, do herdeiro por direito, não por condição, é escrita apenas com um “c”. 

Machu Pichu é explorada, “visitada” por visitantes de diversos locais todos os dias; menos pelos seus herdeiros que no máximo devem limpar e servir seja ao estrangeiro ou mesmo aos herdeiros dos exploradores. Eu resolvi escrever Machu Pichu ao invés de “Machu Picchu” por motivos linguísticos, históricos e sociais, mas também afetivos, pois com quem eu caminhava, compartilhava uma mesa, comia junto o alimentado retirado e dividido da mesma panela, assim o fazia. 

De início, é necessário roçar a língua para incomodar cabeças fechadas, abrir mentes. A norma, muitas vezes, não segue o uso, assim como a norma padrão não esconde a história das palavras. Palavras carregam significados com camadas construídas historicamente, condicionadas socialmente. Aqueles que se prendem apenas ao significante, na grafia das normas, reproduz, não questionam a origem do logos diretamente no verbo, na criação do discurso. Não desconstroem, parte importante do entendimento, da criação.