Apocalipse Agora, no Cinema

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Se você está lendo este texto na manhã do dia 21 de dezembro de 2012, o mundo não acabou. Mas, se acabar, a trilha sonora perfeita seria a música “The End”, da banda estadunidense The Doors, com o seu verso inicial: “This is the end” (“Este é o fim”). O tema do fim do mundo é algo fascinante: na nossa tradição de matriz judaico-cristã há o gênese e o apocalipse; no entanto, temos mais predileção pelo último, já que a criação, para a consciência humana, é algo a priori enquanto a destruição é a posteriori. A fascinação pelo apocalipse também alimenta diversas narrativas cinematográficas com as suas histórias de como será o fim da humanidade e do planeta Terra. Nos últimos trinta anos, diversos filmes trabalharam diretamente o tema, seja a partir do apocalipse nuclear, nas décadas de 1970 e 80; ou o apocalipse cósmico, na década de 1990; como também o apocalipse zumbi propagado nos últimos anos.

Of our elaborate plans, the end”. Durante a Guerra Fria (1945-1991), o mundo, polarizado pelos Estados Unidos de um lado e a União Soviética de outro, sofre com uma corrida armamentista de proporções nucleares, onde cada um dos dois países teria armas nucleares suficientes para destruir centenas de vezes o planeta. A cada novo conflito indireto, que houvesse a perspectiva de um conflito direto, os ponteiros do “relógio do apocalipse” chegava mais perto da meia-noite, do fim do mundo, com o consequente apocalipse nuclear. Filmes como “O dia seguinte” (The day after, EUA, 1983), dirigido por Nicholas Meyer; “Herança nuclear’ (Testament, EUA, 1983), de Lynne Littman; e o excelente “O Último Brilho do Crepúsculo” (Twilight’s Last Gleaming, EUA-Alemanha Ocidental, 1977), dirigido pelo experiente diretor Robert Aldrich; são exemplos de produções deste período histórico no qual havia a iminência de um fim nuclear para todos os planos da humanidade. 

No safety or surprise, the end”. Com o fim da União Soviética, em 1991, e com a “despolarização política”, a predominância do apocalipse nuclear cedeu espaço para o apocalipse cósmico, no qual o fim do planeta e dos seres humanos se daria a partir de eventos e causas que são exteriores a Terra e independem da ação humana. Filmes que meteoros, asteroides estão em rota de colisão com o planeta se propagaram durante a década de 1990, com produções tais como “Impacto Profundo” (Deep Impact, EUA, 1998); “Armagedom” (Armageddon, EUA, 1998); “Asteroide” (Asteroid, EUA, 1997). O interessante é que em narrativas fílmicas apocalípticas nas quais a destruição da Terra é causada por fatores externos ao planeta são substituídas, a partir do ano 2.000, por outras narrativas onde a destruição é causada por fatores internos, como desastres naturais e ambientais, em filmes como “O Fim do Mundo” (Category 7: The End of the World, EUA, 2005); “O Dia Depois de Amanhã” (The Day After Tomorrow, EUA, 2004); “2012” (EUA, 2009). 

Of everything that stands, the end”. Sem dúvida, o tema mais interessante para o apocalipse é o zumbi. No apocalipse zumbi a humanidade é reduzida a poucos sobreviventes de uma infestação que reduziu o resto da humanidade a zumbis. No cinema, a tradição começou na década de 1960 com o filme “A Noite dos Mortos-Vivos” (Night of the Living Dead, EUA, 1968), dirigido por George Romero. Nos últimos anos, filmes que tratam do apocalipse zumbi se proliferaram, tais como “Dead Meat: O Banquete dos Zombis” (Dead Meat, Irlanda, 2004); “Apocalipse Zumbi” (Zombie Apocalypse, EUA, 2011); “[REC]³ Gênesis” (Espanha, 2012); “The Zombie Diaries” (U.K, 2006); “Planeta Terror” (Grind House: Planet Terror, EUA, 2007) e todos os filmes da franquia “Resident evil”. O que se nota nos filmes deste gênero é a mudança de caráter independente da produção para superproduções, já que o tema é altamente vendável e se desdobra em diversos outros produtos, o que a indústria do cinema adora. 

The end of laughter and soft lies”. Todavia, os melhores filmes sobre o apocalipse não tratam do fato de forma direta e objetiva, mas sim de forma indireta e subjetiva, como é o caso do excelente filme “Melancolia” (Melancholia, Dinamarca, 2011), escrito e dirigido por Lars von Trier, o mesmo de “Os Idiotas” (1998), “Dançando no escuro” (2.000), “Dogville” (2003) e “O Anticristo” (2009). Em “Melancolia’, o planeta, chamado Melancolia, está em rota de colisão com a Terra; a personagem Justine, interpretada por Kirsten Dunst que ainda recebeu o prêmio de melhor atriz do Festival de Cannes; se transforma em uma pessoa triste e melancólica rente ao apocalipse iminente. Não há salvação, nem mesmo um lugar onde se apoiar, há “o fim da gargalhada e das mentiras suaves”. 

The end of nights we tried to die”. Viver não é o bastante, morrer é preciso. Mas, o ser humano não consegue aceitar o fim, a morte, como algo simples e natural. Há a necessidade de um fim grandioso, seja tentando sobreviver a uma guerra nuclear, a desastres naturais, impactos de asteroides e cometas ou a uma horda de zumbis, como visto em dezenas de filmes. No entanto, se o mundo fosse realmente acabar e a humanidade tiver conhecimento dos fatos, não gostaria que fosse a partir de um apocalipse zumbi, pois quem me garantiria que não seria um infectado, mas sim através da destruição cósmica ou mesmo pelo planeta Melancolia. Há o alfa e o ômega, quem tiver olhos, veja; quem tiver ouvidos, ouça: “This is the end”.

O Videoclipe Dentro do Audiovisual

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Os gêneros, dentro de uma dada linguagem, podem ser considerados como particularidades que os identificam e os singularizam em relação a outros gêneros. Se pegarmos a área do audiovisual, o videoclipe seria um gênero que se desprende do Cinema e se configura com características próprias a partir de dois elementos sintáticos bases: a performance e a narratividade. Há três principais estágios do desenvolvimento do videoclipe: o primeiro, a sua gênese na década de 1960 com os Beatles; o segundo, na década de 1980 com o surgimento da MTV; e o terceiro, a partir do ano de 2005 com o surgimento do site youtube. 

No seu início, o videoclipe se desprende dos musicais hollywoodianos, que serviram como modelo para bandas e cantores de rock para venderem não só a música, mas também a imagem do artista. Um dos pioneiros neste segmento foi Elvis Presley (1935-1977), que atuou em mais de vinte produções. A função da música era apenas a de suspender a ação e fazer um comentário sobre a narrativa. Assim, quando a ação era suspensa começa a performance do artista. Os musicais se mostraram de estrema valia para a então nascente indústria musical, por ser um meio de fácil assimilação junto ao público e também por ser um excelente canal de divulgação.  

Na década de 1960, há uma quebra importante com a estrutura e um novo recurso, que surgiria dentro de um musical, mas que será um dos elementos que caracterizarão o videoclipe. No filme “A Hard Day's Night” (Inglaterra, 1964), do diretor Richard Lester, os Beatles dão o primeiro passo para aquilo que será conhecido depois como vídeos promocionais de divulgação. Na cena da música “I should have known better”, os Beatles, após correrem pelo trem, acabam se trancando dentro de um compartimento de cargas, enquanto há fãs que os observam, começam a cantar a música. O elemento inovador consiste no fato da cena não haver nenhum instrumento musical, que aparecem de repente (guitarra, baixo, bateria e gaita) e depois somem, o que quebra com o naturalismo da narrativa, juntamente com a passagem da música extradiegética para diegética, ou seja, a passagem do som que está fora do universo da ação para um dentro do universo da ação. 

Os Beatles seriam responsáveis ainda por dar o objetivo que caracteriza o videoclipe: o promocional. Não podendo comparecer ao diversos compromissos e não querendo mais fazer shows ao vivo, resolveram gravar vídeos, na época chamados de “vídeos-promocionais”, e os enviaram às emissoras de televisão. Os primeiros vídeos gravados foram “Paperback Writer” e “Rain”, em 1966, que foram exibidos no programa do apresentador estadunidense Ed Sullivan, no canal CBS. A banda ainda produziu diversos outros vídeos, merecendo especial destaque “Strawberry Fields Forever” e “Panny Lane”. 

Na década de 1980, surge o segundo e mais importante estágio da história do videoclipe, inaugurado pela criação do canal MTV (Music TeleVision), em 1981. Durante mais de 20 anos, a emissora foi a referência e a controladora do gênero, assimilando a sua imagem ao videoclipe. Os videoclipes eram elementos fundamentais para a promoção mercadológica de determinadas bandas, que deveriam produzir vídeos de divulgação que eram exibidos na grade da emissora. Neste segmento, tem-se o auge dos artistas pop da década de 1980 e 1990, que assimilaram a importância do videoclipe para a vendagem de discos, como Michael Jackson, Madonna, Dire Straits, e até mesmo a banda Nirvana, com o seu “Smells Like Teen Spirit”. 

O terceiro estágio surge a partir dos anos 2.000 com a popularização das câmeras filmadoras e barateamento da produção audiovisual, o que propiciou e popularizou o formato do videoclipe, pois qualquer artista ou banda poderia produzir os seus vídeos promocionais e colocá-los no youtube, o que criou uma cena independente de produção e distribuição. No entanto, até mesmo os “grandes” artistas pop assimilaram a importância do canal, de modo que passaram a criar contas para colocarem os seus vídeos na internet. Todavia, o maior resultado de promoção dos vídeos e, consequentemente, dos cantores e bandas pop veio da parodia dos videoclipes, que criavam uma gama enorme de reproduções das coreografias e das performances, das mais bizarras e grotescas possíveis. 

O videoclipe, enquanto gênero audiovisual autônomo, surge apenas na década de 80 do século passado. Em sua gênese, ele se desprende dos filmes musicais hollywoodianos, a partir dos vídeos promocionais dos Beatles, na década de 1960, e desenvolve características próprias, como narratividade e performance, de forma sintética. Estes dois elementos apresentam-se como estruturas recorrentes na maioria das obras do gênero: há a performance, com os músicos da banda simulando executarem a canção e há, na maioria dos casos, uma micronarrativa, desta maneira a organização sintática origina-se na alternância destes dois elementos. No entanto, o youtube e a popularização das câmeras de filmagem ampliaram o gênero e tornaram mais fácil a produção e a divulgação. A questão da parodia dos videoclipes é um artigo a parte.

Paradise Now ou Paraíso Perdido: do Filme à Situação Palestina

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Contrapondo-se à dialética idealista hegeliana, ao analisar os dois golpes que levaram Napoleão I (1769-1821) e seu sobrinho Napoleão III (1808-1873) a se autoproclamarem imperadores da França; na sua obra “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” (1852), Karl Marx (1818-1883) afirma que a história se repete: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. No caso da criação do estado israelense e a conseguinte ocupação da Palestina, tal ordem se mostra presente, como podemos ver no filme “Paraíso, agora!” (Paradise now, Palestina, 2005), dirigido por Hany Abu-Assad (1961-), que trata da “Questão Palestina” e das formas de resistência dentro da Cisjordânia. 

O filme “Paradise now” relata as últimas horas de vida de dois amigos de infância chamados Khaled e Said, que moram na cidade Nablus, dentro da Cisjordânia, um território Palestino ocupado e controlado militarmente pelo Estado de Israel. Eles foram recrutados para um ataque suicida contra a cidade israelense de Tel Aviv. Serão mártires, morrerão como homens-bombas na única forma que possuem de lutar contra a humilhante e restringente ocupação israelense. Nas suas últimas horas, dormem, comem, mantêm a rotina. Amanhece, devem se preparar. Com as bombas presas ao corpo, partem para Tel Aviv, se separam, o plano dá errado, Khaled retorna para Nablus, Said prossegue, vai até um acampamento de colonos israelenses, pensa em explodir um ônibus, hesita, há mulheres e crianças. Ele também volta para Nablus. Os chefes da resistência decidem continuar com o plano, Said e Khaled voltam para o território Israelense, desta vez, Khaled hesita, mas Said está mais convicto da única forma de resistência que o povo palestino tem. Ele entra em um ônibus, desta vez há alguns soldados israelenses, a câmera vai fechando em zoom-in no seu rosto, de um plano aberto para um plano-fechado: a tela fica clara, depois escura, há o silêncio, desce os créditos.

Em relação à forma do filme, há um discurso cinematográfico padrão, com uma narrativa linear. O espectador é convidado a acompanhar as últimas horas de Said e Khaled. Os planos são fechados, há uma recorrência de close-up, o que aumenta a identificação do espectador com as personagens, pois, agora ambos fazem parte do universo da ação. O filme possui, mesmo sendo uma narrativa ficcional, um estilo cinematográfico que remete ao documentário, com a tentativa de ampliar o efeito de realidade e reforçar a situação cotidiana, seja do lado político e militar da Palestina ou do lado humanista dos dois palestinos que devem cumprir a missão de serem homens-bombas. As hesitações e as convicções de Said e Khaled acabam sendo transportadas para o espectador. 

Outro aspecto interessante é a recorrência do recurso do “mise em abyme”, ou seja, a “obra dentro da obra”, só que em uma escala menor, como, por exemplo, o desenho de um brasão que possui um brasão, em uma escala menor, dentro de si mesmo; ou como a famosa capa do disco “Ummagumma” (1969) da banda inglesa Pink Floyd. Tal recurso é utilizado em uma das cenas na qual Khaled está em um bar e há uma televisão, ao fundo, transmitindo notícias sobre a conflituosa relação entre israelenses e palestinos. Ele também é utilizado no vídeo de gravação de despedida dos mártires, no qual eles falam das razões de se explodirem e dizem as suas últimas palavras. Os vídeos são vendidos ou alugados, há ainda a fotografia oficial, com a bandeira palestina ao fundo, armas e o lenço típico, o que dá impressão da obra dentro da obra. 

O tema abordado no filme se mostra complexo e é feito a partir de uma perspectiva humanista, já que somos introduzidos às angústias do povo palestino, submetidos à ocupação e ao genocídio gradual por parte de Israel. A discussão das formas de luta e de resistência estão presentes ao longo da narrativa, questões tais como se a prática suicida de homens-bombas surge efeito ou se apenas servem como combustível para o discurso israelense de “legítima defesa” para a manutenção das sanções e do controle sobre o território Palestino. Os dramas da ocupação israelense são incontáveis: a humilhação é diária, não há a liberdade de locomoção. A vida, controlada e submetida, é um inferno, para a personagem Said “Quem luta pela vida, dá a sua por ela”, ou como ressalta o poeta inglês John Milton (1608-1674), através da fala do “Pai dos revoltosos’, pois livre “pode-se transforma o céu em inferno ou inferno em céu”. 

 No filme “Paradise now”, o que geopoliticamente costuma-se chamar “Questão palestina” é colocada a partir da degradante situação da ocupação israelense na Cisjordânia. Sua narrativa centra-se na tentativa de resistência e a luta do povo palestino. O que se tem ao final é que: se as ideias são à prova de balas, os homens-bombas, no caso palestino, são as provas da ideia e a consequência da ocupação. Mas, seria estranho morrer por ideias, mas viver por elas também não seria uma forma de submissão? Como diriam Ivan Karamazov, Stravóguin ou Rodka. No filme, para Said, somente como mártir que ele pode conquistar o poder político e militar, morre usando o seu corpo como arma e dá um significado político para a sua morte. Voltando para o início, em um eterno retorno, “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” E ao final, como cantava a saudosa banda araraquarense Belmyra: “Triste são os olhos da Palestina”.

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Música 'Palestina', Banda Belmyra


O Efeito de Realidade no Cinema

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No dia 28 de dezembro de 1895, no subsolo do Grand Café na região do Boulevard des Capucines, em Paris, houve a primeira exibição de um filme aberta ao público em um local apropriado. Alguns espectadores compareceram ao local com o intuito de verificar de perto a mais nova invenção que prometia, não só copiar, mas também reproduzir elementos do real. Para o espanto da maioria dos presentes, ao assistirem a exibição de “A Saída da Fábrica Lumière em Lyon” (La Sortie de l'usine Lumière à Lyon), era o real reproduzido de forma mais mimética do que a fotografia. No entanto, o principal choque viria na segunda sessão, no dia 6 de janeiro de 1896, quando foi exibido o filme “A chegada do trem na estação” (L'Arrivée d'un train à La Ciotat); o pânico foi geral, pois a maioria dos presentes, que pagaram o valor de 1 franco para a sessão, se assustou com a imagem de um trem indo em direção à objetiva da câmera, o que os fizeram acreditar que o trem estava vindo em sua direção.

Os responsáveis pelo feito foram os irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948) que criaram o cinematógrafo: um equipamento que não só captava imagens em fotogramas, mas também as projetava em uma dada sequência, o que cria a ilusão de movimento e o efeito de realidade. Dois elementos estes que sustentam a relação do espectador com o filme e dois dos mais teorizados e discutidos pelos teóricos ao longo de mais de 100 anos, representados pela polarização entre Cinema naturalista versus Cinema realista. 

Nos seus primórdios, o que diferenciava o Cinema da Fotografia era a ilusão de movimento. Enquanto a Fotografia captura o real em um único fotograma retido em um instante singular e estático com um tempo e um espaço delimitado, no Cinema havia o movimento, o que tornava a obra fílmica mais realista do que a obra fotográfica. No entanto, o que cria a ilusão de movimento é, paradoxalmente, um efeito de ilusão, chamado “efeito phi”, criado pelo nosso cérebro. Ao projetarmos, convencionalmente, 24 fotogramas, separados por 1/24 avos de uma fita preta, em uma dada sequência, o cérebro não vai reconhecê-las, o que criará uma percepção em sequência dos fotogramas e uma, consequente, ilusão de movimento. 

A ilusão de movimento é o ponto de sustentação do efeito de realidade no Cinema. A obra cinematográfica ganhou o status de reprodutora fiel do real, o que provocou não só o pânico nos espectadores nas primeiras sessões de cinema dos irmãos Lumière, mas também alguns posicionamentos de teóricos e de cineastas acerca de como isto pode afetar e direcionar a relação do espectador com a obra fílmica. Uma problemática surgiu: devido à excelente capacidade do Cinema de criar um efeito de realidade, os espectadores poderiam se identificar com a obra, como também serem manipulados, pois acreditariam que o que estão vendo é real e, portanto, verdadeiro, o que poderia sancionar mentiras e fomentar determinados posicionamentos ideológicos. Eis que é introduzida a questão do Cinema como um veículo ideológico, polarizada, inicialmente, entre Cinema naturalista versus Cinema realista. 

No Cinema naturalista, há a naturalização dos elementos da linguagem cinematográfica, de modo que todos eles devem se tornar imperceptíveis para o espectador, o que aumentaria o efeito de realidade produzido pela obra fílmica. Todos os elementos devem ser naturais, tais como a interpretação dos atores, os planos e os ângulos, além da ocorrência de um Cinema de gênero, pautados em gêneros fixos e padronizados, de fácil assimilação do público. Os críticos ao Cinema naturalista alegam que ele pode ser um veiculador de determinadas posições ideológicas, principalmente as ligadas à ideologia burguesa, podendo sancionar uma mentira, ou um posicionamento, ou até mesmo valores, é o que ocorre nitidamente com o cinema hollywoodiano, historicamente. 

Em contraponto ao Cinema naturalista, há adeptos do realismo, das vanguardas, e do Cinema moderno; que, em geral, se posicionam de maneira contrária ao naturalismo cinematográfico. Para eles, principalmente para os realistas, o cinema naturalista manipula o real ideologicamente, sancionando mentiras. O realismo cinematográfico coloca a realidade objetiva em destaque e, ao mesmo tempo, destaca que o que está sendo mostrado não é algo inquestionável, mas sim uma narrativa que pretende ser uma representação do real, não o próprio real, de modo que o mise-en-scène cinematográfico deve ser exposto para o público, o que pode gerar a desconstrução da linguagem cinematográfica e/ou o efeito de estranhamento no espectador. 

A ilusão de movimento é o principal fator que sustenta o efeito de realidade no Cinema. O espectador tende a acreditar que o que está sendo exibido é real e não uma representação da realidade feita por um sistema de significação, o que pode gerar visões orientadas e manipuladas da realidade segundo posturas ideológicas. A base da oposição entre Cinema naturalista versus Cinema realista centra-se na questão do efeito de realidade e na capacidade do discurso cinematográfico de criar o efeito de real e a identificação no espectador. Mas, assim como René Magritte pinta e escreve em um quadro “Isto não é um cachimbo” (Ceci n'est pas une pipe), o que é representado no filme não é o real.


A Saída da Fábrica Lumière em Lyon


A Chegada do Trem na Estação

Dois Conceitos de Montagem Cinematográfica

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Quando vamos ao cinema para assistir a um determinado filme, vemos uma obra coesa e temos a impressão de vê-la em sua globalidade, em sua síntese. Contudo, a obra cinematográfica, já no seu processo de criação, é constituída por partes segmentadas. O filme é dividido em partes separadas, que se dividem em seqüências, cada seqüência se divide em cenas e, por fim, as cenas são construídas a partir de séries de planos filmados de diversos ângulos. Um dos grandes teóricos, e também diretor de cinema, a tratar da questão da montagem cinematográfica foi o russo Vsevolod Pudovkin (1893-1953), que junto com Sergei Eisenstein (1898-1948) são os maiores expoentes da Teoria Clássica Soviética do Cinema, que teve o seu auge na década de vinte do século passado. 

Pudovkin afirma que a ação de filmar diversos ângulos gera planos, que, em série, formam seqüências, que geram cenas. A relação sintética entre estes elementos estruturais é sustentada pela montagem. Ou seja, o diretor monta o filme a partir do elemento estrutural mínimo, que é o plano, até chegar às seqüências e às cenas. Ele ressalta que o objetivo da montagem é mostrar o desenvolvimento da cena como se fosse em relevo, conduzindo a atenção do espectador. 

A técnica cinematográfica permite filmar cenas em pedaços separados que, ao final, são montados para a exibição. A montagem constrói as cenas a partir de planos separados, no qual cada plano concentra a atenção do espectador apenas para os elementos relevantes para a ação. Pudovkin salienta que a seqüência desses planos não deve ser aleatória, mas sim deve corresponder à transparência natural de um, segundo a sua terminologia, “observador imaginário”. Ele nos dá um exemplo que, quando um determinado personagem vira a cabeça para olhar algo, deve-se mostrar o que ele vê. Deste modo, primeiro, mostra-se, em um plano, a sua cabeça se virando para olhar algo, em seguida, no plano seguinte, mostra-se o seu rosto para, por fim, no terceiro plano da sequência, mostrar a direção do olhar. 

O Cinema possui como uma de suas principais características a capacidade de dirigir a atenção do espectador para os diferentes elementos que se sucedem no desenvolvimento de uma ação segundo os diferentes tipos de planos (plano-médio, plano-americano, plano geral, primeiro-plano, plano de conjunto). É necessário compreender que a montagem significa a direção deliberada e compulsória dos pensamentos e associações do espectador. Para Pudovkin, a arte do diretor consiste na sua faculdade de criar a partir de planos separados e, depois, reuni-los de acordo com as técnicas de montagem, criando, desta forma, a obra cinematográfica. A montagem, deste modo, combina elementos segmentados numa síntese significativa, num todo artístico, coeso e expressivo. Podemos notar que a concepção de montagem de Pudovkin era semelhante a de Eisenstein. No entanto, Pudovkin dava mais ênfase à ligação mental entre planos, ao passo que Eisenstein frisava o impacto mental entre eles, ou seja, a capacidade que A + B têm de criar um significado C. 

Para Eisenstein, assim como para o também teórico Lev Kuleshov (1899-1970), o que caracterizava e particularizava a linguagem cinematográfica em relações às outras artes é justamente a montagem e a capacidade que ela tem de gerar significados a partir da justaposição de imagens em uma relação horizontal de planos. Tal preposição foi feita segundo bases empíricas e ficou conhecida como “Efeito Kuleshov”, no qual se pegarmos uma imagem em primeiro-plano de uma mulher e justapormos a uma imagem de um velório, e voltarmos para o plano inicial da mulher, o espectador achará que a ela está triste. Mas, se pegarmos o mesmo plano com a imagem da mulher e justapormos a um plano com a imagem de uma mesa de comida e depois voltarmos para o plano inicial, o espectador acreditará que a mulher está com fome.

Para Pudovkin, a montagem era responsável por criar a síntese mental da ação na cabeça do espectador. A representação de uma ação, ao longo de um conjunto de planos, deveria respeitar uma continuidade de ação, para que, assim, o realismo dos fatos e das ações fosse natural para o espectador. Nesta perspectiva, uma ação de dois homens (um de frente para o outro) se cumprimentando, que se inicia no plano-médio A, ao ser cortada, em um plano B, para o aperto de mãos, tendo um plano-detalhe (close), ela não deve dar a impressão de descontinuidade, de modo que onde termina a ação no plano A deve ser o início da mesma no plano B, mesmo tendo a passagem de um plano-médio para um primeiro-plano. Assim, a montagem reforça a ligação entre os planos. 

O filme, no seu processo de criação, é segmentado em partes que, ao final do processo, devido à montagem, possui uma forma coesa e sintética. O diretor parte da seleção dos ângulos para formar os planos, que, por sua vez, constituem as seqüências, para criar as cenas e, ao final, conceber a obra cinematográfica. A teoria da montagem estrutural de Pudovkin, juntamente com a de Eisenstein, criou uma nova técnica cinematográfica a partir da segmentação dos elementos estruturais fílmicos e posterior montagem destes mesmos elementos. Tal técnica deu uma enorme contribuição para a teoria do cinema e, conseqüentemente, para a evolução artística da Sétima Arte. 

Para ver: Acossado (Direção: Jean-Luc Godard, França, 1960) 
Para ler: Reflexões sobre a montagem cinematográfica. (Eduardo Leone, Editora da UFMG, 2005)

John Lennon: Nowhere Man

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O dia 05 de outubro de 2012 foi muito significativo para os fãs dos Beatles, comemoraram-se os 50 anos do lançamento do primeiro single da banda, contendo “Love me do” no lado A e “P.S. I love you” no lado B. No último dia 09 de outubro, comemora-se a data de nascimento de John Winston Lennon (1940-1980), uma das personalidades mais importantes do século XX. Ao lado de Paul McCartney, Lennon é um dos responsáveis por delinear as principais características da música serial pop dos últimos 50 anos, estendendo a sua influência artística em diversos campos e Artes. 

Uma das características marcantes dos grandes Artistas é a capacidade que possuem para alimentar, diretamente e indiretamente, outras obras feitas por terceiros em diversas linguagens e expressões artísticas. No caso dos Beatles, as obras cinematográficas baseadas na biografia do Fab Four são quantitativamente enormes. Dentre Paul McCartney (1942-), George Harrison (1943-2001), Ringo Starr (1940-) e John Lennon, o ultimo é, sem dúvida, o que mais possui cine-biografias de todas as qualidades: algumas boas, outras medianas e muitas ruins. A última foi a produção britânica “Nowhere boy” (UK, 2009), que no Brasil recebeu o título de “O garoto de Liverpool”, dirigida por Sam Taylor-Wood

Alguns filmes sobre Lennon são muito ruins, como é o caso do “John e Yoko: uma história de amor” (EUA, 1985), dirigido por Sandor Stern, que narra, de forma grotesca e tecnicamente fraca, a relação de John com Yoko, desde o primeiro encontro, em 1967, na galeria Indica na rua Mason's Yard em Londres; até a morte de Lennon no dia 08 de dezembro de 1980. Outro filme, que se assemelha ao primeiro, é “John Lennon: o mito” (EUA, 2000), dirigido por David Carson, que assim como bom o “Backbeat: os cincos rapazes de Liverpool” (EUA, 1993), narra a formação da banda, focando no período que tocaram em Hamburgo, na Alemanha Ocidental, até o início da beatlemania. “Nowhere boy” (O garoto de Liverpool, UK, 2009), alterando a ordem do texto e já fazendo um juízo de valor, é mediano. 

Nowhere boy” começa com um acorde musical que remete ao início da música “A Hard Day’s Night”. Lennon está correndo para chegar à escola, os planos são similares aos do filme homônimo de 1964, dirigido por Richard Lester; o enquadramento, os cortes, além da ação, dialogam com a produção. Toda a narrativa do filme centra-se no período de formação musical de Lennon: seu primeiro contato com o rock ‘n’ roll através da Rádio Luxemburgo; o violão dado por sua mãe Julia; o primeiro encontro com Paul McCartney às 15h00 do dia 06 de julho de 1957, na apresentação do Quarrymem no pátio da igreja St. Peter, até a morte de Julia no dia 15 de julho de 1958 e a primeira gravação, no mesmo ano, em acetato de John, Paul e George da música "In Spite Of All The Danger", que, aliás, encerra o filme. 

Nowhere boy” é claramente baseado nas informações biográficas contidas nos livros “Crescendo com o meu irmão John Lennon”, escrito pela sua meia-irmã Julia Baird; e pela biografia escrita por Philip NormanJohn Lennon: a vida”. O título brasileiro (“O garoto de Liverpool”) foi uma escolha infeliz, o que ocorre na maioria das vezes, pois o título em inglês remete à composição “Nowhere man” (homem de lugar nenhum) lançada no álbum Rubber Soul, de 1965. “Homem de lugar nenhum” é a marca do grande Artista, que consegue alcançar a imortalidade através da atemporalidade de sua obra, e não a um lugar específico, no caso Liverpool. 

Formalmente e tecnicamente “Nowhere boy” é limitado. Ele é concebido com um estilo simples, em formato de filmes televisivos e cheios de clichês, desde a interpretação do atores, que beiram a construções de tipos pictóricos e, portanto, criando personagens planos. Único ponto interessante, o que é extremamente reconte em filmes sobre os Beatles, é a grande quantidade de referências implícitas e explícitas à vida e à obra do FAB Four, o que gera uma obra bastante intertextual, restringindo a compreensão àqueles que compartilham das fontes de diálogo da narrativa, ou seja, os beatlemaníacos. 

Há lugares que lembram por onde Lennon andou, pessoas que conheceu-, algumas se foram, outras permanecem ligados à vida do “Nowhere man”, que é bastante documentada, cantada e estudada. Mas, em “Nowhere boy”, no fim, há a música, a gênese, o início da formação de um gênio: John Winston Lennon. Um filme para conhecer como se construiu a personalidade e a formação musical de Lennon, além dos seus dramas particulares em relação a sua mãe Julia, que ainda seria cantada nas canções “Julia” e “Mother”. 

Para ver: Não Estou Lá (Direção: Todd Haynes, EUA, 2007) 
Para ler: A música do cinema: os 100 primeiros anos vol. 1 (João Maximo, Editora Rocco, 2009)

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“O Palhaço” e a Melancolia do Cômico de Selton Mello

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 No mês em que o filme brasileiro “O Palhaço” (2011) é indicado à categoria de melhor filme estrangeiro ao comercialmente expressivo, mas artisticamente inexpressivo, Oscar, tem-se, ainda, o discurso de expectativa para a conquista do único prêmio que o cinema nacional ainda não possui. “O palhaço” é a segunda tentativa de incursão do ator Selton Mello na direção de um longa-metragem, a primeira foi em 2008 com o filme “Feliz Natal”. Conhecido pelas suas atuações, na qual interpreta-se a si mesmo, Mello fez um filme sútil-, sem grandes pretensões, com uma narrativa linear, um estilo com um discurso cinematográfico padrão, e um tema de fácil assimilação: a busca por identidade. 

A narrativa é bastante simples: ela conta a história de um palhaço chamado Benjamim (Selton Mello) que está em crise de identidade em um meio desarmonioso. O circo, que seu pai (interpretado por Paulo José) é dono, está cheio de dificuldades financeiras e também outras representadas pelos dramas de relacionamento entre a trupe circense: a dupla de músicos, a dupla de mágicos e sua filha observadora (Larissa Manoela), o grandalhão e a exuberante e femme fatale Lola (Giselle Mota). Há o caos, visto que a harmonia necessária entre a trupe está quebrada, não há o cooperativismo circense. 

Em busca da sua identidade, o palhaço Benjamin deixa a trupe e caminha pelas estradas pedregosas de Minas Gerais. Primeiro, em busca de um pseudo-amor vai de Montes Claros à Passos; em seguida, emprega-se em uma loja de eletrodomésticos, construindo, assim, uma identidade social padrão e rotineira, o que o leva a perceber que a sua identidade é a de palhaço (“O gato bebe leite, o rato come queijo, ele só sabe ser palhaço”). Todo esse caminho de busca é permeado por um fetiche por ventiladores. Com a volta de Benjamim para a trupe circense, tem-se a volta da harmonia, ou seja, há a passagem de um estado de caos e de busca de identidade para a harmonia e a aceitação. O lugar de Benjamin é no circo, dando continuidade ao trabalho do pai. 

 Selton Mello é melhor diretor do que ator, acusado de sempre se interpretar, ele é repleto de limitações dramáticas, basta vermos os filmes “O cheiro do ralo” (Brasil, 2007), dirigido por Heitor Dhalia; e “Meu nome não é Johnny” (Brasil, 2008). Como diretor conseguiu fazer duas proezas: a primeira, fazer um filme simples, com poucos erros e algumas complicações. Mesmo recorrendo a alguns clichês cinematográficos, nota-se certa influência do diretor Luiz Fernando Carvalho, com que trabalhou no filme “Lavoura arcaica” (Brasil, 2001). A segunda proeza foi fazer com que a sua atuação fosse destoante, pois não interpretou-se de forma explícita, o que já é um êxito. 

Destaca-se a direção de arte, mesmo com algumas falhas, a pior delas foi colocarem a bandeira do São Paulo Futebol Clube em cima da mesa do delegado, mesmo com a imagem desfocada dava para notar as duas estrelas amarelas e duas vermelhas, representando, respectivamente, as duas medalhas de ouro conquistadas por Adhemar Ferreira da Silva no salto triplo nas olimpíadas de 1952, em Helsinki (Finlândia); e de 1956, em Melbourne (Austrália) e pelos bi-campeonatos mundiais de clubes, em 1992 e 1993, respectivamente. De modo que a história se passa antes da década de 1990, assim a bandeira não poderia ter as duas estrelas vermelhas, pois isso seria um anacronismo. 

Para a sonoplastia há um duplo movimento: erros e acertos. O ponto positivo foi a composição da trilha sonora com a mescla de música circense, com a eletrônica e o rock, além de uma provável influência do Yann Tiersen, que compôs, entre outras, a trilha sonora dos filmes “O fabuloso destino de Amélie Poulain” (Le fabuleux destin d'Amélie Poulain, França, 2001), dirigido por Jean-Pierre Jeunet; e “Adeus, Lênin” (Good Bye, Lenin!, Alemanha, 2003), dirigido por Wolfgang Becker. Mas, há algumas falhas na captação e no tratamento do áudio, principalmente em alguns diálogos e sons externos. 

O filme “O palhaço” têm seus méritos: divertido, agradável e simples-, nada excepcional. O tema da melancolia do cômico é recorrente dentro da narrativa de diversos outros filmes como, por exemplo, “Os Palhaços” (I clowns, 1970) do diretor italiano Federico Fellini. O tema da melancolia associado com o da busca de identidade se mostra uma relação simples e emotiva, com uma fácil e direta identificação e empatia por parte do espectador. No filme, há a volta do filho pródigo, a busca por uma identidade e a passagem do caos para a harmonia. Mas, o mais agradável é o sotaque mineiro das personagens e as paisagens das Gerais. Pois, nas estradas pedrosas de Minas, a máquina do mundo pode se entreabrir circunspecta. 

Para ver: Meu tio (Direção de Jacques Tati, França, 1958) 
Para ler: Imagens e sons :a nova cultura oral (Milton José de Almeida, Editora Cortez, 1994)

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A dança no escuro de Lars von Trier

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No ano 2.000, o cineasta dinamarquês Lars von Trier (1956-) teve o ápice da sua carreira cinematográfica com o filme “Dançando no escuro” (Dancer in the dark, Dinamarca). O filme pode ser considerado como um divisor de águas na carreira do cineasta, pois divide a sua filmografia em antes e depois do manifesto Dogma 95, responsável por ser o último grande e impactante movimento cinematográfico conhecido da história recente da sétima arte, tendo a adesão de outros cineastas, merecendo especial destaque os também dinamarqueses Søren Kragh-Jacobsen (1947-), Kristian Levring (1957-) e Thomas Vinterberg (1969-).

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Dogma 95 foi um movimento cinematográfico lançado em Copenhague no dia 13 de março de 1995 por cineastas dinamarqueses que propuseram um manifesto, no qual elaboram um conjunto de propostas para criarem um movimento cinematográfico centrado em princípios estéticos baseados em regras técnicas, tais como há não ocorrência de ações superficiais, ou ainda a restrição aos “truques” de filmagem. As regras ficaram conhecidas como “voto de castidade” e propunham uma nova relação com a prática cinematográfica por parte dos diretores, que ainda mantinha o caráter autoral dos filmes, mesmo não podendo assinar os seus respectivos nomes nos créditos.

Dançando no escuro” foi lançado no Festival de Cinema de Cannes (França) e recebeu a Palma de Ouro de melhor filme, como também diversos outros prêmios, como o Goya e o Independent Spirit Awards. O filme é um drama-musical que narra a situação da imigrante da Tchecoslováquia chamada Selma Jezková, interpretada pela cantora islandesa Björk, que também recebeu o prêmio de melhor atriz em Cannes e é ainda a responsável pelas composições da trilha sonora. Ela vive com o seu filho em um trailer alugado. Ambos sofrem de uma doença rara que causa a perda gradual da visão, e sabendo que a doença é genética, Selma passa a trabalhar em uma fábrica nos Estados Unidos para juntar o dinheiro necessário para a operação do filho. Mas, em meio ao trabalho árduo do cotidiano, ela encontra tempo para participar da montagem de um musical, visto que esse é a sua grande paixão. Acompanhamos a relação de Selma com a sua companheira de trabalho Kathy (Catherine Deneuve) e com o casal de senhorios Bill (David Morse) e Linda (Clara Seymour).

Lars von Trier constrói a narrativa de forma linear, somos apresentados às personagens e passamos a conhecer seus dramas, inicialmente, o de Selma que passa a perder a visão e a sua consequente dificuldade de trabalhar e de se locomover. Somos introduzidos ao universo da personagem a partir da música e da dança. O discurso cinematográfico acompanha o ritmo: a câmera na mão em um plano-sequência se movimenta através de zooms. Selma está ensaiando, há o prazer, a desautomatização, pois viver é preciso, a Arte não é precisa. Trier faz um Cinema de contemplação, o plano se estende um pouco mais, sempre vai além da ação no quadro, pois, para ele, o Cinema é também o prazer dos olhos.

A narrativa caminha para um ponto de tensão importante, Bill rouba as economias de Selma. Ela se torna refém da situação, pois ao indagá-lo do roubo, ele tenta forjar uma cena na qual ela está tentando roubá-lo. O êxtase do espectador é a agonia de Selma, que pega uma caixa metálica e bate repetidas vezes contra a cabeça de Bill, já baleado. No entanto, Bill está morto, Selma é presa, julgada e condenada à morte. O casal Bill e Linda são os representante do típico discurso estadunidense, principalmente em relação á sua política externa, cheio de contradições. No final, eles roubam, matam e destroem a todos. Lars é um crítico veemente do pensamento estadunidense, ele expõe toda a contradição do discurso do “American way of life”, o que também ocorre nos seus filmes “Dogville” (2003) e “Manderlay” (2005).

Para Selma, nada de ruim ocorre em um musical, todos dançam e cantam felizes, Lars von Trier faz um musical trágico. Ela se apresenta como uma heroína clássica que sabe do seu trágico destino: quanto mais tenta fugir, mais próximo está do seu destino. No entanto, assim como o herói clássico, ela o aceita, se sacrifica, mas com a música e a dança. Na catártica cena final, há a execução de Selma. Os planos são fechados, a câmera acompanha a ação de perto, o espectador compartilha da angústia de Selma, ele está próximo à ela, é inserido, através da proximidade da câmera, dentro do universo da ação. São 107 passos. O enforcamento é perante uma platéia. A angústia é de Selma e também a do espectador. Há o temor e, em seguida, a piedade.

Dançando no escuro” é uma fusão de dois gêneros: o drama e o musical. O drama da personagem é exposto de forma simples e direta, o interessante é como Trier fundi o musical ao drama. A função do musical é a de aludir à dificuldade da personagem, de modo que sempre que Selma se encontra em dificuldades, ela tem um devaneio em forma de musical. O devaneio suspende a realidade e cria outra mais agradável, com ritmo e música, além de dança. Selma passa a não enxergar, mas o que há para se enxergar? O essencial, e importante, é invisível aos olhos. Ela dança no escuro para iluminar a sua mente e sustentar a sua insustentável leveza do ser. A música e a dança se tornam mais frequentes. Não há nada mais para ser visto, tudo pode ser revisto na mente, e também recriado. O que a memória amou, fica eterno.

Para ver: Janela da alma (João Jardim e Walter Carvalho, Brasil, 2001)
Para ler: Ensaio sobre a cegueira (José Saramago, Editora Companhia das Letras, 2002)

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Cartazes na Parede

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O diretor inglês Michael Winterbotton é um cineasta instigante. No seu filme “9 canções” (9 songs, 2004), ele nos coloca frente à dois princípios de prazer que, quando se cruzam ou se entrelaçam, causam estranhamento no princípio de realidade do espectador. O filme é estruturado a partir da alternância entre cenas de músicas em shows de rock com cenas íntimas do casal Matt e Lisa, como se vê uma estrutura simples e coesa. No entanto, o seu conteúdo se baseia em Eros e Orfeu, no qual reside a complexidade e o estimulo do juízo de valor dos espectadores.

O Cinema Curdo

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A década de 1990 foi o período de ouro do Cinema produzido no oriente-médio, merecendo especial destaque as produções iranianas. Diretores como Abbas Kiarostami (1940-) e Jafar Panahi (1960-), ambos estudaram Cinema na Universidade Teerã, abriram caminho para uma gama de outros diretores da região como Mohsen Makhmalbaf (1957-) e Majid Majidi (1959-). Na onda da New wave cinematográfica pela qual passava o Cinema iraniano, o cineasta curdo Bahman Ghobadi (1969-) acabou ganahando projeção internacional junto à crítica cinematográfica com diversos prêmios em festivais conceituados, como os de Cannes (França), Chicago (EUA), Berlin (Alemanha) e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ao longo de uma década, Bahman Ghobadi se consolidou como um dos principais diretores da região através da direção dos filmes “Tempo de embebedar cavalos” (Demek jibo hespên serxweş, Irã, 2000), “Exílio no Iraque” (Gomgashtei dar Aragh, Irã, 2002) e “Tartarugas podem voar” (Kûsî Jî Dikarin Bifirin, Irã, 2004).

O Curdistão é uma região que fica entre a Turquia, Irã e Iraque, habitada pela etnia curda. No entanto, assim como os bascos que vivem na fronteira da Espanha com a França, os curdos não possuem um Estado nacional, tendo o
seu território extendido por outros países. A complexa situação geopolítica da região, historicamente, dificulta a criação do Estado curdo. Mesmo sem um Estado, a etnia curda possui uma identidade cultural rica, que sobrevive ao longo dos séculos principalmente através da música e da literatura. Atualmente, ela ganha destaque através dos filmes de Bahman Ghobadi. No caso do diretor, ele nasceu na parte iraniana do Curdistão, por isso as produções de seu filme saem como sendo do Irã, o mesmo ocorre com diretores, por exemplo, palestinos que devem colocar a origem de suas produções cinematográficas como sendo israelense, devido à falta de um Estado palestino.

O primeiro filme de destaque de Bahman Ghobadi foi “Tempo de embebedar cavalos” (2000). Na obra, o diretor apresenta a situação do cotidiano de vilas curdas que sofrem o descaso e a opressão dos Estados nacionais iraniano e, principalmente, iraquiano. A solução dos problemas das personagens, nesse caso a órfã Ayoub, que deve cuidar dos seus outros irmãos, incluso um mais novo que sofre de uma doença rara, é atravessar a fronteira do Irã para o Iraque. Para piorar a situação, Ayoub perde uma mula de um comerciante e tem que trabalhar para pagar a dívida.

No seu segundo filme de destaque, “Exílio no Iraque” (2002), o diretor novamente trabalha, a partir de uma perspectiva neo-realista, a situação dos curdos. Por seu turno, a narrativa centra-se na busca de três músicos curdos (um pai e dois filhos), do lado iraniano, por uma famosa cantora que teve que se mudar para o Iraque, anos antes durante a “revolução islâmica”. O contexto da busca desenvolve-se no decorrer do conflito entre Irã e Iraque, no final da década de 1980. No entanto, o que se destaca no filme é a música curda, ainda modal. Quando a busca chega ao final, o que é encontrado não é o que se buscava anteriormente, mas sim outros elementos essenciais para vida. Já que a cantora se esconde, por ter o rosto desfigurado por armas químicas lançadas por Saddam Hussein. Restam-lhes somente atravessar a fronteira, que atrapalha a volta para casa.

Sem dúvida, a grande obra prima de Bahman Ghobadi é o filme “Tartarugas podem voar” (2004), exibido em Araraquara na saudosa Sessão Zoom, em 2006. Novamente, a narativa do filme faz alusão à difícil situação curda, só que desta vez durante a invasão do Iraque pelo governo estadunidense, em 2003. Em um vilarejo ao norte do país, diversas crianças mutiladas vivem em um acampamento de refugiados, onde o cotidiano lúdico infantil se contrasta com os horrores de diversas guerras, sejam as anteriores, ou a que está se configurando. A situação, e a invasão, é expressa a partir da óptica das crianças, que têm o menino apelidado de “Satélite” como mentor e principal protetor. O drama centra-se, no entanto, na situação de três pequenos órfãos refugiados (uma menina e dois meninos mais novos) que chegam ao acampamento. Os três vivem em um abismo de angústia, pois o menino mais novo (3 anos) é fruto de um estupro sofrido pela menina, que fora provocado por soldados iraquianos durante o massacre de sua antiga vila.

Bahman Ghobadi é um arauto da cultura curda, em seus filmes o que se vê é a expressão de uma cultura em suas diversas modalidades, sejam elas musicais, literárias e, a grande novidade e mérito do diretor, a cinematográfica. Nota-se que, mesmo em situações trágicas, a comédia dá um tom ameno para a tragédia. Ela é auxiliada pela música, responsável pela desautomatização do cotidiano de caos. A fronteira do Iraque com o Irã, por dividir e separar o território curdo, se apresenta como um empecilho ao desenvolvimento natural do cotidiano das relações sociais, familiares, e no caso do músico Mirza, em “Exílio no Iraque”, a amorosa. Mas, o humano é demasiado humano, consegue manter a sua identidade, pois a sua pátria é a sua língua, sua música, sua cultura, seus filmes.

Para ver: Em segredo (Direção: Jasmila Zbanic, Bósnia-Herzegóvina, 2006)
Para ler: Lendo as Imagens do Cinema (Michel Marie, Editora Senac, 2009)

Cartazes na Parede

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No documentário, a música ecoa pela cidade de Istambul. Há diversas vozes, uma polifonia musical. Cada canto da cidade um canto, uma voz, um gênero, passando pela música tradicional turca, pelo rap, rock, heavy metal, música clássica e por todos os sons (modal, tonal e serial) produzidos por uma grande cidade milenar. Faith Akin rodou 150 horas de material audiovisual, condensando-o em 90 minutos. O diretor alemão realça a relação entre a música e o espaço geográfico urbano. Ele nos mostra as músicas feitas nas praças, nos bairros, no centro, na periferia, em casas de shows e em pequenos estúdios. Cada música ou gênero estão intimamente ligados com o espaço. O diretor percorre todo o labirinto urbano de Istambul na tentativa de desvendar, de compreender a música feita por seus habitantes. Pelo fato de ser um documentário, o espectador vai junto, tem a mesma visão da fantástica cidade, juntamente com seus sons.

Informações Técnicas
Título no Brasil: Atravessando a Ponte - o Som de Istambul
Título Original:
Crossing the Bridge: The Sound of Istanbul
Diretor: Fatih Akin
País de Origem: Alemanha / Turquia
Gênero: Documentário
Tempo de Duração: 90 minutos
Ano de Lançamento: 2005


A Dualidade do Cinema Soviético da Década de 1960

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O Cinema soviético possui dois grandes períodos: o primeiro período foi representado por cineastas tais 
como Sergei Eisenstein (1898-1948), Vsevolod Pudovkin (1893-1953) e Dziga Vertov (1896-1954), tendo o seu auge na década de 1920. Durante 1960, o cinema soviético ficou polarizado por dois cineastas: Mikhail Kalatozov (1903-1973) e Andrei Tarkovski (1932-1986) que dirigiram, respectivamente, os filmes “Sou Cuba” (Soy Cuba/Ya Kuba, Cuba-U.R.S.S, 1964) e “Andrei Rublev” (U.R.S.S, 1966), que expessam a dualidade entre as correntes do Realismo-socialista e do Cinema poético-puro, e, ao mesmo tempo, o segundo período mais importante da história do cinema soviético.

"Sou Cuba” (1964), de Mikhail Kalatozov, é um dos filmes mais importantes da década de 1960. O filme é considerado uma das expressões máximas do Realismo-socialista, ou seja, da corrente estética marxista ortodoxa que imperava nas artes soviéticas, e que possuia uma concepção de Arte pautada na sua relação com a sociedade e, principalmente, como expressão da luta de classes. Toda a arte soviete, incluindo o Cinema, deveria ser uma expressão ideológica do regime soviete. No caso de Kalatozov, ele havia ganhado grande destaque internacional com o filme “Quando voam as cegonhas” (Letyat Zhuravli, U.R.S.S, 1957), que foi laureado com a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1958.

Deste modo, no contexto da Guerra Fria (1945-1991), pós Revolução cubana (1959) e pós “Crise dos mísseis” (1962), o filme ”Sou Cuba” de Kalatozov serviu como um elemento panfletário e antí-imperialista-capitalista, na medida em que narra a vida da população cubana antes e depois da Revolução, ou seja, da passagem de Cuba como “protetorado”, “casa de praia”, e “prostíbulo” estadunidense para a revolução socialista. Todo um grande aparato de produção, financiado pelo governo soviético, contando com o mais famoso diretor da época (Kalatozov) e com profissionais da área, foi levado para a ilha caribenha na tentativa de rodar um filme que mostrasse, a partir de quatro pequenas histórias exemplares, o processo de transformação pelo qual passou a sociedade cubana na passagem do regime ditatorial de Fulgencio Batista para a revolução de 1º de janeiro.

Por seu turno, em oposição ao filmes realistas-socialistas, ainda na década de 1960, o filme “Andre Rublev” (1966), de Andrei Tarkovski, é uma biografia não linear do homônimo grande pintor russo, que viveu entre os anos de 1360 e 1430. Um período extremamente conturbado da história da Rússia, que sofria com invasões de tribos Tártaras e estava no auge da baixa Idade-Média. Acompanhamos, ao longo de mais de três horas e meia, a trajetória de Rublev e o surgimento e desenvolvimento de seus anseios e de suas dúvidas sobre a fé (Deus), a sociedade russa e sobre a Arte. Vê-se a tentativa do Artista de compreender o mundo a sua volta, seja nos seus aspectos históricos e sociais como também artísticos e estéticos, em uma incessante busca pelo conhecimento e pela verdade.

A inovação de Tarkovski, na estrutura narrativa de “Andrei Rublev”, foi extremamente mal recebida pelo público, pela crítica e pelos políticos soviéticos. Eles alegavam que a narrativa do filme subvertia os dados históricos e a biografia do grande pintor russo. Bradavam ainda que o cineasta desconsiderou a conjuntura materialista histórica dialética e que ainda não se utilizou dos preceitos da estética “Realista-socialista”, que vinha no seu auge criativo com o cineasta Mikhail Kalatazov através do filme “Sou Cuba” (1964). Devido a este conjunto de fatores, Tarkovski foi censurado e execrado pela crítica cinematográfica soviética. No entanto, fora da Rússia, “Andrei Rublev” recebeu diversos prêmios, dentre eles o “Prêmio da Crítica” do Festival de Cannes de 1966. O filme é ainda considerado um dos mais importantes da história do cinema.

Andrei Tarkovski possui uma posição inusitada na história do cinema soviético. Sem dúvida, ele é o mais expressivo e importante cineasta da Rússia desde a tríade de grandes cineastas (Eisenstein, Pudóvkin, Vertov) da escola soviética da década de 20 do século passado. Estudado, amado e laureado fora União Soviética, no entanto, em seu país, Tarkovski foi incompreendido e extremamente censurado. As características do seu filme “Andrei Rublev” não se enquadravam nos preceitos da estética do “Realismo-socialista, então pregada como obrigatória na União Soviética, e bem representada por Mikhail Kalatozov através do filme “Sou Cuba”. O embate das concepções estéticas de Andei Tarkovski e Mikhail Kalatozov expressam não só a dualidade pelo qual passou o cinema soviético na década de 1960, mas também as duas principais polarizações da história da Arte: a primeira diz que a obra de Arte deve ter uma autonômia frente à sociedade e ao real; e a segunda afirma ser a Arte uma expressão direta do real e que esta estabelece uma relação dialética com as forças materias que regem a sociedade.

Para ver: Z (Costa-Gavras, França-Grécia, 1969)
Para ler: A forma do filme. (Sergei Eisenstein, Editora Zahar, 2002)