A ‘Arca Russa’ Cinematográfica

0
O Cinema Russo possui grandes teóricos e, principalmente, excelentes cineastas, que em diversos momentos exerceram as duas funções como é o caso de Lev Kulechov (1899-1970), Vsevolod Pudovkin (1893-1953) e o principal Serguei Eisenstein (1898-1948). Em seguida, do país surgiram cineastas como Mikhail Kalatozov (1903-1973) e, o maior de todos, Andrei Tarkovski (1932-1986); bem como um dos mais notórios da atualidade: Alexandr Sokurov (1951-), dirigindo filmes de destaque como “Mãe e filho” (1997), “Moloch” (1999), “Pai e filho” (2003), “O sol” (2004), e o seu mais premiado “Fausto” (2001). Contudo, o seu filme mais ousado tecnicamente e artisticamente é a produção “Arca Russa” (2002). 

Há a tela escura, aparecem os créditos: produção, equipe técnica, e o último e mais importante nome, o do diretor anunciando que o filme é de Alexandr Sokurov. Depois, uma voz em off, que se configurará como sendo o narrador e através do qual compartilharemos o ponto de vista, aparece, sofrera um acidente. O espaço-tempo é quebrado, a personagem é transportada para o museu Hermitage, em São Petersburgo na Rússia. Acredita estar no ano de 1700, devido às vestimentas. Assim começa “Arca russa”, nos próximos 88 minutos o espectador compartilhará da visão deste personagem, que não aparece no quadro, mas é através dele, do seu ponto de vista, que o enredo se desenvolve no espaço dos corredores do museu e no tempo da história russa. 

O enredo de “Arca russa” é o espaço, o próprio museu Hermitage com os seus corredores, galerias, salas com as suas obras representadas por pinturas, esculturas como também por pessoas, já que o museu também é o local de depósito da memória coletiva, daquilo que uma dada cultura produz e é considerado de valor artístico, histórico, etc. A personagem que compartilhamos do ponto de vista tem como guia um estrangeiro, com quem vai dialogando, divagando sobre temas relacionados à arte e à história russa, precisamente do ano de 1700 até os prelúdios da Revolução russa (1917), com uma breve citação ao “Cerco a Leningrado” (1941-44) durante a II Guerra Mundial (1939-1945). 

O filme é rodado a partir de um único plano chamado tecnicamente de “plano-sequência”, no qual não há a fragmentação da ação, da cena, em diversos planos que são unidos por cortes, criando uma “manipulada” unidade de ação, tempo, espaço e sentido. Fazer um filme longa metragem composto apenas por um único plano é uma das tarefas mais ousadas e difíceis dentro da linguagem cinematográfica devido à questões técnicas de fotografia, direção de arte, produção e da própria direção da empreitada. As preparações de filmagem de “Arca russa” duraram sete meses, sendo filmado em apenas um dia, em 23 de dezembro de 2001 no museu Hermitage, em São Petersburgo, utilizando mais de três mil figurantes. 

Um filme, predominantemente, é composto por unidades segmentadas chamadas de planos que são unidos através de técnicas de montagem. No plano-sequência questões técnicas se mostram como a maior dificuldade; no entanto, há também questões de ordem estética, pois neste tipo de plano a unidade de espaço e tempo é preservada. A ação se desenvolve de forma contínua na frente da câmera, que se movimenta, como também as próprias personagens que devem se movimentar dentro do plano, ora entrando ora saindo do quadro, quebrando, assim, o efeito naturalista. O tempo é preservado na sua unidade, mostrado na sua duração objetiva, o que é possível apenas com a ação contínua e o movimento no espaço. 

No cinema há duas formas para se mostrar aquilo que está no universo da ação: a câmera objetiva com diversos pontos de vista; e a câmera subjetiva que simula o ponto de vista de uma personagem. O plano-sequência escolhido por Sokurov é baseado na câmera subjetiva. O espectador compartilha do ponto de vista de uma personagem, no caso de “Arca russa” tem-se um interessante efeito de pontos de vista de quem vê e o que é visto, podendo ser associado com “um jogo” similar que há no quadro “As meninas” (1656) pintado pelo espanhol Diego Velázquez (1599-1660). No quadro, o espectador da obra, dentre uma das interpretações, compartilha do ponto de vista das figuras pintadas, que não aparecem no quadro, a não ser por um reflexo no espelho. 

Por fim, o que é mostrado no filme de Sokurov, “Arca russa”, não é apenas os corredores do museu Hermitage, obras de arte e personagens históricos que parecem encenar partes da história da Rússia; mas também o próprio transcorrer do tempo no espaço. Se o cineasta russo Dziga Vertov (1896-1954) fez o filme “Um Homem com uma Câmera” (1929) mostrando a dinâmica da sociedade russa em ambientes externos, Sokurov preferiu o espaço fechado do museu para mostrar a sua concepção de arte, de história, de cinema. Para Sokurov, o cinema é a arte da imagem em movimento, fazendo o plano-sequência ser o ápice do movimento na imagem.



Ocupações Estudantis Vistas no Cinema e em Araraquara

0
Desde a antiguidade clássica, na Grécia antiga, há o conceito de mimeses, no qual a arte representaria o real. Deste modo, a realidade objetiva poderia ser representada pelas linguagens artísticas. Na modernidade, o cinema surge como uma linguagem que estabelece, nas suas próprias bases, uma estreita relação com o real através do conceito de “efeito de realidade”, pois a imagem cinematográfica teria a capacidade de ser tomada como “fiel” e “verdadeira” frente ao real. O documentário chileno “A rebelião dos pinguins” (2007), não apenas devido ao gênero cinematográfico documental, mas também devido ao tema, serve como base de compreensão e entendimento sobre o movimento estudantil secundarista do Chile de 2006 e do que ocorre no Brasil atualmente. 

Em maio de 2006, uma onda de manifestações, feitas por estudantes secundaristas (ensino médio) com idade entre 14 a 17 anos, ocorreu na maioria das cidades chilenas. Os estudantes reivindicavam melhorias no ensino público bem como a não efetivação de propostas governamentais que iriam contra os interesses da classe ao beneficiar setores que lucravam com a educação. Começaram com passeatas, parando as principais vias das cidades, quando foram duramente violentados pelos aparatos repressores do estado, a mobilização e o apoio aumentaram, vindos de diversos setores da sociedade chilena, tais como sindicatos, professores, estudantes universitários, etc. 

Depois de tomarem as ruas e conseguirem praticamente “parar” o país, os estudantes secundaristas chilenos adotaram outra tática: a de ocupação de escolas públicas. De atores secundários nos processos políticos do país passaram a ser protagonistas, exigindo a demissão do ministro da educação (o que foi feito), maior participação na decisão das políticas públicas para a educação. O movimento, então denominado de “a rebelião dos pinguins” devido ao uniforme escolar dos alunos, serviu de inspiração para os estudantes secundaristas dos países vizinhos, ocorrendo focos de manifestações em defesa do ensino público no Equador, Colômbia, Argentina, Venezuela. 

No documentário “A rebelião dos pinguins”, todo o percurso do movimento de ascensão dos estudantes secundaristas chilenos é mostrado, começando pelos precedentes na época da ditadura militar (1973-1990) no qual possuíam um papel secundário, até mesmo os elementos iniciais que levaram ao processo de organização da mobilização dos estudantes, tais como questões mais imediatistas como o atraso no repasse do passe escolar ou o alto valor das taxas dos vestibulares, passando pela não aceitação das políticas do estado chileno para a educação. O movimento chileno ganha êxito devido as suas táticas ao incorporar novas ferramentas advindas da internet como as redes sociais, vlogs, blogs, etc. 

O que ocorreu no Chile em 2006 e mostrado no documentário “A rebelião dos pinguins”, encontra um paralelo no que ocorre no estado de São Paulo a partir de novembro de 2015. Estudantes paulistas do ensino médio resolvem ocupar diversas escolas estaduais com o objetivo de barrar a imposta reestruturação das rede estadual de ensino paulista, que os afetariam negativamente. Segundo os estudantes, e com toda a razão pois são os afetados diretamente pelas péssimas mudanças propostas, a reestruturação proposta fecharia algumas escolas, obrigando os alunos a serem remanejados para outras na grande maioria das vezes distantes, já lotadas e sem estrutura. 

Em Araraquara (interior de São Paulo), a Escola Estadual Lysanias de Oliveira Campos foi ocupada no final de novembro de 2015 por um grupo significativo de excelentes alunos que não concordam com a reestruturação escolar. A ocupação instituiu e estimulou novas práticas enriquecedoras para os adolescentes, como um convívio em grupo que deve ser organizado, mas segundo as próprias regras dos alunos. De imediato receberam o apoio da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara (através da congregação do dia 26/11/2015), de profissionais liberais, trabalhadores, professores e de estudantes de outras escolas da cidade, além dos pais. 

Os estudantes que fazem parte do movimento que estão ocupando a escola Lysanias de Oliveira Campos em Araraquara possuem um diferencial muito grande por terem um senso de coletividade, de grupo, de organização, além de um pensamento crítico e social extraordinários. São jovens entre 14 a 17 anos que estão participando de um processo não apenas político, pois reivindicam e possuem pautas próprias, mas também psicossocial, pois o amadurecimento humano e a consciência de classe, política e de luta os colocam na posição de protagonistas, assim como no Chile, das mobilizações populares horizontais e livres no país atualmente. Os estudantes estão sendo ouvidos e aclamados por grande parcela da sociedade; devendo ser temidos pela classe política. Como prometido: #ocupalysanias.