Invasão Caipira

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Araraquara é uma cidade média do interior de São Paulo com cerca de duzentos mil habitantes, está a 280 km da capital. É rodeada por plantações de cana de açúcar e pés de laranja. Seus habitantes respiram o ar cítrico sem sentir o cheiro em suas narinas tão fatigadas. O cinturão da cana é um espaço demarcado, linguisticamente reconhecido seja pelo “r” retroflexo, ou mesmo pela interjeição “acha”, ou ainda com a preposição “de” na expressão “passo de lá”, como também pelas ruas com nomes, mas indicadas por números. 

A cidade é ainda um estado central da música, capaz de criar festivais, grupos, cantores, músicos de extrema qualidade, movimentar excursões para shows na capital criando uma invasão caipira. Os grandes concertos de rock, espetáculos, festivais fazem com que um contingente de fãs da cidade se desloque para São Paulo percorrendo 280 km para ver, ouvir, sentir a música em uma viagem de um dia. 

Ônibus fretados saem rumo à capital a partir do Bar do Zinho que fica em frente a uma praça na rua mais bonita da cidade. O bar é um local de formação, educação, comunhão musical, onde músicos independentes do interior, da cidade tocam, bebem, conversam, dialogam há mais de meio século. A saída é perto da hora do almoço, quando começa a chegar uma leva de adoradores da música com roupas pretas, camisas de bandas, carregando coolers, sacolinhas com os mantimentos, acessórios para a viagem. 

A música cria uma peregrinação de araraquarenses até São Paulo, criando uma invasão caipira da capital. Uma viagem (“excursão”) como chamada no interior, de um dia, um “bate-volta” fazendo o percurso ser interessante, de modo que alguns preferem se embriagar levemente ou apenas dormir na esperança da viagem ser encurtada. Há os que são enciclopédias, repletos de história no ramo, que estiveram em concertos históricos. 

O concerto, o espetáculo musical é o fim, o objetivo final, mas a travessia do interior à capital é interessante: há o casal (Zé e Glaucia) que voltou de São Paulo apenas para ir no ônibus com os amigos, ou ainda a tímida, a bonita moça (Andréia) de Taquaritinga que viaja um pouco mais. No corredor do ônibus cenas inusitadas: alguns como Paulo Afonso, Igor e Plex conversam sobre física, filosofia, cinema e fotografia; outros, como o Matheus, preferem contar histórias; um estudante tenta fazer o trabalho da faculdade para a manhã seguinte. 

Araraquara é reconhecida não somente pela visita do filósofo francês que quis responder a uma questão, mas pela adoração à música. Não somos reconhecidos apenas pela cana, pela laranja ou pelo “r” “puxado” ou mesmo “arrastado”, a cidade é música, frequências altas, baixas, locais de batidas, ritmos, a música é a nossa melhor amiga. Se não temos boas narinas, compensamos com ouvidos apurados, exigentes, que buscam sons e sentidos na música sendo capaz de criar peregrinações até São Paulo.

Os devaneios do viajante mochileiro

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Uma ideia na cabeça e uma mochila nas costas” é o lema dos mochileiros, viajantes que buscam uma forma mais livre e horizontal de viagens, conhecidas como “mochilões”. A motivação para se viajar muitas vezes parte de uma vontade incontrolável de apenas ir, sair, caminhar, percorrer caminhos ora com roteiros definidos ora sem rumos pré-estabelecidos para conhecer novos lugares, pessoas, culturas para sentir emoções que apenas a desautomatização do cotidiano através de “espaços poéticos” sentidos pelo mochileiro é capaz de criar. 

O mochileiro é um viajante singular, suas características logo são notadas, a mais notória é o “mochilão”, uma grande mochila com diversos compartimentos na qual toda a bagagem pessoal é transportada nas costas. Ele leva apenas o que cabe nela e o que o seu corpo pode aguentar de peso, o ideal é levar o mínimo de coisas possíveis, pois a viagem tem que ser leve, prazerosa, dinâmica. O peso pode ser um empecilho, já que a leveza é uma busca sustentável do ser viajante mochileiro. Outro elemento é o calçado, uma bota impermeável (marrom ou preta), na maioria das vezes, resistente e confortável em todos os terrenos. 

O mochileiro viaja porque precisa, volta porque sente saudades, porque tem memórias que guardou, pois tudo o que a memória amou, fica eterno, como ressalta uma poetiza mineira. Viajar como mochileiro é um estilo, uma proposta, uma filosofia de viagem em que os pontos turísticos, os destinos não sãos os elementos mais importantes, mas, sim, o contato direto, horizontal com culturas diferentes que acaba colocando o mochileiro como alguém que busca fazer parte do local, da cultura visitada.

O mochileiro não busca o conforto de hotéis caros, repletos de constelações; pelo contrário, o hostel é o seu lugar de descanso predileto onde pode dividir um quarto com quatro, seis, nove ou mesmo doze camas com pessoas de diversas nacionalidades. O hostel é a habitação coletiva, uma comuna internacional onde se pode cozinhar e comer em conjunto, ler obras de diversos viajantes, brincar com mascotes, ou ainda ajudar na conservação do espaço. Ele é uma zona autônoma temporária para os mochileiros e um canal de diálogo com a cultura local. 

O mochileiro é um aventureiro por opção, um inquieto por essência, um ser apaixonado por natureza. Sua conduta é sempre cooperativista, a troca e a busca de conhecimento uma constante. Para ele, é preciso conhecer e não apenas visitar; fazer parte, colaborar e não apenas consumir; estar modificando o ser e não apenas vagar por pontos turísticos tirando selfies. Por fim, assim como os antigos navegantes portugueses tinham o seu lema, hoje os mochileiros possuem os nossos: “caminante, no hay camino, se hace camino al andar”.

Fotografias de Viagem

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Foto: Marcela Campos
A fotografia é uma linguagem recente, data da primeira metade do século XIX e logo no seu processo de surgimento foi inicialmente voltada para a documentação do real e, em seguida, trabalhada como sistema de significação de forma artística. Ao lado do cinema (‘imagem em movimento”) se entrelaçou com o advento da modernidade com a sua reprodutividade técnica, em um primeiro momento de bases analógica e, atualmente, digital, o que não apenas popularizou em massa a fotografia como também criou práticas e comportamentos relacionados ao ato fotográfico estranhos, como os selfies em locais cotidianos banais ou mesmo em locais turísticos em viagens. 

Viajar é um deslocamento no espaço e no tempo, caminha-se por locais na busca de “espaços poéticos” que desautomatizem a vida, deem um significado maior para a existência humana em uma dialética entre interior versus exterior, entre o local e o ser, entre a própria cultura e a do outro, para, de maneira empática, formar uma síntese baseada no conhecimento entre todas as pessoas gramaticais: eu, tu, ele/ela, nós, vós, eles/elas em consonância com o espaço-tempo. 

Nota-se que o viajante pós-moderno está mais preocupado em se mostrar, em exibir-se nas redes sociais do que dialogar, estar, sentir, compartilhar com os espaços, locais de viagem, ou mesmo conhecer pessoas e novas culturas. O tempo é seu inimigo, o Chronos que devora os filhos, também limita a quantidade de selfies por pontos turísticos (QSxPT>1.000), por isso é preciso pelear acelerando os passos, movimentando-se mais rápido, de modo que tempo e espaço não se mostram como um contínuo, mas o primeiro como sendo inimigo do segundo. 

A exposição fotográfica ‘Refúgio’, da fotógrafa araraquarense Marcela Campos, exibe uma interessante relação entre fotografia e viagens, entre o espaço nem menor ou maior do que o ser, fonte das posturas do eu-lírico do poeta Carlos Drummond de Andrade, mas, sim, como parte integrante, harmoniosa na sua pequenez ou grandeza. A consciência do espaço fotografado passa pela percepção do eu e da própria artista que mostra cenas cotidianas de cidades do velho continente como sendo “locais calmos”, belos, de refúgio. 

Marcela Campos expõe fotos em ‘Refúgio’ exibindo a sensibilidade do olhar fotográfico sobre pontos turísticos e cotidianos, ordinários e extraordinários. As cenas, os temas retratados mostram a integração do ser com o espaço-tempo. A disposição do ser e dos objetos nos quadros reflete a harmonia que pode ser exposta pela fotografia criada pelo olhar, sensibilidade, técnica do artista, criador por excelência, sensível por natureza, necessário socialmente. Logo, o selfie não “matou a fotografia”, apenas expressou posturas dos nossos estranhos tempos e expôs a cegueira da exibicionista massa curtida. Os refúgios para se enfrentar a “cegueira branca” estão expostos. Quem tiver olhos, veja, mas com as pálpebras abertas.

O roçar da língua em cabeças fechadas

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A língua é dinâmica, é um fato social responsável por intermediar não apenas a relação humana com o real, mas também as relações sociais. O convívio em sociedade é indispensável para o desenvolvimento da linguagem, uma capacidade inata do ser humano, assim como a sociedade depende de um sistema de significação e comunicação para se fundamentar, se desenvolver. Deste modo, pelo aspecto social da língua, há condições e lugares de produção de falas, discursos que podem ter prestígio, e o seu inverso, ou mesmo representar uma escolha ideológica. Eu resolvi escrever Machu Pichu ao invés de “Machu Picchu” no meu livro. 
 
Quando um falante escolhe uma palavra, dentro de um eixo vertical de possibilidades para combinar com outras horizontalmente, e linearmente, produzindo um discurso, deve levar em conta alguns fatores históricos, sociais, de local de fala, etc. Por exemplo, a palavra “denegrir” foi usada durante muito tempo no contexto escravista da sociedade brasileira colonial para depreciar a condição do afrodescendente em detrimento da condição do colonizador. Hoje, não utilizá-la é reconhecer a história brasileira, é não reproduzir erros e preconceitos do passado. 

No contexto latino-americano, há uma revolução em curso, um reconhecimento, uma valorização da identidade ancestral de diversos povos andinos como forma de resiliência e luta contra uma condição social, econômica e cultural imposta desde o processo de colonização. A “Revolução Pachamama” é contra o legado da colonização nos seus diversos aspectos danosos, inclusive linguísticos. Pois, a língua do colonizador é a de prestígio, é a norma, é a imposição, é a dominação. 

Escrever a palavra “Pichu” é estar com quem deveria ser o herdeiro de suas terras, é se orgulhar de uma identidade, preservar uma cultura frente ao colonizador, ao usurpador, ou seja, lutar contra não apenas uma opressão histórica de uma colonização, mas se posicionar contra agressores invisíveis, econômicos, sociais e culturais. Na língua do colonizador é escrita com dois “c”s; já na do morador, do trabalhador, do herdeiro por direito, não por condição, é escrita apenas com um “c”. 

Machu Pichu é explorada, “visitada” por visitantes de diversos locais todos os dias; menos pelos seus herdeiros que no máximo devem limpar e servir seja ao estrangeiro ou mesmo aos herdeiros dos exploradores. Eu resolvi escrever Machu Pichu ao invés de “Machu Picchu” por motivos linguísticos, históricos e sociais, mas também afetivos, pois com quem eu caminhava, compartilhava uma mesa, comia junto o alimentado retirado e dividido da mesma panela, assim o fazia. 

De início, é necessário roçar a língua para incomodar cabeças fechadas, abrir mentes. A norma, muitas vezes, não segue o uso, assim como a norma padrão não esconde a história das palavras. Palavras carregam significados com camadas construídas historicamente, condicionadas socialmente. Aqueles que se prendem apenas ao significante, na grafia das normas, reproduz, não questionam a origem do logos diretamente no verbo, na criação do discurso. Não desconstroem, parte importante do entendimento, da criação.

A Última Sessão

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Caminhando pelo interior da Espanha montado em seu cavalo, chamado Rocinante, e com a companhia do fiel escudeiro, Sancho; o cavaleiro Dom Quixote de la Mancha se depara com inimigos grandiosos, imponentes. O cavaleiro da triste figura para, olha, diz que há gigantes a frente que devem ser confrontados. O escudeiro retruca, alega que são apenas moinhos de ventos. O Cinema é, enquanto Arte, quixotesco; já como produto, é sanchista. A Sessão Zoom é bravamente nos seus cinquenta anos mantida por quixotes.

Em algum lugar, cujo nome é fácil de se lembrar, entre São Carlos e Ribeirão Preto, surgiu a Sessão Zoom, um projeto de exibição cinematográfica que desde 1978 exibe filmes considerados expressões artísticas, caminhantes fora do circuito comercial. Ela percorreu, inicialmente, diversos espaços na cidade: Cine Capri, Cine Veneza, algumas poucas sessões na Casa da Cultura (na sala Jean-Paul Sartre) e na Biblioteca Municipal, tendo o campus da Unesp como base. Depois, se descentralizou, caminhou por outros espaços, mais periféricos, abertos e públicos. 

Exibir filmes é uma relação entre espaços adequados e formatos. Predominantemente, a Sessão Zoom exibiu, historicamente, filmes nos chamados “cinemas de rua” que se confundiam com o formato, sendo exibidos em película de 35mm contendo o movimento de um segundo sob a luz a cada vinte e quatro fotogramas. No entanto, os locais fecharam em 1999, viraram loja comercial de mercadorias e de fé. No templo do consumo se converteram em formato digital, alguns se enlataram. 

Com o fim dos “cinemas de rua” era preciso caminhar para outros lugares, enfrentar outros “inimigos”. A Sessão Zoom vai para o “Espaço Cultural Paratodos”, depois ao shopping. Por fim, perde a batalha, mas retorna, para o mesmo lugar; depois sai para as praças, para os espaços públicos exibindo filmes independentes de qualidade, de resistência à margem. O filme em 35mm é o símbolo da resistência, do saudosismo, mesmo estando no espaço dos “gigantes”. 

A Sessão Zoom é resistência, militância para a difusão do cinema enquanto arte. Luta contra o formato, a falta de incentivo, a chuva, as adversidades, gigantes; mas tem o prazer dos olhos dos produtores e espectadores que veem na luz do cinema uma realidade mais que perfeita, mostrada de forma crítica, artística. 

Não me lembro da primeira vez que fui ao cinema, mas tenho em mim que os melhores filmes que vi foram em 35mm na Sessão Zoom. A primeira sessão, a chegada do cinematógrafo, do filme analógico, o barulho do projetor, a música, a bomboniere, não vivi, mas ouvi e li relatos. Vivo, presenciei a última exibição de um filme em 35mm em Araraquara. Assisti junto ao projetor, sentado no canto da apertada sala do cinema, uma pequena faixa do filme. Não precisava de mais, tinha o fabuloso destino da jovem moradora do bairro de Montmartre que trabalhava no café “dois moinhos” na memória. 

Exibir filmes artísticos, como o faz a Sessão Zoom, é ser idealista, é lutar contra gigantes fantasiados de moinhos. Chegou-se à última sessão, outras virão em outros formatos com Sancho mascando chiclete e Quixote à cavalo.

O preço do Nobel de Literatura de Dylan

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Robert Allen Zimmerman (1941-), mais conhecido como Bob Dylan, foi laureado com o Nobel de Literatura em 2016. O compositor e cantor estadunidense é um dos maiores gênios artísticos dos nossos tempos. Sua obra musical caminha entre a música e a composição poética, possuindo impacto cultural e relevância em outras linguagens artísticas desde a década de 1960. 

O prêmio Nobel de Literatura foi criado em 1901, sendo concedido anualmente pela Academia Sueca para os escritores que se destacam no campo literário. O Nobel não deveria servir para se colocar em discussão a qualidade artística de Dylan, mas, sim, as diretrizes do prêmio. O filósofo francês Jean-Paul Sartre recusou a premiação, poucos outros bons escritores a receberam como Thomas Mann, Luigi Pirandello, Ernest Hemingway, Albert Camus, Pablo Neruda, Gabriel García Márquez e José Saramago

Prêmios literários são arbitrários, destinados a laurear escritores que possuem qualidades segundo as diretrizes de determinados grupos. Com as “musas sob assédio” por parte da indústria cultural, há a tentativa de conciliar mercado editorial e qualidade literária, sendo, no atual contexto, o primeiro predominante sobre o segundo. Bob Dylan está inserido no contexto da cultura de massas, da “arte para o consumo”, mas ele vai além, possui qualidades singulares como Artista que consegue dar relevância social para a sua arte possuindo impacto dentro da sua linguagem, a música. 

Segundo a tradição literária ocidental, a poesia e a música nascem juntas, como uma só linguagem. O termo “gênero lírico” remete à lira, um instrumento musical usado pelos aedos na Grécia antiga. No entanto, os gêneros literários não são estáticos e perenes, ou seja, eles nascem, vivem, morrem e evoluem. Uma das características da arte contemporânea e da modernidade artística é a fusão de gêneros e a interseção de linguagens artísticas. 

A discussão se a composição musical é literatura ou não, não deve caminhar para posicionamentos estáticos de gosto e desejos de imutabilidade dos gêneros literários ou mesmo no sentido restrito do que é literatura, como ocorre com parte de setores da teoria literária e com o senso comum. Pelo contrário, deve caminhar para um entendimento dos fatores que regem a criação artística, possuindo a percepção do dinamismo e da interseção das múltiplas linguagens no contexto atual. 

O bardo Dylan, ou aedo para os gregos, retorna aos primórdios da literatura com a sua Arte, sem distinção entre poesia e música, na própria gênese do gênero lírico. Os tempos estão mudando, como sempre e com frequência, Dylan percebe a mudança, nós a ouvimos, quem tiver ouvidos, ouça-a. Zimmerman está entre os bons, é um dos melhores transitando entre linguagens, é um dos maiores bardos, aedos, compositores e tudo o mais de todos os tempos. O nobel é apenas um prêmio de 8 milhões de coroas suecas. Contrariando John Lennon: I believe in Zimmerman.

O olhar da fotografia no corpo

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A fotografia surge na primeira metade do século XIX, propiciando uma nova relação do homem com a imagem, que podia, então, ser reproduzida de forma mais direta e “fiel” em relação ao real. Não apenas aquilo o que os olhos humanos viam podia ser reproduzido, mas também transposto para uma nova linguagem na qual ganharia um novo significado, uma beleza estética destacada, realçada. Neste contexto, o corpo humano se mostra como modelo, objeto fotográfico por excelência. 

A fotografia amplia a discussão da vontade humana de vencer a morte, o tempo, através da preservação do corpo, como o fizeram os egípcios com a mumificação, ou mesmo o retrato de Dorian Gray ou o retrato oval na literatura, ou tentaram os adeptos do “livro dos mortos”, responsáveis por fotografar pessoas que acabavam de morrer. No entanto, o caráter estético da fotografia se sobressai em relação aos demais, de modo que ao se ver uma fotografia, surge uma forma de contemplação. 

Na literatura, os escritores usam as mesmas palavras que usamos no nosso cotidiano, só que eles as usam de uma forma poética, literária, mas as palavras são exatamente as mesmas. Também na fotografia, o fotógrafo revitaliza a imagem desgastada pelo espelho do cotidiano. O olhar da fotografia no corpo é uma forma bela e singela de contemplá-lo no seu estado mais puro, despido. 

O projeto fotográfico “Nu meu Corpo”, da talentosa fotógrafa araraquarense Simone Dib, é a busca da projeção e do destaque da beleza natural feminina através da fotografia, revitalizando a imagem que as mulheres têm do próprio corpo, mostrando uma mulher empoderada das suas vontades e do seu corpo. O pronome possessivo “meu” destaca a posse do próprio corpo, que dependendo do contexto social, é controlado por uma moral social e/ou religiosa. 

A imagem que algumas mulheres veem no espelho cotidianamente pode ser destacada, realçada, nos seus aspectos belos através da fotografia, como podemos perceber no projeto de Dib. O corpo fotografado é o mesmo com que elas trabalham, estudam e que, muitas vezes, negam. Mas, assim como a palavra pode ser revitalizada pela literatura, a fotografia pode revitalizar a autoimagem do corpo feminino. 

Por fim, o que se tem com as fotografias de Dib, é que o olhar fotográfico no corpo nu da mulher a despe de uma carga moral, machista e religiosa que atribui a sua gênese a costela masculina. Em um dos seus ensaios, a mulher coberta de barro e argila está livre, remetendo a sua criação da consciência do corpo e da liberdade. As mulheres se revestem de barro e argila para retornarem a um primitivo estado de origem mítica e de plena liberdade. A fotografia propicia a liberdade e destaca a beleza do corpo.

 Foto: Simone Dib

 Foto: Simone Dib

Tristes Tempos

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Estamos vivendo tempos conturbados, tempos de absoluta depuração, em que não se diz mais “nosso futuro”, porque o presente se resulta quase inútil, cheio de erros, ódio, falsas esperanças. As instituições democráticas brasileiras já não funcionam mais, não tiveram possibilidade de se fortalecerem, nunca jamais foram reformuladas ou mesmo modificadas. Elas são reféns não apenas de crises econômicas, mas também de forças de castas sociais arcaicas, fruto da formação histórica do Brasil. 

A política brasileira é um transe, um estado alterado da razão, guiada pela emoção, usurpada por arautos demagógicos de religiões. O transe é caótico, violento, não é “feito para principiantes”, por isso as mesmas famílias controlam os ritos, os jogos, as práticas e as leis. Aquele não beneficiário que quiser entrar, não poderá, porque há um porteiro impedindo a entrada; e depois dele há outro e mais outro. A história do nosso país nos revela isso com os sucessivos golpes, interrupções de governos, retrocessos de direitos, de conquistas sociais e de cerceamento de liberdades. 

Legalidade é uma palavra abstrata comandada por um verbo de ação. O legal pode não ser moral, justo, imparcial. Aquele que se esconde por trás do muro da legalidade, tem que construir um muro alto, para se esconder da vergonha da falta de ética e da falta de justiça social. O processo “legalista” judiciário não justifica a prática social, não ameniza as tensões sociais, pelo contrário, reforça estruturas sociais conservadoras, arcaicas, excludentes, violentas. 

A náusea, o muro, a insatisfação. As raquíticas instituições democráticas brasileiras já não suportam as demandas sociais da grande parcela da sociedade. O acesso as instituições é restrito, algo que “monárquico”, há os filhos e os netos que estão na mesma posição dos pais, no mesmo país de seus antepassados. Nada mudou, quando houve a tentativa de mudança, o que se recebe em troca ainda é repressão, violência, uso da força coerciva do estado. 

Toda causa gera uma consequência, mas no atual momento da sociedade brasileira, a segunda deve ser substituída pela reação. É preciso reagir, é preciso lutar, é preciso se organizar, é preciso entender, é preciso não aceitar, é preciso união, é preciso amar, é preciso combater o ódio, é preciso debater, é preciso suportar, é preciso viver (sem medos), é preciso proclamar o fim de falsas esperanças, é preciso estudar o passado, é preciso ter futuro sem temer o presente, é preciso, por fim, jamais temer.




Avenida Espanha com Rua 6

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Em Araraquara, no interior de São Paulo, somos noventa por cento de cheiro de laranja no ar, outros tantos por cento de Arte nas almas. Por isso somos, na maioria das vezes, fechados para o exterior, apenas cumprimentamos os que cruzam os nossos caminhos pelas ruas e avenidas da cidade, não por despeito ou ar de superioridade, mas porque nos fechamos em nós mesmos, em um mundo interior. 

Costumo dizer que possuo uma alma, uma ética mineira. Morei quinze anos de minha vida em Minas Gerais. Principalmente cresci em Minas, de onde trouxe sentimentos diversos, uma espiritualidade, uma melancolia que tanto diverte, um mistério que a alguns encanta. A dor de amar é doce lembrança mineira, dos amores adolescentes, idealizados com garotas simples de cabelos soltos, olhares sonhadores, sorrisos sorrateiros. De quando havia a crença na perenidade da vida, das pessoas, das paixões. Minas é um estado geral da alma, uma eterna briga entre ora o ser maior do que o mundo, ora menor. O estado gauche da vida é uma condição da existência tranquila do sertão da alma mineira. Mas, hoje, ela é apenas um retrato na parede, mas como marca. Minas é isto: empurramos para trás, mas de repente ela volta a rodear-nos dos lados. A gerais é quando menos se espera. 

Caminhando pela pedregosa Rua 5, percebo a minha outra metade, o que faz a mente pulsar, o conhecimento ferver, movimentar e, em alguns casos, aprisionar os pensamentos em estruturas dominantes, principalmente acadêmicas. Araraquara me deu o método, o conhecimento, deu forma artística, o caminho da expressão. Subo a Avenida Espanha, me sento no meu lugar predileto da cidade ao final da tarde para beber um café, comer algo, escrever outras poucas coisas de tantos devaneios. 

Araraquara aterrou o meu ser, talvez por isso gosto de caminhar pelos seus caminhos centrais, não é possível se perder nas grades das suas ruas e avenidas. Também não sinto mais o cheiro de laranja nas minhas narinas tão fatigadas. Nos últimos dias, percebo o lado mineiro se sobressaindo no prosear com o outro, no prazer de ouvir histórias, em tomar cafés. 

Em uma tarde, Ademir criou coragem, me perguntou em que eu trabalhava nos diversos finais de tarde em seu estabelecimento, ficou curioso em saber o que fazia sentado, introspectivo. Sempre que me servia o café, era formal, educado, marca da sua descendência japonesa. Quando respondi que estava terminando o meu livro de relatos de viagem, ele ficou contente, feliz, creio que pela descoberta, me ofereceu um café, bebi, agradeci, passamos a conversar com mais frequência. O café e o Ademir me lembraram que preciso ser mais mineiro.

Relatos de Viagem: Santa Cruz de la Sierra/Bolívia, 23 de dezembro de 2015

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O ônibus atrasou trinta minutos, deveria ter saído às 11h de Puerto Quijarro rumo a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. A manhã estava muito quente, conforme aproximávamos do meio-dia, o calor aumentava, assim como o desconforto. Comi duas empanadas de carne, bebi um suco de maracujá, era muito doce. 
Não há organização prévia para o embarque, o ônibus permanece estacionado ao lado de fora da rodoviária de terra batida. Primeiro carregam as encomendas: caixas, sacos, uma lava louças, um ar condicionado, máquina de lavar roupas, uma pequena bicicleta, um pequeno boliviano a acompanha com o olhar atento. Em seguida, os passageiros colocam as suas bagagens, entram no precário veículo.
O ônibus parte, chego às 20h30 na rodoviária de Santa Cruz de la Sierra. Foram mais de quatrocentos quilômetros de calvário, com muito calor, nenhum conforto. O ar condicionado não funcionava, o sol estava ao lado da minha janela. 
As noves horas de viagem foram uma experiência interessante: fisicamente era castigado com o calor, o desconforto. No entanto, psicologicamente me sentia bem, creio que devido às técnicas de respiração, de meditação ensinadas pela Marcela, minha professora de yoga. Ao meu lado, sentou-se um brasileiro, vivia há três anos em Santa Cruz de la Sierra, viajara a Bolívia como missionário, casou-se com uma boliviana, estava esperando o segundo filho. 

Reilson é paraense, tem vinte e seis anos, viajava de roupa social. Contou-me como é sua vida, como foi sua infância, adolescência no estado brasileiro do Pará, sua experiência como missionário em diversas regiões do Brasil e da Bolívia. Largara os estudos para se dedicar à missão de evangelizar. Sua esposa nasceu em Cochabamba, na Bolívia, está grávida de quatro meses, seu primogênito tem sete meses. 

Durante o trajeto, dialogamos sobre o Livro de Jó, o Evangelho de João e o Livro do Apocalipse. Havia paixão nas suas observações sobre a bíblia, é um crente, um evangelizador, propagador de sua religião. Eu, um ateu, preocupado, fascinado pelas narrativas, pelas reflexões, não concordando com a aposta feita entre Deus e o Diabo; mas que via beleza no título do livro do filósofo alemão Friedrich Nietzsche em alusão ao Evangelho de João no capítulo 19, versículo 5; ou mesmo se encantava com o versículo 8 do primeiro capítulo do último livro de João. 

Em Santa Cruz de la Sierra, o ônibus parou em uma rua próxima à rodoviária, muito movimentada. Reilson se prontificou a encontrar um táxi para mim, não queria que os bolivianos me cobrassem mais caro por ser turista. Disse-me que deveria pagar $20 bolivianos, falara o endereço para o taxista, nos despedimos. Ele resolve pegar um ônibus circular para a sua casa, não daria tempo de chegar ao culto das 21h, reencontraria esposa e filho. 

Quase dormindo, penso que Federico Fellini adoraria ter conhecido o Mercado Municipal e o Terminal Rodoviário de Puerto Quijarro com o seu barulho, as suas cores e o seu caos funcional, o que é belo. Penso em quem seria Flora Nina Guachalla, ou mesmo em uma boliviana parecida com Saraghina. 
(Trecho do livro “De Araraquara a Machu Pichu: Relatos de Viagem”)

Para apoiar o livro, entre no site do Catarse: https://www.catarse.me/araraquaramachupichu



Viagens Imaginadas

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Viajar não é um fim, é um meio, um motivo, uma necessidade. O deslocamento no espaço gera uma nova relação com o tempo presente, essencial para se entender o passado, o futuro. Ter histórias, memórias. Viajo porque preciso; volto porque sinto saudades, porque tenho memórias de espaços, sensações, tempos, viajantes, amores. A viagem é metafísica, representante da dialética interior versus exterior, o roteiro contra o acaso, a percepção da dualidade da vida, dos sentimentos. A troca de seres, o contato. Caminhos criam roteiros lineares, podendo se cruzar, é a sinfonia do acaso. 

Contar relatos de viagens é algo arquetipal, várias culturas possuem seus mitos de criação e de viagens. Na cosmogonia, as aventuras dos heróis por terras estrangeiras são parte fundamental do desenvolvimento do indivíduo e da sociedade. O mito não é apenas uma leitura do mundo, mas também do homem.  Jasão viajou com os argonautas da Grécia até as terras do oriente em busca do velocino de ouro; Macunaíma percorreu terras dos “tristes trópicos” em busca de sua muiraquitã. Na tradição das narrativas nórdicas, os vikings possuem relatos de viagens de aventureiros como Ragnar Lodbrok que se lançaram aos mares com barcos chamados de “drakkars”. 

Heródoto narra em suas “Histórias”, sob o signo das musas, casos de aventureiros de diversos reinos da antiguidade que viajaram rumo a terras desconhecidas. Plutarco narrou “vidas ilustres” com destaque para a de Alexandre, o Grande; aventureiro e conquistador da Macedônia que conseguiu expandir o seu reino até os limites do extremo oriente, em territórios da Índia, estabelecendo o período helenístico da antiguidade. 

Marco Polo viajou de Veneza até o extremo oriente chegando às terras da Mongólia e China dominadas pelo Kublai Khan. Navegantes portugueses partiram do “Jardim das Hespérides” navegando em périplo pelo continente africano, passando pelo mar índico, atlântico, asiático até o Japão; culminando com a circunavegação da terra. 

No universo das histórias em quadrinhos, o personagem Corto Maltese, criado pelo italiano Hugo Pratt, é um aventureiro, um marinheiro com diversas histórias e “baladas em mares salgados” na Oceania, no continente americano, africano, asiático e europeu. Desaparece lutando nas “brigadas internacionais” durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), sua última aventura. 

O cinema possui os “road-movies”, um gênero específico para filmes que se baseiam em relatos de viagens. O cineasta italiano Federico Fellini realizou “A estrada da vida” sobre a história do casal circense de rua chamados de Gelsomina e Zampanò a partir de viés existencialista. Em “Exílios”, o diretor argelino Tony Gatlif coloca a questão da viagem como a busca pela identidade. No filme “Paris, Texas”, de Win Wenders, Travis é um caminhante, se perde por caminhos, retorna para estradas familiares. 

Relatar viagens é compartilhar experiências, sensações, impressões sobre culturas, lugares, tempos e aventuras; caminhando entre a subjetividade e a objetividade, entre a impressão e a escrita. Um devaneio da realidade.

‘Tinderelxs’: o amor nos tempos dos aplicativos

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Amar é uma ação, aquele que ama, como o verbo transitivo, necessita de um complemento, pois quem ama, ama alguém. A busca pelo amor, a reconciliação entre Eros e Psiquê, na era dos aplicativos é o tema da peça ‘Tinderelxs’ da companhia Maizum de Artes Cênicas. Em trajes de núpcias, Dominatrix (Carol Gierwiatowski), PsiquEros (Renato Alves), Stalker (Danilo Forlini) e Bloody Bride (Neila Dória) são quatro personagens que expressam as características do “amor líquido” na tentativa de realização amorosa através de aplicativos de relacionamentos. 

Dominatrix é o amor construído por camadas da memória. Carrega um buquê de noiva com fios de chicote, com uma lança na outra ponta. Sob a cama de gato, tenta conectar as memórias de seus amores, relembra dos efêmeros e intensos. Mas não é a dominadora, é submissa a sua busca. Com os versos “o amor que vive em mim/vou agora revelar/este amor que não tem fim/já não posso em mim guardar” da música ‘Gayana’ expressa-se duplamente, unindo Amor e Arte. 

PsiquEros é o símbolo do amor autodestrutivo, submisso na busca por uma alteridade. Conhece todas as regras dos relacionamentos, mas se flagela, é agredido. Quer apenas amar alguém sem ter que que hesitar, se machucar. Na sua cama, solitário, envia mensagens em áudio para “amores passantes”.

A personagem Bloody Bride expõe a posição do feminismo, questiona o papel da mulher na sua busca pelo amor na atualidade. Ela é o amor não submisso, que luta para se emancipar. Em outro aspecto, Stalker é o humor: é preciso rir, é preciso amar, é preciso achar alguém, uma vida de necessidades. Perfis são expostos, apresentações, buscas se mesclam. 

Na intervenção cênica ‘Tinderelxs’ as histórias apontam para experiências passadas, marcadas na memória, mas o fim, o almejado, é o final feliz representado pela harmonia, comunhão arquetipal entre Eros e Psiquê, simbolizada pelo ritual do matrimônio. Os quatro personagens entram no carro, festejam, há uma música feliz de casamento, partem. 

O amor nos tempos dos aplicativos se prende a uma “cama de gato” tentando conectar os que buscam eternamente serem amantes ou apenas desvencilhar-se da solidão. Como é a busca pelo amor intermediada pela tela, com a ação sendo iniciada com o toque no “x” ou no “coração vermelho”? A companhia Maizum de Artes Cênicas com a direção de Weber Fonseca responde à indagação através da intervenção cênica ‘Tinderelxs’. 

No fim, há a facilidade da conectividade virtual ao mesmo tempo em que ocorre a inabilidade, a efemeridade, a pouca profundidade das relações afetivas humanas. Assim, mesmo na era dos aplicativos, o ser humano, repleto de dilemas existenciais, se volta para questões arquetipais em torno do amor, se questionando “como eu amo?”.



Sobre ser idoso nas cidades e a peça de teatro "+75"

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Manuel (Miquel Chimeno), Antonio (Ferran Orobitg), Fermin (Ivan Alcoba) e Mapi (Núria Pellisa Gracia, estrela da companhia) são quatro idosos, suas pernas são grandes, são amigos que caminham pela cidade. No entanto, possuem ritmo próprio, seja devido à idade avançada, como também pelo companheiro de cadeira de rodas. A peça “+ 75” da companhia de teatro espanhola Fadunito apresenta situações difíceis da relação entre o idoso e o espaço urbano. 


Passar dos 75 anos no século XXI é mais fácil do que em outros períodos da história. A humanidade está conseguindo envelhecer, vive-se por mais tempo, sendo possível tornar-se idoso de forma mais natural. Todavia, a qualidade de vida dos que chegam à terceira idade nos centros urbanos ainda é prejudicada pela falta da capacidade da cidade de integração, acessibilidade e adaptação as necessidades do idoso, opondo- se ao ritmo acelerado da vida moderna
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A companhia de teatro Fadunito usa técnicas do “teatro de rua” para contar a história de quatro amigos idosos tentando se integrar aos espaços urbanos. Os atores usam pernas de pau, o que faz com que se destaquem no meio da multidão, desautomatizando e tornando visível a figura do idoso. 

As cidades contemporâneas não atendem todas as necessidades de acessibilidade dos idosos. Na peça, o personagem chamada Manuel se locomove em cadeiras de rodas, o que faz com que um simples deslocamento seja dificultado por falta de rampas, calçadas pavimentadas, sem nenhuma irregularidade. Como a peça é ‘na rua” alguns espectadores participam da encenação, seja ajudando o cadeirante a atravessar uma rua ou subindo uma escadaria, demandando esforço e trabalho em grupo. 

O destaque da peça é a abordagem da problemática da dificuldade de adaptação não apenas do espaço urbano ao idoso, mas também dos indivíduos. Pois, passam a ver as necessidades dos idosos como um atraso, um problema que estaria atrapalhando o ritmo de vida ordinária urbana. Na apresentação na cidade de Araraquara (Brasil), um policial militar abordou de forma rude e agressiva os atores que, segundo ele, estariam atrapalhando o trânsito e o ritmo do tráfego. 

Por fim, a apresentação do espetáculo “+ 75” da companhia de teatro catalã Fadunito destaca, de forma primorosa, as dificuldades de ser idoso nos centros urbanos atualmente. Manuel, Antonio, Fermin e Mapi possuem ritmos próprios da terceira idade, cabe as cidades se adaptarem criando formas de acessibilidade que facilite a mobilidade do idoso de forma que suas necessidades sejam integradas ao espaço urbano.

Data e local da apresentação: Araraquara, São Paulo, Brasil / 18 de junho de 2016
Fotos: Renato Haddad
Link da companhia: http://www.fadunito.com/wp/
Link da peça: http://www.fadunito.com/wp/75/

Amor

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O Amor é um tema universal, independe do lugar e da época, flui através do espaço-tempo humano, está nos mitos cosmogônicos, nos seus desdobramentos através da Arte. Alguns escritores tentaram defini-lo a partir dos verbos “ser” e “estar” como Camões, ou mesmo Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Morais; outros com os verbos de ações transitivas, como o poeta romano Ovídio; ou ainda de forma intransitiva, como o fez o escritor Mário de Andrade. No Cinema há a melhor reflexão sobre o sentimento tão demasiado humano no filme ‘Amor’, do diretor austríaco Michael Haneke. 

Nas poesias do poeta português Luís de Camões, o Amor é um tema universal, sublime, elevado, ligado ao perfeito “mundo das ideias”, segundo um neoplatonismo amoroso. Quanto mais há a tentativa de defini-lo a partir do verbo “ser”, mais chega-se, paradoxalmente, em uma indefinição, pois a possível síntese surge da ilógica contradição: “arde sem se ver” ou “ferida que dói, e não se sente”. 

O Amor é um verbo que indica estado, o estar no mundo, um sentimento do mundo, em um mundo grande. Minas Gerais é um mundo de terra mágica de onde o poeta Carlos Drummond de Andrade trouxe prendas diversas sobre o Amor gauche, deslocado, maior do que o ser, mas que cabe no “breve espaço de beijar”. A brevidade do amor não tira a sua intensidade. Contrário à insana busca de vencer o tempo, Vinicius de Morais espera que seja “infinito enquanto dure”. 

O poeta romano Ovídio tentou criar uma “arte de amar”, descrevendo condutas relacionadas ao Amor para que “conhecendo-as através de sua leitura, ame”, o que cria uma prática amorosa. O escritor brasileiro Mário de Andrade tira a transitividade do verbo Amar, de modo que ele não precisa de complemento, sendo ele próprio autossuficiente na sua intransitividade. Amar se torna um verbo intransitivo. 

O Amor é um estado, busca lugares calmos para lutar contra o tempo. O Amor e a Morte jogam xadrez, não é possível vencê-la como mostrado no filme “Amor”, do cineasta Michael Haneke. Nele, dois idosos fazem seus últimos movimentos, o tempo está marcado na pele, a forma mais arquetipal de percebê-lo. Não há sentimento de transcendência, sublime ou eternidade; há apenas o corpo que para, mas a memória é a última a se apagar. 

As sardas no rosto, a leve melancolia vinda não apenas da música, a pinta na bochecha esquerda, olhos que mudam de cor, “r” retroflexo, “biutildices”, calças de bailarina. O Amor é o depósito de tiras das memórias, voltamos nossa atenção para o passado, tentando enxergar no futuro, sentir algo no presente. Na Arte, o Amor é um sentimento sublime, demasiado humano, um espelho no abismo refletindo o céu.

Videoclipes araraquarenses

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A minha história com videoclipes em Araraquara remonta a junho de 2015 quando participei da produção e captação de imagens dos três lançados pelo Liniker e os Caramelows (‘Zero’, ‘Louise du Brésil’ e ‘Caeu’). A proposta era gravar três músicas ao vivo e, ao mesmo tempo, captar imagens para serem lançadas em vídeos no youtube. Tudo ocorreu na sala da casa do guitarrista da banda a partir da produção colaborativa feita por vários artistas da cidade, dentre eles músicos, fotógrafos e cineastas. 

Todo o processo de gravação das três músicas e captação das imagens do Liniker e os Caramelows durou três dias, dois foram destinados à produção, ensaios e ajustes técnicos e o último para as gravações. Havia uma áurea, uma certeza, entre os envolvidos de que o resultado final seria de extrema qualidade. O que se concretizou a partir de outubro de 2015, quando os vídeos foram disponibilizados no youtube obtendo milhares de visualizações.  

Ao chegar de viagem de 25 dias pela Bolívia e Peru, em janeiro deste ano, participei de um dia de produção do videoclipe da música ‘A sina de um Castilho’ da Banda Castilhos, o meu quarto trabalho na área. O convite partiu da atriz e produtora Carol Gierwiatowski para que ajudasse na produção no dia da gravação comandada pelo talentoso fotógrafo araraquarense Deivide Leme, que em breve se tornará um dos maiores nomes da área no Brasil. 

Vendo e ouvindo agora o excelente resultado final do videoclipe ‘A sina de um Castilho’, volto para o ano de 2007, quando eu e o guitarrista da banda Castilhos, Dario Primo, conversávamos com frequência sobre música na UNESP. Entenda-se que as conversas giravam em torno do White Stripes e Radiohead, que havia acabado de lançar o disco ‘In Rainbows’. 

Hoje, ouço a música, vejo o videoclipe dos Castilhos e reforço a crença no trabalho coletivo. Depois deste trabalho, tive a sorte, o prazer e o aprendizado de continuar dialogando/trabalhando com a Simone Dib, fotógrafa que foi assistente de direção, a Carol Gierwiatowski e o Deivide Leme. O videoclipe da música "A sina de um Castilho" foi lançado às 08h do dia 20 de maio de 2016, em termos audiovisuais, um dos melhores já realizados na cidade.

Videoclipe "Zero"


Videoclipe "A sina de um Castilho"

Ele está de volta

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Um espectro ronda a Europa e a América Latina - o espectro do conservadorismo da ultradireita partidária e social. Vários países unem-se em uma aliança para apoiá-lo: a França e a Alemanha, François Hollande e Angela Merkel, os neonazistas da Áustria, os neoliberais da Argentina e os adeptos do trumpismo nos Estados Unidos. No Brasil, políticos misóginos, reacionários estão no poder repetindo práticas e políticas conservadoras. 

No filme alemão ‘Ele está de volta’ (Er ist wieder da, 2015), o diretor David Wnendt adapta o romance homônimo de Timur Vermes no qual o ditador nazista Adolf Hitler acorda no dia 23 de outubro de 2014 em um terreno baldio em Berlim. Desnorteado, começa a caminhar por alguns pontos da cidade, vai ao Portão de Brandemburgo, onde turistas tiram selfies acreditando estar na presença de algum ator fantasiado e não na do próprio ditador. 

Se durante a II Guerra Mundial (1939-1945) Hitler movia as suas tropas da Wehrmacht, Luftwaffe e a Schutzstaffel, no filme, carrega estantes de jornais tentando entender a dinâmica da sociedade atual moldada pela era da informação e pela internet. Um jornalista resolve fazer um reality show mostrando a viagem do ditador pela Alemanha atual, passando por diversas regiões e cidades, conversando com cidadãos sobre temas polêmicos, como imigração, crise econômica, etc. 

O filme ‘Ele está de volta’ é uma comédia, uma sátira da sociedade atual influenciável pelo espetáculo midiático e pelas rápidas narrativas das redes sociais viralizadas, compartilhadas, reproduzidas. Os vídeos de Hitler no youtube recebem milhares de acessos, vloguers postam vídeos no canal expressando as suas “mêmicas” opiniões sobre a sociedade, exaltando o ditador que se torna uma “celebridade da internet” com milhares de novos seguidores nas redes sociais. 

O filme é construído através do recurso do “mise en abyme”, ou em uma tradução “narrativa em abismo”, no qual a obra está dentro da própria obra. Um filme sobre o fato de Hitler acordar no século XXI está sendo feito dentro do filme que o espectador acompanha, mostrando que aquilo é uma obra ficcional, mas que pode ser um reflexo do que ocorre atualmente. 

No Brasil, o filme ‘Ele está de volta’ pode ser visto à luz dos recentes acontecimentos políticos e sociais, nos quais uma parcela da sociedade fantasiada com camisas de futebol da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) adoram políticos- personagens conservadores com hashtag: “bolsomito”, “vaipracuba”, “naovoupagaropato” ou “fora alguém”. Aqui, eles nunca precisaram voltar, pois sempre estiveram nos rondando para proteger a ruína da “casa grande”.


O 69º Festival de Cinema de Cannes

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O Festival de Cannes é um dos festivais de Cinema mais importantes do mundo, tem lugar na cidade litorânea francesa de Cannes e, este ano, ocorre entre os dias 11 a 22 de maio. É caracterizado como um festival plural, que privilegia o “cinema de autor”, destacando a produção cinematográfica de diversos países, que concorrem aos dois principais prêmios: o primeiro, A Palma de Ouro (Palme d’Or) dada ao melhor filme do festival; e o segundo, Grand Prix (Grande Prêmio), atualmente considerado o segundo prêmio mais importante do festival, atribuído pelo júri ao filme que melhor contribui para o desenvolvimento dos aspectos da linguagem cinematográfica. O festival está na sua 69ª edição e ocorre desde 1946, com evoluções, retrocessos, polêmicas e cancelamentos, como o seu o seu conflito com o Festival de Veneza, ou ainda ao seu eterno embate com o “Cinema industrial hollywoodiano”, passando pelo seu solidário cancelamento em maio de 68. 

Os Festivais de Cinema são eventos importantes, pois propiciam um excelente ambiente de divulgação fílmica, centrada em produções de determinadas nacionalidades, gêneros cinematográficos, e, principalmente, em diretores. O interessante, e que merece um especial destaque, é que os festivais possuem perfis, com características próprias, sejam elas ideológicas, políticas, mercadológicas ou estéticas. Por exemplo, o Festival de Cinema de Berlim tem como prêmio máximo o Urso de Ouro e segue um perfil de cinema político, voltado para um Cinema engajado. Já o Festival de Veneza tem como símbolo o prêmio Leão de Ouro, dado o filme vencedor da mostra competitiva, que se destaca pela sua alta qualidade cinematográfica. Por sua vez, o Festival de Cinema de Sundance se caracteriza por premiar e divulgar apenas produções independentes, mas que produzam um cinema autoral e de baixo orçamento, ou seja, o oposto da premiação do seu compatriota, representada pelo Oscar, que premia filmes relacionados com a indústria do entretenimento. 

Por seu turno, o Festival de Cinema de Cannes privilegia o Cinema de autor, ou seja, premia filmes que são expressões artísticas de seus respectivos diretores, e que propõem uma abordagem artística e experimental da linguagem cinematográfica. Nota-se que os filmes que ganham destaque no festival são obras de arte e não meros produtos de consumo de massa. Outro fator de destaque é a pluralidade das produções que participam do festival, com diretores de diversas nacionalidades. Assim, o Cinema autoral é o elemento norteador do perfil do Festival de Cannes. 

A história do Festival de Cannes se inicia em setembro de 1939, teria como presidente do júri os cineastas Louis Lumière (1862-1954), com a tentativa do governo francês de criar um festival de Cinema em protesto ao Festival de Veneza, que sofria com a orientação ideológica fascista. No entanto, a Alemanha declararia guerra à Inglaterra e à França em setembro do mesmo ano, adiando, assim, a gênese do festival. Após o término da II Grande Guerra (1939-1945), em 1946, tem-se a primeira edição do Festival de Cannes. Ao longo dos seus 65 anos, apenas em duas ocasiões o festival não foi realizado: a primeira em 1948 e a segunda em 1950, ambas por falta de verba. Já em 1968, o festival foi interrompido por um grupo de cineastas ligados à Nouvelle Vague, liderados por Jean-Luc Godard (1930-) e François Truffaut (1932-1984), que exigia a interrupção do festival em apoio as manifestações estudantis e trabalhistas que aconteciam nas ruas de Paris, em maio de 68. 

As produções brasileiras possuem uma boa receptividade dentro do Festival de Cannes, tendo recebido diversos prêmios, inclusive o principal: a Palma de Ouro com o filme “O pagador de promessas” (1962), do ator, roteirista e diretor Anselmo Duarte (1920-2009). Porém, o primeiro filme nacional premiado no festival foi “O Cangaceiro”, do diretor Lima Barreto, em 1953, na categoria “Melhor filme de aventura”. Ainda na década de 1960, o cineasta representante do Cinema Novo Glauber Rocha ganhou dois prêmios: recebeu o “Prêmio da Crítica Internacional” com “Terra em Transe”, em 1967, e ganhou o prêmio de “Melhor direção” pelo filme “O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade”, em 1969; Glauber receberia ainda o “Prêmio especial do júri” pelo o seu curta-metragem “Di Cavalcanti”, em 1977. Outros destaques ficam por conta da premiação na categoria de melhor curta-metragem de animação para “Meow”, de Marcos Magalhães, em 1982, e pelos prêmios de melhor interpretação feminina para Fernanda Torres no filme “Eu sei que vou te amar”, de Arnaldo Jabor, em 1986; e para Sandra Coverloni pela atuação em “Linha de passe”, de Walter Salles, em 2008. Já no ano de 2016, o curta metragem "A moça que dançou com o diabo", de João Paulo Miranda Maria recebeu o prêmio "Menção especial do júri". 

A 69ª edição do Festival de Cinema de Cannes ocorre em um momento em que o festival se encontra em uma encruzilhada: manter o perfil de cinema autoral e artístico ou ceder às pressões do mercado e da indústria cinematográfica, representada por Hollywood. Hoje, há o meio termo, a organização cede espaço para as produções hollywoodianas. Todavia, a Palma de Ouro ainda é dada para filmes que atendem à característica do festival, premiando, assim, filmes autorais e artísticos.