A ‘Cópia Fiel’ de Abbas Kiarostami

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O diretor iraniano Abbas Kiarostami (1940-) é um dos principais cineastas da atualidade. Estudou Artes na Universidade de Teerã, começou a se dedicar ao cinema após se formar, conseguindo obter destaque dentro da produção iraniana durante as décadas de 1970 e 1980. Mas, foi apenas a partir da década de 1990 que ele ganhou projeção internacional, primeiro com o filme ‘Gosto de Cereja’ (Ta'm e Guilass, Irã, 1997), com o qual ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes; depois com o filme ‘Dez’ (Dah, Irã, 2002). No filme ‘Cópia Fiel’ (Copie Conforme, França, 2010), Kiarostami realiza o seu primeiro filme fora do Irã e faz a sua primeira grande obra de caráter universal, discutindo a questão da originalidade e da cópia da obra de arte. 

‘Cópia Fiel’ se inicia com uma palestra sobre a história da arte do estudioso inglês James Miller, interpretado pelo ator britânico William Shimell (1952-), em uma pequena cidade na região da Toscana, Itália, abordando o tema da “cópia fiel” dentro da história da arte. Acompanhamos uma típica palestra acadêmica, com a piada inicial do palestrante, poucas pessoas presentes, celular tocando, etc, com o tema e a cerne da questão do filme sendo introduzida. A atenção do palestrante se volta para a platéia, onde se encontra Elle, interpretada pela atriz francesa Juliette Binoche (1964-), que ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes pela atuação. O restante do enredo do filme é Miller e Elle dialogando sobre conceitos de autenticidade, originalidade e o valor da cópia na arte em diversos outros espaços: uma galeria, em um café, no campo. 

O tema que o filme trabalha surge concomitantemente à própria criação artística, pois com a arte vem a ‘necessidade’, ou o fetiche, de autenticação da obra como pertencente a um autor de prestígio específico. A obra de arte, neste contexto, seria algo singular e de existência única e, caso haja uma cópia, ela não teria o mesmo valor que a original. O livro que Miller escreve e que está sendo lançado na Toscana com uma tradução italiana se propõe a discutir a necessidade de autenticar a cópia, sendo ela fiel. Os diálogos entre Miller e Elle ao longo do filme problematizam e relativizam a necessidade do original, sendo a obra original, para Miller, apenas um conceito de referencialidade que não tiraria a qualidade e a importância da cópia. 

A primeira grande discussão da cópia dentro da arte surge com o conceito clássico de mimésis, que pode ser definido como “imitação”, ou mesmo “representação”, da natureza. Para o filósofo grego Platão (428-348 a.C.), o mundo seria uma cópia imperfeita do mundo das ideias e, portanto, como a arte, para ele, é uma cópia do real, ela seria a cópia da cópia. O que faz o filósofo criar restrições aos artistas na República. Já para Aristóteles (384-322 a.c.), a mimésis não teria um aspecto negativo, sendo um aspecto positivo na estreita relação da arte com o mundo real. 

A questão da cópia ganhou uma conotação pejorativa e perdeu o status de referencialidade a partir do Romantismo e com o advento da modernidade artística, que colocou dois novos elementos essenciais para a obra de arte: a primeira, a originalidade; e a segunda, a inovação. A obra de arte deve ser original na medida em que deve ser única e singular, seja na sua proposta estética ou mesmo na sua existência, o que leva o artista a buscar incessantemente a inovação. A partir do roteiro de Abbas Kiarostami o espectador entra em contato com as questões clássicas e da modernidade acerca da obra de arte. 

É impossível ver ‘Cópia Fiel’, de Abbas Kiarostami, e não relacionar a temática do filme com as questões levantadas pelo filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) sobre a reprodutividade técnica da obra de arte no seu ensaio “A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936). O pensador alemão faz uma análise materialista da arte, discutindo conceito de originalidade e cópia, defendendo que a arte sempre foi reprodutível, portanto sempre possuiu cópias, e que com o sistema capitalista houve o advento da reprodutividade técnica da obra de arte em uma escala massiva, de modo que a cópia é uma reprodução idêntica da original. 

A busca de todo e qualquer grande artista é conseguir dar um aspecto universal para a sua obra, mesmo trabalhando temas particulares. O cineasta iraniano Abbas Kiarostami fez o percurso do particular, ao dirigir filmes com características particulares da cultura iraniana, para o universal, ao trabalhar temas importantes para a humanidade no campo da arte. Em terras italianas, de grandes artistas e cineastas, tais como Roberto Rossellini (1906-1977), Luchino Visconti (1906-1976), Vittorio De Sica (1901-1974), Pier Paolo Pasolini (1922-1975) e Federico Fellini (1920-1993), Abbas Kiarostami fez ‘Cópia Fiel’, sua obra prima e se mostrou adepto das palavras do escritor romano Publio Terêncio: “humani nihil a me alienum puto” (Nada do que é humano me é alheio).

Trailer de "Cópia Fiel"


A Música Pop Segundo os Beatles

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No princípio era o caos, o espectro dos Beatles pairava sobre a face das águas turvas do rio Mersey e disse John: “Haja o The Quarrymen”, e houve a banda. Viu que era bom. John chamou Paul, fez a separação da velha banda. E disse Paul: “haja uma expansão”, George foi chamado. Chamaram a nova criação de The Beatles, viram que eram bons, chamaram Ringo. No sétimo dia do mês de fevereiro de 1964, foram os Beatles para o local da gênese do gênero musical, desembarcam na cidade de Nova Iorque para a primeira visita aos Estados Unidos. A visita foi documentada através de fotos, escritos e do documentário “The Beatles: a primeira visita aos EUA” (The Beatles: First U.S. Visit). 

O documentário “The Beatles: a primeira visita aos EUA”, sendo dirigido pelos irmãos Albert (1926-) e David Maysles (1932-1987) em 16 mm, retrata os quatorze dias que a banda permaneceu em solo estadunidense. São mostradas as duas apresentações ao vivo no programa do apresentador de televisão Ed Sullivan (1901-1974). A primeira apresentação ocorreu nos estúdios da CBS, em Nova Iorque, no dia nove de fevereiro para um público televisivo de mais de 73 milhões. Tocaram as músicas “All my loving”, “Till there was you”, “She loves you”, terminando com “I saw her standing there” e “I wanna hold your hand”. 

Entre a primeira aparição e a segunda no programa do apresentador Ed Sullivan acompanhamos as imagens do quarteto de Liverpool no quarto de hotel e o diálogo com o DJ Murray The K (1922-1982). Há uma proximidade, a câmera sempre se encontra próxima aos músicos, mostrando as ações espontâneas do grupo e o seu deslumbramento com a cidade de Nova Iorque. A histéria das fãs é mostrada. Em uma cena, tem-se um fato curioso: John Lennon está com um instrumento de sopro e começa a tirar algumas notas musicais, que se assemelham às usadas três anos depois na música  Strawberry fields forever”.

De Nova Iorque, os Beatles vão para Washington D.C. no dia 11 de fevereiro onde fazem uma apresentação no Washington Coliseun, que depois foi lançada em DVD com o nome de “Live in Washington D.C.”. Tocaram as músicas “Roll over Beethoven”, “From me to you”, “I saw her standing there”, “I wanna be your man”, “Please please me”, “Till there was you”, “She loves you” e “I want to hold your hand”. No documentário colocaram apenas as performances de “I saw her standing there”, “I wanna be your man” e “I want to hold your hand”. 

Em seguida, no dia 13, acompanhamos os fab four em Miami Beach, Flórida, onde tem-se a famosa sessão de fotos tiradas pelo fotógrafo Dezo Hoffmann (1918-1986) para a revista Life, como também a última apresentação no programa do Ed Sullivan, no dia 16, entrando para o documentário as músicas “From me to you”, “This Boys” e “All my loving”. No dia 18, conhecem ainda o maior boxeador de todos os tempos Cassius Clay (1942-), que depois mudaria o seu nome para Muhammad Ali

O documentário foi possível graças à evolução tecnológica das câmeras de filmagem, que se tornaram mais compactas. Ele foi filmado em 16 mm com a  proposta de documentar todos os passos dos Beatles nos Estados Unidos para ser, depois, transmitido em um especial para a televisão. Os irmãos Maysles fariam ainda o documentário “The Rolling Stones: Gimme Shelter” (1970) sobre a turnê da banda pelos Estados Unidos divulgando o disco “Let it bleed” (1969). Os Maysles foram uma grande influência para o cineasta e documentarista D. A. Pennebaker (1925-), que filmou a turnê do bardo Bob Dylan pela Inglaterra, em 1966, dando origem ao documentário “Don’t look back”. Pennebaker filmou ainda “Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” do músico britânico David Bowie (1947-), em 1973. 

A importância dos Beatles para a música popular da segunda metade do século XX é um fato concreto. Sua influência se estende por diversos campos indo além do musical e entrando na esfera da cultura popular. A primeira visita dos Beatles aos Estados Unidos é significativa, pois o país é o centro de irradiação da cultura pop e local de gênese do rock através da árvore genealógica de parentes distantes como o Blues e o Fiddle. Com a invasão britânica, há a inversão dos pólos de influência, antes os Estados Unidos eram os produtores e exportadores, naquele momento tornaram-se receptores e consumidores. No princípio era a música, e a música estava com os Beatles, e a música era os Beatles. Tudo foi feito por eles; e nada do que tem sido feito depois, foi feito sem eles. Quem tiver ouvidos, ouça.