A dança no escuro de Lars von Trier

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No ano 2.000, o cineasta dinamarquês Lars von Trier (1956-) teve o ápice da sua carreira cinematográfica com o filme “Dançando no escuro” (Dancer in the dark, Dinamarca). O filme pode ser considerado como um divisor de águas na carreira do cineasta, pois divide a sua filmografia em antes e depois do manifesto Dogma 95, responsável por ser o último grande e impactante movimento cinematográfico conhecido da história recente da sétima arte, tendo a adesão de outros cineastas, merecendo especial destaque os também dinamarqueses Søren Kragh-Jacobsen (1947-), Kristian Levring (1957-) e Thomas Vinterberg (1969-).

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Dogma 95 foi um movimento cinematográfico lançado em Copenhague no dia 13 de março de 1995 por cineastas dinamarqueses que propuseram um manifesto, no qual elaboram um conjunto de propostas para criarem um movimento cinematográfico centrado em princípios estéticos baseados em regras técnicas, tais como há não ocorrência de ações superficiais, ou ainda a restrição aos “truques” de filmagem. As regras ficaram conhecidas como “voto de castidade” e propunham uma nova relação com a prática cinematográfica por parte dos diretores, que ainda mantinha o caráter autoral dos filmes, mesmo não podendo assinar os seus respectivos nomes nos créditos.

Dançando no escuro” foi lançado no Festival de Cinema de Cannes (França) e recebeu a Palma de Ouro de melhor filme, como também diversos outros prêmios, como o Goya e o Independent Spirit Awards. O filme é um drama-musical que narra a situação da imigrante da Tchecoslováquia chamada Selma Jezková, interpretada pela cantora islandesa Björk, que também recebeu o prêmio de melhor atriz em Cannes e é ainda a responsável pelas composições da trilha sonora. Ela vive com o seu filho em um trailer alugado. Ambos sofrem de uma doença rara que causa a perda gradual da visão, e sabendo que a doença é genética, Selma passa a trabalhar em uma fábrica nos Estados Unidos para juntar o dinheiro necessário para a operação do filho. Mas, em meio ao trabalho árduo do cotidiano, ela encontra tempo para participar da montagem de um musical, visto que esse é a sua grande paixão. Acompanhamos a relação de Selma com a sua companheira de trabalho Kathy (Catherine Deneuve) e com o casal de senhorios Bill (David Morse) e Linda (Clara Seymour).

Lars von Trier constrói a narrativa de forma linear, somos apresentados às personagens e passamos a conhecer seus dramas, inicialmente, o de Selma que passa a perder a visão e a sua consequente dificuldade de trabalhar e de se locomover. Somos introduzidos ao universo da personagem a partir da música e da dança. O discurso cinematográfico acompanha o ritmo: a câmera na mão em um plano-sequência se movimenta através de zooms. Selma está ensaiando, há o prazer, a desautomatização, pois viver é preciso, a Arte não é precisa. Trier faz um Cinema de contemplação, o plano se estende um pouco mais, sempre vai além da ação no quadro, pois, para ele, o Cinema é também o prazer dos olhos.

A narrativa caminha para um ponto de tensão importante, Bill rouba as economias de Selma. Ela se torna refém da situação, pois ao indagá-lo do roubo, ele tenta forjar uma cena na qual ela está tentando roubá-lo. O êxtase do espectador é a agonia de Selma, que pega uma caixa metálica e bate repetidas vezes contra a cabeça de Bill, já baleado. No entanto, Bill está morto, Selma é presa, julgada e condenada à morte. O casal Bill e Linda são os representante do típico discurso estadunidense, principalmente em relação á sua política externa, cheio de contradições. No final, eles roubam, matam e destroem a todos. Lars é um crítico veemente do pensamento estadunidense, ele expõe toda a contradição do discurso do “American way of life”, o que também ocorre nos seus filmes “Dogville” (2003) e “Manderlay” (2005).

Para Selma, nada de ruim ocorre em um musical, todos dançam e cantam felizes, Lars von Trier faz um musical trágico. Ela se apresenta como uma heroína clássica que sabe do seu trágico destino: quanto mais tenta fugir, mais próximo está do seu destino. No entanto, assim como o herói clássico, ela o aceita, se sacrifica, mas com a música e a dança. Na catártica cena final, há a execução de Selma. Os planos são fechados, a câmera acompanha a ação de perto, o espectador compartilha da angústia de Selma, ele está próximo à ela, é inserido, através da proximidade da câmera, dentro do universo da ação. São 107 passos. O enforcamento é perante uma platéia. A angústia é de Selma e também a do espectador. Há o temor e, em seguida, a piedade.

Dançando no escuro” é uma fusão de dois gêneros: o drama e o musical. O drama da personagem é exposto de forma simples e direta, o interessante é como Trier fundi o musical ao drama. A função do musical é a de aludir à dificuldade da personagem, de modo que sempre que Selma se encontra em dificuldades, ela tem um devaneio em forma de musical. O devaneio suspende a realidade e cria outra mais agradável, com ritmo e música, além de dança. Selma passa a não enxergar, mas o que há para se enxergar? O essencial, e importante, é invisível aos olhos. Ela dança no escuro para iluminar a sua mente e sustentar a sua insustentável leveza do ser. A música e a dança se tornam mais frequentes. Não há nada mais para ser visto, tudo pode ser revisto na mente, e também recriado. O que a memória amou, fica eterno.

Para ver: Janela da alma (João Jardim e Walter Carvalho, Brasil, 2001)
Para ler: Ensaio sobre a cegueira (José Saramago, Editora Companhia das Letras, 2002)

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