André Bazin e o estudo da ontologia da imagem

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André Bazin (1918-1958) é o mais importante crítico da história do cinema. Ele foi um dos fundadores da principal publicação especializada sobre cinema de todos os tempos: a revista francesa Cahiers du cinéma. A revista serviu como embrião de jovens cineastas que viriam a ser os mais representativos da Nouvelle Vague no final da década de 50, como François Truffaut e Jea-Luc Godard. Bazin é considerado o “pai” da crítica cinematográfica. Ele desenvolveu um conjunto de linguagens que fundamentavam e embasavam o exercício da crítica cinematográfica nascente.

A importância de André Bazin para a história do cinema não se resume à crítica cinematográfica. Ele foi também um dos maiores teóricos que se debruçaram sobre temas inerentes à Sétima Arte, indo desde preocupações formais, conteudisticas e, até mesmo, históricas. Um dos seus estudos mais importantes encontra-se no seu artigo para a Cahiers du cinéma, em 1945, intitulado Problème de la peinture, no qual ele trata da ontologia da imagem. Neste artigo, Bazin discorre sobre a importância da imagem ao longo da história da humanidade, bem como qual o significado atribuído a ela e sua relação com o processo de constituição ontológica do Ser.

Uma das principais características do Ser, no seu processo de constituição ontológica, é a sua consciência de efemeridade. O Ser sabe que o tempo é voraz e que a morte é iminente. Mesmo assim, ele luta, ou joga xadrez, contra ela. Uma forma de tentar vencer a morte é a tentativa, segundo Bazin, de criar artifícios para sustentar a perenidade material do corpo. Com isto, como afirma Bazin, satisfaze-se uma necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. Já que a morte é senão a vitória do tempo sobre o Ser. Para o pensador francês, fixar artificialmente as aparências carnais do Ser é salvá-lo da correnteza do tempo mortífero.

De acordo coma tese de Bazin, o Ser busca vencer a morte e o tempo a partir da perenidade da forma, que possa ser dotada de destino temporal autônomo. No antigo Egito, mumificavam o corpo, para que ele pudesse ser eterno. Com o advento da pintura, pode-se transpor o Ser em sua forma e essência para um universo ideal à imagem do real, onde ele seja eterno. Na literatura, temos exemplos daquilo que Bazin chamou de “complexo de múmia”, como no romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e no conto “Retrato oval”, de Edgar Allan Poe. Em ambas obras, há a tentativa de vencer a morte e o tempo a partir da imagem, tornando-se, desta forma, imortal.

Bazin salienta que com o advento da fotografia e, posteriormente, do cinema há o “embalsamento” do tempo, subtraindo-lhe, desta forma, a sua própria corrupção. Bazin afirma que, pela primeira vez, a imagem das coisas é também a imagem da duração delas. O filme não se contentaria, de acordo com Bazin, em conservar o objeto e o Ser lacrado no instante. Ele cria um conjunto de instantes, aquilo que Bérgson chamou de Durée. Ou seja, ao criar este tempo autônomo, ele se desvencilha do tempo que corrói e que causa a morte, para criar uma existência perene.

A criação de um tempo autônomo, criado pelo cinema, desvencilharia-se da mortalidade. As características do Ser estariam salveguardadas eternamente numa imagem, constituída de uma duração. Ou seja, a duração (durée) se desvincula do tempo real, objetivo e corrosivo, criando um tempo autônomo, independente e expositivo, pois expõe os anseios da perenidade da forma e da existência do Ser.

No seu artigo, Bazin analisa o impacto que a imagem possui, bem como a sua importância para o processo de constituição ontologia do Ser. Ele salienta que o homem tenta vencer a morte (um dos principais elementos de consciência ontológica como nos mostra Ingmar Bergmam no seu filme O Sétimo Selo, Det Sjunde inseglet, 1956) a partir da perenidade da forma e através da luta contra o corrosivo tempo objetivo. Para tanto, a pintura, a fotografia e, mais ainda, o cinema têm um enorme impacto no processo de constituição ontológica do Ser, pois servem de instrumento na tentativa de vitória no eterno jogo de xadrez contra a morte. Através da imagem, o homem transpõe elementos do real para uma outra realidade perene, onde ele possa se identificar como Ser, para todo o sempre. Al Jek Mat.

Cine Campus - Botinada: a história do movimento Punk no Brasil

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Cine Campus: François Truffaut e a Nouvelle Vague

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François Truffaut e a Nouvelle Vague.
Por Breno Rodrigues de Paula

Na arte, o desenvolvimento da linguagem artística, bem como de seu método, se dá de forma gradual e progressiva em torno de conceitos e preceitos estéticos desenvolvidos e aderidos por um conjunto de artistas. Cada escola estética desenvolve um conjunto de preceitos e regras que a diferencia das outras escolas ou períodos e faz com que ela ganhe destaque na história da arte. Eis que surgem as divisões na história da arte tais como classicismo, barroco, romantismo, realismo, modernismo, etc. No caso da história do cinema, a divisão se faz por ‘escolas” que possuem tendências e princípios estéticos que a diferenciam das outras. Como exemplos de escolas temos o “Expressionismo” (década de 20); “Intimismo” (década de 30); o “Surrealismo” (década de 30), o “Neo-Realismo” (década de 40); o “Cinema Novo” (década de 60) e a “Nouvelle Vague” (década de 60).

A Nouvelle Vague (Nova Onda) é uma das principais escolas da história da sétima arte. Ela surgiu na França em torno da revista Cahrier du Cinéma no final da década de 50 e teve seu auge ao longo da década de 60 do século passado. A "teoria autoral" era o pilar do movimento da Nouvelle Vague. Foi criada em 1954 por François Truffaut, que ainda era apenas um crítico da revista francesa Cahiers Du Cinéma. Essa teoria afirma que uma pessoa, quase sempre o diretor, tem a única responsabilidade sobre o filme e que sua visão pessoal da sociedade pode ser observada na obra. Isso significa que o filme pode ser visto como uma produção individual, não muito diferente de um livro ou uma música.

Como crítico, François Truffaut desenvolveu sua famosa "Politique des auteurs" (teoria autoral, em português). Neste conceito, o filme é considerado uma produção individual, como uma canção ou um livro. Truffaut defendia que a responsabilidade sobre um filme dependia quase que exclusivamente de uma única pessoa, em geral o diretor. Os adeptos da NouvelleVague atuavam em duas linhas: a crítica e produção cinematográfica.

Na Nouvelle Vague, há o rompimento da relação dramática entre personagem e herói e a visão dos seres e objetos se purifica, é desdramatizada – o que determina uma apresentação de fatos e personagens sem enfeites adjetivos. Não mais existe, por conseguinte, o herói em oposição ao vilão, encaixando-se o homem num quadro existencial em que o bem e o mal são ficções puramente lógicas, como expressos em filmes como Acossado (À Bout de suflê, 1960) de Godard e Os Incompreendidos (Les 400 coups, 1959), de Truffaut.

François Truffaut foi o diretor mais produtivo da Nouvelle Vague. Dirigiu cerca de 23 filmes entre 1954, data de seu primeiro filme “Une Visite” até 1983 “De repente domingo” (Vivement Dimanche), seu último filme. Ao longo deste período dirigiu clássicos como “Os Incompreendidos” (Les 40 coups, 1959); “Uma mulher para dois” (Jules et Jim, 1962); Fahrenheit 451 (1966); “A sereia do Mississipi” (La Sirène du Mississipi, 1969); “A noite americana” (La nuit américaine, 1973). Certamente ele foi um dos maiores gênios da sétima arte e, junto com André Bazin e Godard, formou a tríade da Nouvelle Vague.

Filmografia:
1983 - De repente, num domingo (Vivement Dimanche)
1981 - A mulher do lado (La femme d`à cóte)1
980 - O último metrô (Le dernier metro)
1978 - O amor em fuga (L'amour en fuite)
1978 - La chambre verte
1977 - O homem que amava as mulheres (L'homme qui aimait les femmes)
1976 - Na idade da inocência (L'argente de poche)
1975 - A história de Adèle H. (L'histoire de Adèle H.)
1973 - A noite americana (La nuit americaine)
1972 - Uma jovem tão bela como eu (Une belle fille comme moi)
1971 - As duas inglesas e o amor (Les deux anglaises et le continent)
1970 - Domicílio conjugal (Domicile conjugal)
1970 - O garoto selvagem (L'enfant savage)
1969 - A sereia do Mississipi (La sirene du Mississipi)
1968 - Beijos proibidos (Baisers volés)
1967 - A noiva estava de preto (La mariée etait en noir)
1966 - Fahrenheit 451 (Fahrenheit 451)
1964 - Um só pecado (La peau douce)
1962 - Tire au flanc
1962 - Amor aos 20 anos - epis. Antoine et Colette (L`amour à vingt ans)
1961 - Uma mulher para dois (Jules et Jim)
1960 - Atirem no pianista (Tirez sur le pianiste)
1959 - Os incompreendidos (Les 400 coups)

UMA MULHER PARA DOIS

Ficha Técnica
Título Original: Jules et Jim
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 104 minutos
Ano de Lançamento (França): 1964
Estúdio: Les Films du Carrosse / Sédif
ProductionsDistribuição: Janus Films
Direção: François Truffaut
Roteiro: François Truffaut e Jean Gruault, baseado em livro de Henri-Pierre Roché
Produção: Marcel Berbert
Música: Georges Delerue
Fotografia: Raoul Coutard
Desenho de Produção: Fred Capel
Edição: Claudine Bouché

Elenco
Jeanne Moreau (Catherine)
Oskar Werner (Jules)
Henri Serre (Jim)
Vanna Urbino (Gilberte)
Anny Nelsen (Lucie)
Sabine Haudepin (Sabine)
Marie Dubois (Therese)
Christiane Wagner (Helga)
Michel Subor (Narrador)

Premiações
Recebeu 2 indicações ao BAFTA, nas seguintes categorias: Melhor Filme e Melhor Atriz Estrangeira (Jeanne Moreau).
Ganhou o Prêmio Bodil de Melhor Filme Europeu.
Ganhou o prêmio de Melhor Diretor, no Festival de Cinema de Mar Del Plata.

por Rodrigo Carreiro

Para muita gente que não conhece bem o cinema europeu, os diretores da nouvelle vague francesa foram intelectuais metidos a besta, que faziam filmes lentos, verborrágicos e incompreensíveis. Um pensamento desses não é apenas um estereótipo simplista, mas chega a ser uma heresia injusta e incorreta, especialmente para com um cineasta tão inovador e sentimental como François Truffaut. Quem duvida disso deveria checar urgentemente “Jules e Jim – Uma Mulher para Dois” (Jules et Jim, França, 1962), um conto romântico ardoroso e cheio de vida, que fala dos diferentes tipos de amor e amizade (e do medo de perder ambos) que todos nós vivemos em algum momento de nossas vidas.

Transposição para o cinema de um romance francês que Truffaut encontrou num sebo, o filme transpira o espírito libertário e de amor livre que os jovens viveram na década de 1960, na Europa e nos EUA. Pontuando a história com uma técnica ágil e visceral, que influenciaria nove em cada dez cineastas alternativos de duas décadas adiante, Truffaut usa lirismo e ousadia – em temática e narrativa – para construir o triângulo amoroso definitivo das telas de cinema. É um filme repleto de paixão, cheio de vontade de viver, e aborda um tema difícil com tamanha delicadeza que fica difícil não se apaixonar pelos personagens.

A história se passa no ambiente boêmio de Paris, no início do século XX, e possui uma narração em off tipicamente literária, roubada diretamente do romance de Henri-Pierre Roché. O austríaco Jules (Oskar Werner) e o francês Jim (Henri Serre) são dois amigos inseparáveis que adoram a vida noturna. Eles têm pendor artístico, gostam de mulheres, bebida e poesia. São jovens e vivem intensamente. Quando conhecem Catherine (Jeanne Moreau), ambos se apaixonam. Ela é intensa, atrevida, sexualmente avançada, e de personalidade forte. Jules, o mais tímido, pede que Jim abra caminho. O amigo concorda, mas as coisas não são tão simples assim.A narrativa do filme acompanha os três personagens durante duas décadas de incontáveis idas e vindas amorosas, interrompidas por uma guerra mundial (defendendo nações rivais, Jules e Jim têm mais medo de matar um ao outro durante uma batalha do que de morrer).

A narrativa é muito ágil, e ficou famosa por utilizar truques revolucionários de edição que Hollywood só teria coragem de usar duas décadas depois: imagens congeladas que interrompem a narrativa, telas divididas e montagem fragmentada (a chamada jump cut, que joga fora as partes mortas de uma conversa).Truffaut considerava o longa-metragem um dos prediletos de sua filmografia, e dizia sempre que o filme foi feito para celebrar a intensidade e a fugacidade das paixões mais incendiárias – ou seja, ele quis fazer um filme sobre o medo que uma pessoa apaixonada tem de perder o amado para outro. Nisto, foi extremamente bem sucedido: “Jules e Jim” é uma montanha-russa emocional, repleta de vales e picos, altos e baixos, momentos de euforia e depressão. Tudo no filme é intenso, inclusive as esplêndidas atuações do trio de atores principais. Truffaut celebra com exatidão aquilo que é o amor – a felicidade e o medo, a angústia e a euforia.

Embora acompanhe mais de perto os dois amigos do título, dois homens cuja retidão moral e fidelidade aos princípios libertários impedem que o sentimento que ambos nutrem por Catherine interfira na amizade sólida que os une, a narrativa de “Jules e Jim” capta perfeitamente o fluxo emocional instável de Catherine. É ela (“uma força da natureza”, define Jules, com absoluta perfeição, a certo momento) que regula o tom emocional do filme. “Jules e Jim” deveria ser programa obrigatório para qualquer um que já viveu um triângulo amoroso.


Uma noite americana

Título original: La Nuit Américaine
Ano de lançamento: França, 1973.Direção: François Truffaut.
Roteiro: Jean-Louis Richard, Suzanne Schiffman e François Truffaut.
Produção: Marcel Berbert.
Fotografia: Pierre-William Glenn.
Edição: Martine Barraqué e Yann Dedet.
Direção de Arte: Damien Lanfranchi.
Música: Georges Delerue.
Figurinos: Monique Dury.

Elenco:
Jacqueline Bisset
Valentina Cortese
Alexandra Stewart
Jean-Pierre Aumont
Jean-Pierre Léaud
François Truffaut
Nathalie Baye
Dani
Jean Champion
Nike Arrighi
Maurice Seveno
David Markham
Bernard Menez
Gaston Joly
Zénaïde Rossi
Xavier Saint-Macary
Walter Bal
Jean-François Stévenin
Pierre Zucca
Graham Greene
voz de Georges Delerue.

Por Eduardo Carli de Moraes, 12/Março/2006

Dos "filmes metalinguísticos" que procuram fazer, através do cinema, uma reflexão sobre o que cinema, esse adorável A Noite Americana é de longe um dos melhores. Pode não ser tão cáustico e finamente irônico quanto o magnífico O Jogador, de Robert Altman, nem tão incisivo na crítica à Indústria Cultural quanto o Barton Fink dos irmãos Cohen, nem tão genial e dionisíaco quanto o Oito e Meio do Fellini, nem conter uma análise de personagem tão brilhante quanto A Malvada de Joseph Mankiewicz, mas é certamente o mais divertido do gênero e, talvez, o mais apaixonante e o mais prazeiroso de assistir.

Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1973, essa pequena pérola de François Truffaut parece, à primeira vista, somente um aglomerado de causos bizarros e engraçados que envolvem a arte de fazer cinema, reunidos numa fina comédia que se centra num behind-the-scenes de um filme falso. Eis um filme sobre pessoas fazendo um filme, e não se sai disso. Mas com que classe a coisa é feita...! Truffaut, que já era em 73 um reconhecido Grande Mestre da sétima arte, com toneladas de experiência acumulada e a maioria de seus grandes clássicos já lançados (Jules e Jim, Atirem No Pianista!, Os Incompreendidos são todos dos anos 50 e 60), fez em A Noite Americana uma bela crônica das desventuras de um cineasta e do árduo processo de parto de um filme. Acabou cometendo uma obra que, além de deliciosa de ver, mostra bem como se pode ser leve e divertido sem ser fútil. Esse é daqueles filmes pra fazer a gente sair do cinema incomparavelmente mais apaixonado pelo cinema do que era ao entrar...

Truffaut (que ataca também de ator e interpreta justamente o diretor do "filme dentro do filme") nos oferece aqui um delicioso painel do que significa ser um cineasta e de todas as aporrinhações que tornam esse trabalho um tanto complicado, estressante e cheio de imprevistos. Não é somente pelas gags, aliás engraçadíssimas, que vale esse A Noite Americana - ele vai muito além disso. A idéia principal é demonstrar o quanto de jogo-de-cintura, de corrida-contra-o-tempo, de fria paciência, de veloz improvisação e de criatividade é necessário para que o diretor consiga sobreviver ao caos do set e aos ataques do acaso... De certo modo, Truffaut faz elogio próprio, glorifica sua própria profissão, faz do cineasta um símbolo da bravura e do heroísmo, mas nem dá pra se sentir mal com esse "narcisismo". No fundo, o que acontece é que Truffaut nos faz sentir todo o imenso prazer que ele sinceramente sente como cineasta e amante de cinema - e um pouco desse amor e dessa empolgação dele certamente nos é transmitido e fica impregnado (felizmente!) em nós...

O que A Noite Americana deixa claro é que o cinema, como arte essencialmente coletiva, sofre com certas desvantagens e complicações: é preciso contar com a cooperação de pessoas frequentemente instáveis, excêntricas e falíveis, que possuem frequentemente interesses conflitantes e vícios abundantes, especialmente a vaidade e a ambição, num set superlotado e onde os mínimos detalhes tem que ser levados em conta. O acaso e o azar também não poupam ninguém: muitas vezes um ator morre durante as filmagens, ou uma atriz entra em crise nervosa e histérica, ou casinhos de amor, ciúme e traição ameaçam transformar o set num palco para o correr de sangue... Aos trancos e barrancos, e no improviso, vai-se seguindo em frente... E é papel do diretor ser o maestro desses músicos tão dissonantes a fim de tentar tirar daí alguma melodia digna. Tudo isso está maravilhosamente exemplificado nos inúmeros episódios do filme.

Além disso, A Noite Americana é também uma Aula de Desilusão, que põe às claras o quanto o cinema se utiliza de inúmeras técnicas de ilusionismo para se tornar uma verdadeira arte da enganação - o que todos sabemos bem, mas às vezes preferimos esquecer. As cenas em que a equipe de produção fabrica tempestades e nevascas artificiais, ou o jeito que arrumam pra filmar o desastre automobilístico, no contínuo esforço de fazer o fake parecer autêntico, diverte e instrui tanto quanto os melhores making-ofs que já se viu. Mostrando o quanto é difícil tornar verossímil o artificial, o filme acaba por nos fazer admirar ainda mais o esforço de todos os envolvidos com o cinema e a fabricação desses "mundos artificiais" a serem projetados numa tela de uma sala escura... A Noite Americana, no fundo, prova que fazer um filme é uma dureza, uma batalha, uma guerra - mas tornando essa dificuldade patente, nos faz achar o resultado - os filmes em si - ainda mais meritórios e admiráveis...

Apesar de ser um filme de ficção, e com um roteiro muito bem bolado, A Noite Americana mostra Truffaut engajado numa certa visão do cinema que me parece, paradoxalmente, anti-cinematográfica, como se dissesse que, apesar de tudo, o cinema não importa tanto assim: a vida vale mais, e a vida é o mais urgente. De certo modo, saímos desse filme com a certeza de que a vida é muito mais interessante do que um filme costuma ser, e que as pessoas reais são muito mais dignas de serem filmadas e terem suas vidas expostas do que quaisquer personagens... A

Noite Americana não deixa de ser crítica cinematográfica, eis o ponto. Truffaut sugere que o cinema tradicional, representado aqui pelo "filme dentro do filme", costuma registrar em fita uma realidade manipulada para parecer cheia de sentido, de ordem, de drama e de espetacularidade, quando nossas vidas, mais absurdas, menos gloriosas, não se assemelham muito às pinturas (distorcidas) que dela fazem a maioria dos cineastas. De modo que Truffaut, mesmo que encerrado no cinema de ficção, volta seu olhar para a vida, não tenta maquiar a verdade dela, não tenta embelezar nem distorcer, prefere o real ao imaginário... Filmando uma filmagem, o que Truffaut fez, na verdade, foi escolher registrar a vida como ela é - ou ao menos uma parcela desse negócio imenso e inesgotável que é a tal da vida como ela é.

E eu não posso deixar de considerar essa uma excelente decisão: Truffaut usa aqui o cinema, não para iludir ou para distorcer, mas para registrar, com um olhar cheio de amor e de afirmação, a vida em si, a vida e sua adorável imperfeição, a vida e sua bela anarquia... O resultado não poderia ser mais positivo: é possível sair da sessão, ao mesmo tempo, com um maior amor pelo cinema e um maior amor pela vida, ao mesmo tempo, o que não é um efeito dos mais comuns, apesar das aparências. A moral da história? Arrisco essa: a vida é mais fácil de amar porque existem filmes, e os filmes são mais fáceis de amar quando não mentem sobre a vida...

A teoria da relatividade restrita

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O ano de 1905 foi uma data especial para o desenvolvimento da física moderna, no qual foi publicada a tese do físico germânico Albert Einstein intitulada “Teoria da Relatividade Restrita”. As
idéias contidas na tese significaram um avanço considerativo nos estudos da física e seus postulados apreenderam um corte epistemológico com os postulados anteriores, principalmente com os postulados relacionados à mecânica e à física gravitacional newtoniana, até então predominante. O estudo do movimento, da luz, do espaço e do tempo, ou melhor, do espaço – tempo centram como cerne dos postulados da teoria.

De acordo com a teoria da relatividade restrita, o espaço é quadridimensional. Existem três coordenadas do espaço e mais uma quarta, que é o tempo, formando o espaço – tempo. Ou seja, o espaço e o tempo têm uma relação intrínseca, de modo que a teoria da relatividade restrita: levou à idéia de espaço – tempo quadridimensional, realizando uma fusão do espaço e do tempo num contínuo quadridimensional com um tipo de geometria pseudoeuclidiana.

Para a teoria da relatividade restrita, um evento é algo que acontece num determinado ponto no espaço e no tempo. Pode-se especificá-lo através de quatro números ou coordenadas, sendo a escolha das mediadas arbitrárias. Deve-se pensar, portanto, nas quatro coordenadas de um evento como especificadoras de sua posição num espaço quadridimensional chamado espaço – tempo. Tem-se a longitude, a latitude, a altitude e o tempo.

A teoria da relatividade alterou a nossa concepção da estrutura fundamental do mundo, isto é, segundo Bertrand Russell, a origem tanto de sua dificuldade quanto de sua importância. Ela revolucionou nossos conceitos de espaço e de tempo, transformando-o em espaço – tempo, ao introduzir o tempo na quarta dimensão do espaço. Agora o espaço seria quadridimensional e a relação entre espaço e tempo seria intrínseca, um nunca mais se separaria do outro, até que a matéria escura os separem.

Juízo de fato e juízo de valor na análise da obra literária

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Certa vez, o grande poeta Fernando Pessoa disse que a função de um grande gênio da poesia é fazer “Arte”, seja a partir de uma “metafísica do belo” ou de uma “estética transcendental” ou ainda de sua “vontade de representação”, de modo que dêem-lhe a alcunha de Artista ou, em ultima instância, de arteiro. Aquilo o que ele faz e como ele faz está diretamente relacionado com a sua capacidade criativa que, de certa forma, advêm de sua capacidade perceptiva, intuitiva e oracular do ser para com o mundo. O poeta cria, recria e transpõe as características do mundo físico e metafísico para a arte literária, que, ao final do processo de criação, possuem uma forma e um conteúdo, sendo a relação entre ambos intrínseca e o valor dado a cada um é arbitrário pela estética ou, na maioria das vezes, pela crítica literária.

Primeiro veio a palavra, depois a criação literária. O homem, que conseguiu ir além do homem, após as três metamorfoses, tem o poder em suas mãos. Se ele escrever: “haja luz”, a luz será feita; haja “a cólera de Aquiles”, o épico será feito; haja “um lugar em La Mancha”, o romance será feito; haja “o ser ou o não ser”, a tragédia será feita; haja “uma pedra no meio do caminho”, a poesia será feita. Contudo sua tendência criadora terá que se relacionar com uma outra tendência, que, na grande maioria das vezes, é-lhe alheia: a crítica. Há a criação, mas também há o juízo desta criação. A maneira de como ela foi criada, os métodos e os recursos utilizados são descritos de modo a objetivar entender a criação em toda a sua plenitude.

A crítica tem uma função importante na recepção da obra de Arte que é o de tentar desvendar todos os recursos utilizados pelo Artista para compor a obra de Arte. Seu trabalho consistiria em descrever os elementos conteudisticos utilizados e a forma da obra, como ambos se relacionam. Deveria também guiar a leitura através das diversas veredas que a obra possui e atentar para aquilo que não fora ainda atentado pelos leitores precedentes, mas que está implícito na obra. Ao fazer isto, o critico seria, portanto, o “Leitor ideal”, aquele para quem a obra se apresentaria em sua plenitude e não fragmentária e desconexa como seria apresentada para um leitor que se atentasse apenas para as características explicitas da obra. Contudo, a crítica, freqüentemente, não se porta como guia, mas como uma esfinge que devora as obras que não decifram-na.

Barthes afirma que a crítica é uma entidade formal, não no sentido estético, mas no sentido lógico do termo. Seu papel seria o de unicamente elaborar ela mesma uma linguagem cuja coerência, cuja lógica e cuja sistemática possa recolher, ou melhor ainda, integrar a maior quantidade possível de linguagem proustiana, exatamente como equação lógica experimenta a validade de um raciocínio sem tomar partido quanto á verdade dos argumentos mobilizados. Ou seja, a crítica deveria atentar-se apenas para os elementos e os métodos utilizados na arquitetação da obra a partir de um juízo de fato. Mas, freqüentemente, surgi um valor provavelmente originado do método da crítica que utiliza ferramentas básicas como a comparação.

A obra literária é vista como uma rede de relações entre os elementos que a constituem. A crítica freqüentemente compara a visão de determinadas obras com outras variadas. Tal método de comparação coloca frente a frente obras que podem não ser similares nas suas organicidade, o que levaria a duas questões: a primeira, se há a eleição de determinadas obras nortistas para a análise de outras variadas, cria-se dois pólos: o cânone e o index. Toda obra, que estiver em conformidade estrutural e conteudistica com as determinadas, é canonizada, as que não estão são indexizadas. A segunda, diz respeito à inovação. Se a obra não se enquadra nas estruturas das precedentes como ela poderia ser comparada? Tal comparação geraria a priori uma disparidade entre determinada e a que acabara de ser criada, de modo que a determinada não poderia servir de base para a comparação, pois se a determinada é o modelo, tudo o que não se enquadrasse neste modelo seria trivial.

Surge, a partir do século XX, a necessidade de inovação na arquitetação da obra. A criação da obra, os métodos e os recursos utilizados devem se diferenciar dos precedentes. O criador deve livrar-se o máximo possível da angústia de sua influência implícita ou explicita. Ter aquilo que Bloom denomina de “consciência poética”. Ou seja, ter consciência que sua obra faz um corte com a linha de tradição dos moldes de arquitetação literária precedentes, o que seria na ciência o que Bachelard denominou de corte epistemológico, que se oporia ao positivismo e ao evolucionismo. A obra criada não necessariamente precisaria prestar contas as suas antecedentes. Ela romperia com a tradição e daria gênese a uma outra, é o que ocorre com Guimarães Rosa e James Joyce no século XX.

O estudo de determinadas obras e de seus elementos recorrentes acarretaria no surgimento de uma arte poética. A arte poética surge a partir das descrições de estruturas e de elementos constituintes, criando a priori um juízo de fato. A função da arte poética é descrever a obra e não prescrevê-la, pois ao fazer isto, ela passa de um juízo de fato para um juízo de valor. A obra surge primeiro que a arte poética, que surgirá após estudos sistemáticos por parte da crítica. O risco que há, é o de a arte poética tornar-se prescritiva, o que deturparia a sua função descritiva.

Aristóteles dispõe-se a examinar a natureza e os atributos diferenciadores da literatura. O método empregado por ele consiste no exame de fenômenos observados, tendo em vista anotar suas qualidades e feições. Sua preocupação é, sobretudo, ontológica, ou seja, descobrir em que de fato consiste a literatura, e não prescrever o que de fato ela deveria ser. Ele dispõe sua descrição disposta de tal forma que a análise da natureza da literatura compreenda a de suas funções.
A arte poética a priori seria o trabalho final da crítica para com a análise de determinados conjuntos de obras que se homogeinizam. Os elementos comparados demonstrariam que elas formam um corpo comum a partir dos recursos e métodos utilizados pelos seus criadores. O modelo de composição, os elementos formais e a estrutura seriam as mesmas recorrentes em todas as obras. Todavia, o que ocorre a posterioi é que a arte poética acaba por se tornar não mais uma obra a partir de um produto final de observação, análise estudo da crítica. Ela se torna um modelo que deve ser seguido pelos criadores vindouros. Cria-se um juízo de valor.

Ao criar-se um juízo de valor, a arte poética deixaria de ter a sua função inicial que é a sistematização dos estudos da crítica para co obras similares e teria a função de mera nortista numa área onde o campo magnético aponta para todas as pétalas da rosa. Seria uma contradição a arte poética ter um juízo de valor, ela perderia o sentido para o qual ela fora criada: a descrição. A arte poética transmuta-se em esfinge e toda criação posterior a transmutação estaria na condição de Édipo, que deve decifrá-la ou ser devorado por ela.

Para concluir, expomos a idéia de como deveria portar a crítica diante da criação literária e da obra de arte. Vimos que a crítica, a partir de seus métodos, deveria utilizar-se apenas de um juízo de fato na análise da obra. Mas, devido em termos ao método comparativo, a crítica utiliza-se de um juízo de valor ao eleger determinadas obras modelares como base de comparação para as obras procedentes. Vimos também que a arte seria o produto final da sistematização do estudo da crítica para com determinadas obras que se apresentam homogêneas. Ela nasceria a partir de um juízo de fato, mas acaba por se tornar um texto que se auto proclama nortista, caracterizado e cunhado de um juízo de valor. Portanto, ela passa de análise no âmbito de um juízo de fato com características descritivas para o âmbito de um juízo de valor com características prescritivas.

Cine Campus: Dirigindo no escuro.

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O tempo cíclico e o tempo finito: Perséfones e Ades.

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Tempo, a imagem de grãos de areia escorrendo para uma outra extremidade da ampulheta ou folhas das
árvores que caem e esparramam-se pelo chão, devido ao vento frio do outono, que começará, depois do inverno, a se aquecer com Perséfones. O tempo sempre foi, desde os primórdios da humanidade nas savanas africanas, uma das maiores preocupações e desafios para o pensamento humano. Diferentemente da percepção do espaço que se dá a partir de um ponto instaurado pelo ego, onde há a percepção de todo um raio de espaço que é exterior ao ser; a percepção do tempo dá-se tanto no ser quanto no espaço. O envelhecimento do corpo, a morte, as estações do ano são marcas temporais perceptíveis diretamente ou indiretamente pelo ser, de modo que a percepção é o primeiro contato do ser com o tempo, o que gera duas concepções perceptuais de tempo: o tempo finito e o tempo cíclico.

No tempo finito, há um afa e um ômega e, muitas vezes, uma gênese e um apocalipse. Aqui o tempo é tido como algo que tem uma extensão linear finita em ordem “crescente”. Ele sempre aponta para um devir que se diferencia do presente, mas que nunca se repetirá, de modo que o presente nunca será o mesmo e o futuro nunca será passado. Um dos fatores de sustentabilidade da concepção finita de tempo é a morte, um dos maiores arquétipos, para a cultura ocidental judaica-crista, de finitude: O homem sempre se preocupou com o tempo, pois pensá-lo significa ocupar-se da fugacidade e da efemeridade da vida e da inexoralidade da morte. A fatalidade da morte mostra a irreversibilidade do tempo humano. Nesta concepção de tempo, nenhum tempo é idêntico ao outro, o tempo não se repete.

No conceito do tempo cíclico, há a ciclicidade do tempo, tudo que foi, será e tudo que é, era. Um dos fenômenos que melhor expressa essa concepção são as estações do ano. Elas se repetem, assim há a percepção de que depois do inverno vem a primavera, depois o verão, em seguida o outono, para depois repetir tudo outra vez: Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera. Sempre Perséfones passa seis meses no Ades e seis meses com a sua mãe Deméter. O ciclo das estações constitui um processo que diz respeito à medida objetiva do tempo, designando pontos ou intervalos numa seqüência cronológica.

A morte não é aqui um fim e sim um constituinte fundamental do ciclo da vida. Ela é a irmã mais velha dos perpétuos. O tempo cíclico gera um tempo infinito, assim como dito pelo escritor argentino Jorge Luis Borges: “Num tempo infinito, o número de permutações possíveis deve ser alcançado, e o universo tem de se repetir.” O autor ainda salienta que o universo é consumido ciclicamente pelo fogo que o gerou e ressurge da destruição para repetir uma história idêntica. Para Mearleau-Ponty, a finitude é a retirada prévia do finito da potência do ser infinito. O infinito, segundo ele, estabelecido é um infinito da existência e não infinito de essência.

A concepção cíclica do tempo está presente no pensamento de Nietzsche acerca do eterno
retorno. Segundo Borges, há três modos fundamentais do eterno retorno nietzschiniano: no primeiro, o ápice, é quando o tempo volta para o seu ponto de origem. O segundo está vinculado à glória, de modo que, de acordo com Borges, um princípio algébrico o justifica. No terceiro, os ciclos são semelhantes, não idênticos.

Logo, as duas concepções primevas de tempo advêm da percepção humana e do modo de como ela é sentida, bem como os elementos perceptuais: estações do ano, vida, morte, etc. As concepções de tempo finito e tempo cíclico geram as duas primeiras formas que o ser percebe o tempo. Contudo, seus conceitos partem da percepção e, portanto, surgem a partir de uma sistematização empírica das sensações perceptivas do ser para com o ser e para com o espaço.